quinta-feira, dezembro 30, 2004

Janeiras

Natal dos simples

Vamos cantar as janeiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras

Vamos cantar orvalhadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas

Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte

Muita neve cai na serra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra

Quem tem a candeia acesa
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza

Já nos cansa esta lonjura
Já nos cansa esta lonjura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à ventura


(José Afonso)

Agradecimentos

Aos blogs Reino das Bananas e Pula Pula Pulga, respectivamente, pela distinção e pelo destaque a uma entrada do AdP: muito obrigada!

Cepticismo

Em locais em que não há logística para enterrar cadáveres que são potenciais focos de epidemias, como há quem conte tantos milhares de corpos, se nem alinhados estão?

Não interessará a alguns países inflaccionar os números, para rentabilizarem a piedade do mundo e conseguir mais apoio de emergência? Às televisões interessa, com certeza, o aumento galopante do número de mortos referido.

Pastora sentada à sombra


(Jean-François Millet)

Nas fronteiras do horror

Em tempos, aprendia-se com a televisão. Hoje em dia, isso é muito mais raro e acontece mais nos canais de cabo, para quem os tenha. Mesmo assim, a televisão continua a ser uma "janela para o mundo" privilegiada. Por exemplo, de que outra forma poderíamos entender a força do maremoto de domingo sem as poderosas imagens transmitidas?

A televisão mostra não só a destruição da natureza, mas também os extremos de crueldade humana. Ontem assisti a um novo limite. Um programa sobre crianças-soldados mostrou como estas podem ser armas terríveis, porque não têm noção das monstruosidades que cometem. Vi e ouvi crianças com ar inocente e doce explicar como tiravam o coração e o fígado dos que matavam, como lhes punham "sal e pimenta", e os cozinhavam para comer ou para dar de comer aos seus chefes. Como cortavam mãos com machados. Como apostavam, ao encontrar uma mulher grávida, se tinha um menino ou uma menina na barriga, e lha abriam para descobrir.

A Unicef tem um programa para prevenir o recrutamento e conseguir a desmobilização de crianças-soldados. As crianças são (podem ser, devem ser) o melhor do mundo, certo? O futuro é das crianças, não é? Então, em nome da nossa sobrevivência como espécie e da sanidade mental colectiva, por favor, não se esqueçam de apoiar a Unicef!

Orkut, ou uma entrada de outro mundo

1. Hoje, depois de longo desinteresse, fui espreitar a conta de um alter-ego de Laurindinha no Orkut. Pelo que é indicado, o sistema já tem 3314973 utilizadores.

O Orkut é uma "comunidade" associada ao Google em que se entra por "convite" de um membro, e que serve, supostamente, para conhecer outras pessoas, nomeadamente os amigos dos amigos, ou pessoas com interesses comuns. (Pergunto-me se o sistema de entrada por convite não teria sido um ensaio para o GMail.)

2. Não o escrevi no campo indicado, mas o meu interesse pelo Orkut, que me levou a aceitar um "convite" que recebi não foram os "amigos", nem os "colegas", nem as "redes comerciais" nem os "dates", mas a curiosidade em perceber como o sistema funcionava e quais as suas potencialidades.

3. A primeira surpresa são os formulários do perfil. Perguntam-nos quase tudo o que imaginar se possa. Por exemplo, o grupo étnico (os identificados pela cultura americana), a religião, a posição política, o tipo de sentido de humor, o estilo do vestuário, se se fuma e como, se se bebe e como.

Algumas das respostas possíveis são inesperadas. Por exemplo, quanto à orientação sexual, entre outras, pode ser-se bissexual, mas também bi-curioso...

Sobre animais de estimação, pode escolher-se "adoro os meus animais de estimação", "gosto deles nos jardins zoológicos", "gosto de animais domésticos" e "não gosto de animais domésticos". Esta era mesmo difícil... Felizmente, havia a hipótese de não responder.

