sábado, janeiro 29, 2005

Silêncio (I)

- Eu vendi o padre. E também pisei o fumie. - A voz plangente de Kichijiro continuava a mortificar-lhe os ouvidos. - Sabe, padre, neste mundo há fortes e fracos. Os fortes não se rendem ao sofrimento e poderão ir para o céu, mas que será dos cobardes como eu, que apenas os torturam e lhes mandam pisar a imagem sagrada...

«Também eu pisei o fumie. Também o meu pé esteve por instantes sobre o rosto dessa imagem, o rosto com que sonhei centenas de vezes. O rosto com que nunca deixei de sonhar, errante pelos montes e, depois, metido na prisão. O rosto do homem que eu quis amar toda a vida. Esse rosto voltou-se para mim na placa do fumie. Era um rosto exausto, encovado, de olhos tristes. E esses olhos tristes disseram-me: «Pisa-me! Sim, pisa-me! Tens os pés doridos, não é? Como tantos outros que me pisaram até ao dia de hoje... A mim basta-me que os pés vos doam. Eu partilho da vossa dor, vivo o vosso sofrimento. Para isso é que estou aqui.»

(in "Silêncio", Shusaku Endo, Círculo de Leitores)


["Silêncio", de 1967, é a história, baseada em factos reais, da viajem do missionário jesuíta Sebastião Rodrigues ao Japão, no séc. XVII, numa altura em que este país tinha as suas fronteiras encerradas. Sebastião Rodrigues lutou contra a agonia do catolicismo no Japão, cujas autoridades perseguiam, torturavam e crucificavam os católicos, que a dado momento passaram a considerar indesejáveis. Os padres missionários reagiram passando à clandestinidade. Capturados, muitos foram forçados a apostatar, pisando a imagem de Cristo. Shusaku Endo (1923-1996) era católico.]

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