4. Para a informação mais sensível, há a possibilidade de escolher partilhá-la com todos, com os amigos e amigos dos amigos, só com os amigos, ou com ninguém.

5. Aquela ideia de que se pode criar uma rede de todas as pessoas do planeta sendo a distância entre cada duas inferior a um número inteiro relativamente baixo está sempre presente. E, de facto, não é preciso passar de amigo a amigo muitas vezes para se chegar a uma figura pública ou a alguém que se conhece de algum lado.

6. Uma das coisas mais curiosas do Orkut é a distribuição por países dos seus utilizadores: o Brasil tem uma fatia de 62%, deixando os Estados Unidos em segundo lugar apenas com 11% (em terceiro lugar aparece o Irão com 8%)! Deve ser moda no Brasil ter e fazer amigos no Orkut. Só posso dizer que, definitivamente, não entendo estes brasileiros...

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Vaza-me os olhos

Vaza-me os olhos: continuarei a ver-te,
tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te,
mesmo sem pés chegarei a ti,
mesmo sem boca poderei invocar-te,
Decepa-me os braços: poderei abraçar-te
com o coração como se fosse a mão.
Arranca-me o coração: palpitarás no meu cérebro.
E se me incendiares o cérebro,
levar-te-ei ainda no meu sangue.


(Reiner Maria Rilke)

Os publicitários e o português

Ser publicitário e poeta não é coisa inédita. Mas há liberdades que arrepiam.

Em cartazes de Lisboa pode ler-se:

amoreiras.
o natal que
eu gosto.


Estão aqui alguns dos erros de publicitários de que eu não gosto.

Quando?

Quando é que alguma coisa acontece? Quando é que a lei das rendas tem efeitos? Quando é que adoptamos o novo acordo ortográfico? Quando é que pomos em causa o pacto de estabilidade e crescimento? Quando é que voltamos a discutir política? Quando é que voltamos a acreditar em nós? E, já agora, mais simples, quando é que os partidos terão programas eleitorais e os disponibilizarão na internet, para pôr ali ao lado?

Flora domesticada ou a simplicidade das aldeias



Como em faixas de uma "primavera dos cereais", há aqui: céu - pinheiros - feno de aveia e trigo - laranjeira - videiras - oliveira - couves - canteiro com sementeira desconhecida.

Runas

Para o caso do Francisco José Viegas, também há solução.

Poesia de Pedro Magalhães Mexia

Em húngaro:

A jelentések

Nem tudom, hogy jött mindez: felteszem,
hogy volt előbb egy alakzat, mely aztán
forgáccsá hullt, hogy puzzle váljék belőle.
De ha az összes darab egyesül,
nem ölt semmilyen formát néha, s akkor
mily szeplőtlen kezdetből származott ez,
mi később széttört? Nem lehet csinálni
forgácsot forgácsból elsődleges
összefüggés nélkül, mely most hiányzik.
Ha minden darab kapcsolódik, egy
nagyobb darab alakjává fogunk még
redukálódni, vagy ez az alak
pragmatikus, instrumentális ábránd,
mely jelenteni enged valamit?
Ó, jelentések, nyitottam tinektek
Egy füzetet gyerekkoromban.



Em português:

Os significados

Não sei como tudo começou: suponho
que havia uma figura que depois
se estilhaçou para formar um puzzle.
Mas se juntarem todas as peças
talvez não haja nenhuma figura, e então
de que origem intacta partiu tudo
o que depois se quebrou? É impossível
fazer estilhaços de estilhaços sem uma
coerência primeira, agora ausente.
Quando todas as peças se juntam
estaremos reduzidos ainda a uma peça
de uma figura maior, ou essa figura
é uma utopia pragmática, instrumental,
que permite algum sentido?
Ó significados, para vós, na infância,
tinha um caderno.


Cortesia Fora do Mundo e lyrikline.org

domingo, dezembro 26, 2004

Mais agradecimentos

Aos blogs Luminiscências, Portugalidades e As Musas Esqueléticas, pelas visitas e pela leitura: obrigada!

Bendito seja o mesmo sol



Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural - mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral...

(Alberto Caeiro)

Agradecimento

Muito obrigada a'O Observador pela preferência. Esta pastora corou ao ver-se em tão distinta companhia.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Fogo



É "desenvolvimento simultâneo de calor e luz produzido pela combustão de certos corpos". Pode ser instrumento de guerra ou centro de círculo para negociar e saborear a paz.

Quando está frio, há neste abrigo uma simples fogueira. O fogo, sempre igual, tem coreografias sempre diferentes. O crepitar da madeira recorda permanentemente a sua presença. Ocasionalmente, haverá broa e queijo fresco. E cantigas, e histórias, e risos. E esperança e fraternidade, se isso ainda existe.

Aconcheguem-se.

Agradecimentos

Muito obrigada pelas palavras excessivamente amáveis com que os blogs Nas Fronteiras da Dúvida e Touch of Evil se referem ao AdP!

Ode a Eros

Eros, Cupido, Amor, pequeno Deus travesso
Com quem todos brincamos!
Brincando nos ferimos,
Ferindo-nos gozamos,
Se rimos já choramos,
Mal que choramos rimos...
Já, voltados do avesso,
Por igual o voltamos,
O torturamos nós como ele nos tortura,
Descemos aos recessos da criatura...

Pequenino gigante!
Sonhava, ou não sonhava,
Quem te representou risonho e pequenino
Que de Hércules a clava
Não pesa como pesa a tua mão de infante,
Nem seu furor destrói
Como nos dói
Teu riso de menino?

Nas tuas leves setas
Nas flâmulas gentis
Que cantam os poetas
E os namorados juvenis,
Que longos ópios e letais licores,
Que pântanos de lodo e que furores,
Que grinaldas de louros e de espinhos,
Que abissais labirintos de caminhos!

Mascarilha de seda e de veludo
Sob a qual o olhar brilha, a boca ri,
Que olhar ambíguo ou mudo,
Que boca atormentada
Não terás além ti
Na mascarada?

Pai da Crueldade e da Piedade,
Filho do Crime e da Beleza,
Que infante serás tu, que, desde que há Idade,
Aos Ícaros opões a mesma astral parede,
E os Lázaros susténs dos restos dessa mesa
Em que se bebe sempre a mesma sede,
Se come
A mesma fome?

Divindade nocturna
Que te cinges de rosas,
Suprema fúria mascarada
Que a porta abres do céu... escancarada
Sobre o negro vazio duma furna,
Que a urna de cristal nas mãos formosas
Vens ofertar às bocas sequiosas
E escorres sangue do cristal da urna,
Que tens tu afinal, ao fundo da caverna
Sempre aos mortais vedada:
A eterna morte... o nada,
Ou a vida eterna?


(José Régio)

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Nos 35 anos da morte de José Régio



Epitáfio para um poeta

As asas não lhe cabem no caixão!
A farpela de luto não condiz
Com seu ar grave, mas, enfim, feliz;
A gravata e o calçado também não.
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela!
Descalcem-lhe os sapatos de verniz!
Nao vêem que ele, nu, faz mais figura,
Como uma pedra, ou uma estrela?
Pois atirem-no assim à terra dura,
Ser-lhe-á conforto:
Deixem-no respirar ao menos morto!

(José Régio)

terça-feira, dezembro 21, 2004

Pastora e rebanho ao pôr-do-sol


(Jean-François Millet)

Abelardo e Heloísa: uma dor tão grande

"Tanto me encorajava a certas coisas como fazia precisamente o contrário e vendo que não podia demover-me dos meus propósitos nem provocar a minha cólera, entre lágrimas e suspiros disse: «Por último, resta-nos saber o seguinte: ao perdermo-nos assim, nós dois encontraremos uma dor tão grande quanto o nosso amor.» O mundo inteiro reconheceu, no futuro, o espírito da profecia contida nestas palavras."

(in "As Cartas de Abelardo e Heloísa", Guimarães Editores)

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Livros sobre livros e sobre a escrita



Não os procuro, surgem-me nas mãos:

- "História do Cerco de Lisboa" (José Saramago) - a importância de um revisor e de uma palavra;

- "O Caderno Dourado" (Doris Lessing) - uma matrioska de cadernos;

- "Se Numa Noite de Inverno um Viajante" (Italo Calvino) - versões, falsificações, cumplicidade entre um leitor e uma leitora;

- "Correspondente de Guerra" (John Steinbeck) - o "esforço de guerra" como auto-censura;

- vários, de Jorge Luís Borges - por exemplo, a história do homem a quem é concedido um lapso de tempo antes de morrer, em que exteriormente fica imóvel e interiormente podo completar a sua obra-prima, desfrutada apenas por si.

E, ainda, um filme: "Fahrenheit 451", de François Truffaut, baseado no livro homónimo de Ray Bradbury.

Adenda: o livro de Melquíades, sobre o futuro que se faz presente, em "Cem anos de solidão" (Gabriel García Márquez).

Livro de Horas

Aqui diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.

E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!


(Miguel Torga)

Fogo


A wounded deer leaps highest

A wounded deer leaps highest,
I've heard the hunter tell;
'Tis but the ecstasy of death,
And then the brake is still.

The smitten rock that gushes,
The trampled steel that springs:
A cheek is always redder
Just where the hectic stings!

Mirth is mail of anguish,
In which its cautious arm
Lest anybody spy the blood
And, "you're hurt" exclaim


(Emily Dickinson)

domingo, dezembro 19, 2004

Injustiça (V)



Aristides de Sousa Mendes, injustiçado.

Injustiça (IV)

Tosca

Como pode uma pastora deixar de ser tosca, por mais poemas de Alberto Caeiro que leia? Não lhe está na natureza, não, mas nas grilhetas das circunstâncias.

*

Retrato de uma princesa desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino.



(Sophia de Mello Breyner Andresen)

*

Ainda aqui hei-de falar de aristocracia, eu que tenho sangue de servos (mas não alma de servidão).

Injustiça (III)


(James S. Arthur)

Injustiça (II)

Judas (como o Homem), instrumento do plano divino.

Eu não falo de todos vós. Eu conheço aquele que escolhi, mas é preciso que se cumpra o que está na Escritura: "Aquele que come o pão comigo é o primeiro a trair-Me!" Digo isto agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, acrediteis que Eu Sou. Garanto-vos: quem recebe aquele que Eu envio, recebe-me a Mim, e quem Me recebe, recebe Aquele que me enviou".

Depois de dizer estas coisas, Jesus ficou profundamente comovido e disse com toda a clareza: "Garanto-vos que um de vós vai trair-Me." Desconcertados, os discípulos olhavam uns para os outros, pois não sabiam de quem Jesus falava. Um deles, aquele que Jesus amava, estava sentado à mesa ao lado de Jesus. Simão Pedro fez-lhe um sinal para que ele procurasse saber de quem é que Jesus falava. Então o discípulo inclinou-se sobre o peito de Jesus e perguntou: "Senhor, quem é?" Jesus respondeu: "É aquele a quem vou dar o pedaço de pão que estou humedecendo no molho". Então Jesus pegou num pedaço de pão, molhou-o e deu-o a Judas Escariotes, filho de Simão. Nesse momento, depois do pão, Satanás entrou em Judas. Então Jesus disse-lhe: "O que pretendes fazer, fá-lo depressa". Ninguém dos presentes compreendeu porque é que Jesus lhe disse isto. Como Judas era o responsável pela bolsa comum, alguns discípulos pensaram que Jesus o tinha mandado comprar o necessário para a festa ou dar alguma coisa aos pobres. Judas tomou o pedaço de pão e saiu imediatamente. Era noite.

(João, 13:18-30)

Névoa


(Jean-François Millet, "Vedação")

Injustiça

s. f., falta de justiça; acto contrário à justiça; ofensa do direito.

quarta-feira, dezembro 15, 2004

O efeito da ONU no comportamento dos animais políticos

Um colega pragmático que tive tinha uma lei empírica: segundo ele, quando as pessoas envelhecem, tendem a passar, ideologicamente, da esquerda para a direita. Penso que não é preciso ser de esquerda nem de direita para perceber o fundo desta ideia, que é o putativo aumento do cepticismo e da desilusão com a natureza humana ou, mais simplesmente, um maior realismo, à medida que aumenta a experiência de vida e o conhecimento dos homens.

Apesar de ter um número limitado de observações, arrisco uma outra lei empírica: quem contacta a Organização das Nações Unidas, nomeadamente em trabalho, torna-se mais humano, mais tolerante e mais sensível às misérias e às injustiças do mundo.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Blogs e "Easter Eggs"

Uns amigos informáticos ensinaram-me o que são os "Easter eggs": são umas caixinhas de surpresas dentro dos programas, como, por exemplo, uma foto de família do programador quando se passa o rato por cima de um texto de uma janela recôndita do programa. (Giro, não é?)

Tenho reparado em coisas parecidas com os "Easter eggs", nos blogs:

a) comentários que aparecem na lista de comentários do HaloScan acessível por password, mas que não aparecem associados a nenhuma entrada no blog;

b) links cujo texto e url não estão associados, sendo que um (o incorrecto) tem uma mensagem cifrada sobre o outro (o que está correcto);

c) o blo.gs demonstra correlações interessantes entre blogs;

d) há referências indicadas pelo Technorati que não se verificam, na prática.

As mãos e os frutos

I

Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, choupos meus,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
- Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.

(Eugénio de Andrade)

Novas perguntas para neo-liberais

O André Abrantes Amaral, d'O Observador, responde assim à pergunta para neo-liberais:

"Em resposta à Laurindinha, quero dizer-lhe que é sempre necessário distinguir entre criar condições mínimas de sobrevivência para que (como refere o Timshell na caixa de comentários) “não se morra à fome” e a justiça social na medida em que são realidades completamente diferentes.

O conceito de justiça social é uma ilusão. É-o por duas razões. Em primeiro lugar, o facto de uns terem mais dinheiro que outros, não resulta de uma qualquer injustiça, mas da própria natureza das coisas (não podemos, nem devemos, ganhar todos o mesmo). Em segundo lugar, e considerando a justiça social como forma de distribuição da riqueza, mesmo em benefício de quem ganha menos, mas não necessariamente mal, a justiça social tem o efeito perverso de desmotivar os cidadãos, de os acomodar tanto para o trabalho como para o desenvolvimento das suas capacidades críticas. Conduz ainda à transferência para o Estado das nossas responsabilidades enquanto indivíduos e a uma limitação da liberdade do ser humano."


Tenho novas perguntas, para o AAA, ou para neo-liberais que queiram responder.

1. Como é que se propõe "criar condições mínimas de sobrevivência" para que 'não se morra à fome'? Tem a certeza de que os postos de trabalho são tantos quantos aqueles de que deles precisam, num mundo neo-liberal puro?

2. Não percebo como é que a justiça (social, neste caso) pode desmotivar e diminuir a criatividade. Está a referir-se a um salário? E, já agora, a salário igual para trabalho igual?

3. Considera sua responsabilidade enquanto indivíduo dar esmola a todos os pedintes que encontra na rua? Qual é a esmola justa? Considera sua responsabilidade individual pagar uma operação cirúrgica a quem não tem dinheiro para a pagar? Quanto à sua liberdade, não está disposto a abdicar de uma parte dela a favor do bem comum e da paz social?

4. Qual é o papel da escola na promoção da igualdade de oportunidades?

O Elixir da Eterna Juventude

Estou velho!
dói-me o joelho
dói-me parte do antebraço
dói-me a parte interna
de uma perna
e parte amiga
da barriga
que fadiga
o que é que eu faço?
escolho o baço ou o almoço?
vira o osso
dói o pescoço
é do excesso
do ex-sexo
alvoroço
perco o viço
já soluço
já sobrosso
esmiúço
os meus sintomas
e já agora, do meu médico
os diplomas
esmiúço
a consciência
e já agora, apresento a penitência

Ah que estou arrependido
de ter feito e de ter tido
ai coração, ora seja
como a que ouvi na igreja

Mea culpa, mea culpa
minha máxima desculpa
é ter vindo p'ro presente
conservado em aguardente

Quero ser p'ra sempre jovem
as minhas células movem
uma campanha eficaz
água benta e água-raz
O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p'ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

Vou implorar aos apóstolos
mas é pior, que desgosto-os
com tanto pecado junto
não lhes pega nem o unto

Vou recorrer aos meus santos
esses, ao menos, são tantos
que há-de haver um que me acuda
senão ainda tenho o Buda

Maomé vai à montanha
o papa, ninguém o apanha
na Rússia, o rato rói a rolha
venha o diabo e escolha

O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p'ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

Misticismo agora à parte
envelhecer é uma arte
"arte-nova", "arte-final"
numa luta desigual

Só me vou pôr de joelhos
ante o mais velho dos velhos
e perguntar-lhes o segredo
de p'ra ele inda ser cedo

Quando o espelho me mira
já nem o chapéu me tira
deito-lhe a língua de fora
pisco o olho e vou-me embora

O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p'ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

(Sérgio Godinho)

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Fogo

O beijo

"Riabóvitch parou, pensativo... Inesperadamente, sentiu uns passos apressados e o roçagar de um vestido, e logo uma voz ofegante e feminina a sussurrar «até que enfim!», e duas mãos suaves, perfumadas, indubitavelmente de mulher, lhe enlaçaram o pescoço; sentiu apertar-se-lhe à cara uma face tépida e ouviu, no mesmo instante, o som do beijo. Mas quem lho deu já se soltava, com um gritinho, fugindo dele num salto de repugnância, como pareceu a Riabóvitch. Também por pouco não gritou e atirou-se para o rasgão brilhante da nesga da porta..."

(do conto "O Beijo", in "Contos", Anton Tchékhov, Relógio d'Água)

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Agradecimentos

Ao blog Portugalidades, pelo destaque feito à entrada do Abrigo de Pastora sobre os oitenta anos de Mário Soares, e ao Forum Comunitário, pelas palavras simpáticas: muito obrigada!

quarta-feira, dezembro 08, 2004

Relógio biológico dos plátanos


(Creative moments)

Relógio biológico do saber

"Mas o que mais custa a Pasteur não é o cansaço físico; o seu desejo de saber choca-se com a imensidade da matéria e nem calcula os anos de esforço que terá de consumir para alcançar uma base segura que lhe permita trabalhos pessoais; teme que a sua inteligência não seja suficientemente robusta e penetrante para vencer as dificuldades que lhe surgem agora em maior número à medida que progride; todos lhe parecem mais hábeis e mais finos, dominando sem custo as lições e avançando mais do que ele; mas é certo também que, ao falar-lhes sobre pontos que já aprendeu, os encontra superficiais, flutuantes, sem opinião própria, jogados ao sabor das últimas leituras; são mais brilhantes, certamente, e a seu lado faz uma figura pesada e lenta; ignora muito do que eles sabem, mas o que construiu ficou seguro; irá caminhando para o futuro, até onde o levarem as forças, e já sente que os outros se dissolverão na jornada, inconscientes, realmente fracos ante os embates da grande vida."

(in "Vida de Pasteur", Agostinho da Silva, Ulmeiro)

Relógio biológico da utilização da internet



A imagem representa a distribuição de visitas por horas do dia, num contador com cerca de 25000 contagens. Parece uma pirâmide demográfica, não é? Note-se as horas de almoço, das 13h00 às 14h00, e de jantar, das 19h00 às 21h00.

GMail, esperteza saloia e progressões geométricas


(Marc Chamberland)

Lembro-me de uma história bucólica que me contavam em criança e a que achava bastante graça. Era mais ou menos assim. Um rapaz recebia a visita de Jesus Cristo, que lhe dava a escolher entre um lugar no céu e uma flauta que andaria sempre com ele. São Pedro segredou-lhe bons conselhos ao ouvido: deveria escolher o céu. Mas o rapaz escolheu a flauta e divertiu-se muito com ela. Quando morreu, ao chegar às portas do céu, a que não teria direito, já estão a imaginar o que aconteceu... Pediu a São Pedro para entreabrir a porta do céu, para que o pudesse ver por uma nesga, e aproveitou para atirar a flauta lá para dentro, e assim entrar com ela no Paraíso.

Há também a história do homem que, perante o génio saído da lâmpada mágica e preparado para lhe realizar quaisquer três desejos, pede o direito de pedir mais desejos.

E a história do homem que ganhou uma partida de xadrez a um rei e lhe pediu como "simples" prémio um grão de milho pela primeira casa do tabuleiro, dois grãos pela segunda casa, quatro grãos pela terceira casa, e por cada casa, até chegar à sexagésima quarta, o dobro do número de grãos da casa anterior. Claro que não havia no mundo milho suficiente para tanto...

As contas do GMail também permitem a esperteza saloia, porque poucos dias depois de uma pessoa obter uma conta, são oferecidos seis convites, que podem muito bem ser aproveitados pelo próprio.

Resultados do concurso de contos e desenhos

Como já tinha sido noticiado noutra entrada, a participação no concurso foi muito fraca. Mais precisamente, foi um "flop" total. Houve duas participações, que foram desclassificadas. Uma, por não ser um conto e por não ser da autoria de quem concorria. (Pensei que não era preciso explicitar que isto não era admissível...) A outra, por não ser um conto, mas antes um capítulo de um livro, e por não se subordinar a nenhum dos três temas propostos.

Mas como esta pastora quer mesmo partilhar o privilégio de ter email "vasculhado pela CIA"... os participantes vão receber uma conta do GMail, cada um. Enjoy!

Instantâneos da vida política

1. O ministro Morais Sarmento explicou a nova forma de aplicação de multas por infracções ao código da estrada na primeira pessoa: "eu, infractor"... A identificação pareceu fácil.

2. O social-democrata Ângelo Correia mostrou que não faz ideia do que seja cavalheirismo nem elementar boa-educação ao referir-se ao aspecto físico de Manuela Ferreira Leite em termos insultuosos, no programa "Diga Lá, Excelência".

3. Mário Soares encontrou uma maneira curiosa de ser senador.

terça-feira, dezembro 07, 2004

Pergunta

Será que o facto de alguém se apaixonar indica que esse alguém é carente ou não é auto-suficiente?

Soares, 80


(Fotografia de Augusto Brázio no Diário de Notícias)

A vitalidade de Mário Soares é impressionante, sendo talvez fruto de um optimismo ou de uma iluminação que chega a poucos. É bem digna de celebração, já que é a de um "pai fundador" da democracia portuguesa.

Durante muitos anos, houve em casa uma cassete áudio com um discurso de um certo primeiro de Maio. Ecoava a palavra "trabalhadores", dita num tom empolgado no meio de promessas a cumprir. A gravação (e talvez também as promessas) perderam-se algures no tempo, ao tentar as minhas primeiras e inconscientes experiências de gravação no antigo rádio...

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Fogo



Para o frio.

Pastora

Há uma melancolia no nome deste blog que Alberto Caeiro não entenderia, mas que não é estranha a Laurindinha. Tem a ver com todos os rapazes e raparigas que nunca foram ou deixaram cedo a escola por terem que pastorear gado. Assim ordenava a mentalidade dos pobres de espírito.

Notas soltas sobre blogs

1. Escrever um blog anónimo pode ser bastante castrador...

2. Blogs com que se aprende sempre alguma coisa: Rua da Judiaria, Carvalhadas-on-line, Errante, No Arame, Universos Desfeitos. Será que são professores?

3. Quem disse que não se podia apagar "posts" de blogs? Ah! Ah! Ah!

4. Quem disse que nunca ninguém tinha divulgado a password de um blog de forma a poder ser acrescentados por outros e correndo o risco de acabar com o blog? E quem disse que nunca ninguém tinha feito uma cópia de um blog para outro?

5. Talvez adira à grafia "blogue" quando os linguístas escreverem "aicebergue"...

domingo, dezembro 05, 2004

O gosto pela leitura


(Raida Mustafayeva)


A OCDE alerta: os estudantes que lêem menos são mais vulneráveis ao insucesso escolar.

As crianças e jovens portugueses não estão habituados a ler e têm dificuldade em compreender o que está escrito, apontam os relatórios das provas de aferição (feitas pelos estudantes dos 4º, 6º e 9º anos) e também os estudos internacionais.

A "culpa" pode ser atribuída à família, mas os professores podem também não estar totalmente isentos de responsabilidades - dizem alguns especialistas na área que têm promovido iniciativas para contrariar as estatísticas e tornar os alunos melhores leitores.

[Notícia completa.]


O que cria o gosto pela leitura? É um gosto que pode ser imposto? Estimulado? Como? Basta o acesso a uma biblioteca? Valem mais os livros da Anita (defendidos no Ma-Schamba e também por mim, que li antes de todos o "Anita aprende a ler" e fiquei logo a saber que a leitura traz, pelo menos, liberdade e poder) ou livros cuidadosamente seleccionados por professores?

Um dos exercícios mentais que, em tempos, gostava de fazer era planear uma biblioteca escolar. Se calhar é o gosto pela leitura levada ao extremo de o querer partilhar...

Como fazê-lo? Há algumas coisas que continuarão a ser verdade para as crianças do futuro, mesmo que as distracções venham a ser mais sofisticadas e variadas. As crianças serão sempre curiosas, gostarão sempre de histórias, de animais, da natureza e de coisas coloridas, movimentadas e divertidas, e de aventuras. Isto tem que ser aproveitado para cativar as crianças para os livros. Não me parece que sejam os livros com ilustrações feitas por computador, com papel brilhante, com cores berrantes, como os que agora se vêem, os que melhor transmitem a magia dos livros... Pode ser que esteja enganada.

sábado, dezembro 04, 2004

Stopping By Woods On A Snowy Evening

Whose woods these are I think I know.
His house is in the village, though;
He will not see me stopping here
To watch his woods fill up with snow.

My little horse must think it's queer
To stop without a farmhouse near
Between the woods and frozen lake
The darkest evening of the year.

He gives his harness bells a shake
To ask if there's some mistake.
The only other sound's the sweep
Of easy wind and downy flake.

The woods are lovely, dark, and deep,
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep.


(Robert Frost)

I, de ícone

Ingrid Bergman

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

(Mário Cesariny de Vasconcelos)

Mário Cesariny



No Pavilhão Preto do Museu da Cidade, em Lisboa, está patente ao público uma exposição retrospectiva da obra de Mário Cesariny. Desde ontem, até 13 de Fevereiro de 2005.

Já vi, e recomendo!

As mãos e os frutos

XXIX

Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.

(Eugénio de Andrade)

quarta-feira, dezembro 01, 2004

A segunda palavra


(Helena Vieira da Silva)

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

(António Ramos Rosa)