segunda-feira, janeiro 22, 2007

Viram por aí?

Viram por aí um "movimento de milhares de portugueses" que proteste pela criminosa lentidão dos tribunais portugueses?

Lobos

Quando, desertas as aldeias,
Caladas as canções do povo,
se levanta, encanecida,
sobre o pântano a neblina:
das florestas, sorrateiros,
um após outro, pelos campos,
saem os lobos para a caça.

Dos valentes, sete andam juntos,
e à cabeça, a comandar
vai o oitavo que é branco.
O cortejo misterioso
pelo nono lobo é fechado,
deitando sangue da pata,
atrás de todos a mancar.

Não há nada que os assuste.
Se acaso vão para a aldeia,
nem o cão lhes há-de ladrar,
e o camponês só de vê-los
nem se atreve a respirar,
murmura a sua oração,
fica mais branco que a cal.

Contornam a igreja os lobos,
por largo e sorrateiramente.
Entram para o quintal do padre,
as suas caudas remexendo.
À porta da taberna, à coca,
espetam todos as orelhas:
há blasfémias lá dentro?

Olhos como velas, os dentes
mais aguçados que sovelas.
Carrega lá treze metralhas
com pêlo de cabra, amigo,
sem medo, atira a matar.
Primeiro cairá o branco,
trás dele os outros vão tombar.

E quando na aldeia o galo
acordar quem ainda dorme,
nove velhas, e todas mortas,
verás espalhadas pela erva.
A da frente é a mais grisalha,
a de trás coxa, e todas nove
em sangue... Valha-nos Deus!


(Aleksei K. Tolstói, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)

domingo, janeiro 21, 2007


(Vilhelm Hammershøi)

Sorrio-me com a ideia de que um blog nos pode roubar a alma, do mesmo modo que as máquinas fotográficas "roubam a alma" em algumas tribos primitivas. Mas não é verdade que se lêem coisas que dificilmente veriam a luz do dia em outro lado? Que se conhecem facetas de pessoas que antes eram desconhecidas? O anonimato deste blog tem também que ver com isto, para lá de todas as razões de ordem prática. Limita-se quem conhece ou pode reconhecer quem aqui escreve, omitindo muitos dos que são traços identitários da pessoa aqui deste lado. Consciente e deliberadamente. O resultado é uma personagem estranha, demasiado neutra, difícil de reconhecer pela própria: uma máscara de xamã.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Mulher a ler


(Vilhelm Hammershøi)

Demain, dès l'aube...

Demain, dès l'aube, à l'heure où blanchit la campagne,
Je partirai. Vois-tu, je sais que tu m'attends.
J'irai par la forêt, j'irai par la montagne.
Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.

Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées,
Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit,
Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées,
Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit.

Je ne regarderai ni l'or du soir qui tombe,
Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur,
Et quand j'arriverai, je mettrai sur ta tombe
Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur.


(Victor Hugo)

domingo, janeiro 14, 2007


(Vilhelm Hammershøi)

Dúvidas

Não gosto de quem tem demasiadas certezas e antevê-se que a campanha para o referendo sobre o aborto traga muita gente cheia de certezas. Talvez façam o seu papel, mas não deixam de me incomodar.

Interessar-me-ia muito mais o debate, com espaço para novas luzes sobre o tema, do que as certezas. Por exemplo, gostaria de perceber melhor o que é, afinal, esta especificidade portuguesa, que obriga a uma solução portuguesa diferente, com X semanas e pergunta Y no boletim de voto.

Não tenho dúvidas de que irei votar, porque acredito na democracia e sua na construção quotidiana. Os limites da marcação de referendos, desresponsabilizante dos deputados, para os eleitores poderiam ser discutidos. Assim como o convívio pacífico do Estado com códigos deontológicos de entidades de natureza corporativa em conflito com o espírito e a aplicabilidade prática da lei geral. Mas não compreendo a abstenção, que neste caso pode impedir que o referendo tenha um resultado vinculativo, caso em que terá de ser sujeito a interpretação, sempre incerta e subjectiva.

Votando Sim, não deixo de me comover com o rol de dezenas de abortos que algumas mulheres que conheci fizeram, usando-o como método contraceptivo. (Foi há muito tempo, embora os métodos contraceptivos continuem a não ser infalíveis.) Nem com as frias declarações de quem diz que, sem pensar duas vezes, faria um aborto, se uma gravidez surgisse na altura errada. (Já ouvi.) Penso no ser humano potencial, ainda inexistente, em que aquele corpo consiste. Que poderia até não sobreviver à gravidez. Mas que poderia um dia nascer e ser alguém, com um nome e com qualidades. Comove-me o rol de génios nascidos em condições sociais difíceis. (Mas também os desgraçados anónimos.)

Impressionam-me as escolhas difíceis que é preciso fazer: entre um ser humano potencial, e uma mulher que pode correr risco de vida ao fazer um aborto clandestino ou ver a sua vida muito afectada devido a um filho indesejado.

Lia, há dias, sobre a correlação entre a despenalização do aborto nos EUA e a diminuição das taxas de criminalidade por, presumivelmente, uma geração de filhos indesejados não ter nascido. Um dado importante num argumento consistia na comparação do valor de um recém-nascido com o de um embrião ou feto num estádio de desenvolvimento recuado, atribuindo números a essa comparação. "Um recém-nascido vale o mesmo que quantos embriões?" Como se fosse possível responder!

O homúnculo da figura é o predecessor daquilo que a ciência nos permite hoje chamar espermatozóide, ovo, embrião e feto. Nos tempos da superstição, foi permitido que, em algumas culturas, fosse possível matar recém-nascidos impunemente e, noutras, defendendo também um ser humano potencial, fossem consideradas inaceitáveis todas as formas de "desperdício" de sémen.

Hoje a morte cerebral determina, por convenção, a morte jurídica de um ser humano. E sabemos que os homúnculos não existem. Mas a palavra "potencial" não deixa de me ressoar na consciência, não só pelo seu significado negativo, mas também, e principalmente, pelo positivo. Compreendem-me?

Mandamento número -29 da blogosfera

Jamais expor a intimidade. Freud situou a apropriação da noção de pudor na mais tenra infância, mas parece que há adultos que não entendem que, quer a sua vida íntima seja "feliz" ou "infeliz", a sua exposição não poderá deixar de ser sórdida para quem dela toma conhecimento.

(Vilhelm Hammershøi)

Descobri Hammershøi num blog. Só por isso, já teria valido a pena a blogosfera. Como é que a Taschen o deixou escapar, pergunto-me. Será pouco comercial? Sorte do Abrigo de Pastora, de qualquer modo. "Pintor da luz e da solidão", "mistura entre Vermeer e Hopper" (e não é mesmo?), "o Vermeer dinamarquês", é também o gosto previsível desta pastora apanhado em flagrante.

Estas mulheres de costas, sempre de preto... quem são? (É a mulher de Hammershøi, mas se não soubéssemos...) Como são? O que estão a pensar? Parecem viúvas. O que estão a pensar? Estarão a chorar? Ou a conter as lágrimas, já que não podem fugir da cena? Têm tarefas domésticas para cumprir. Será que alguma vez nos chegamos a conhecer uns aos outros, ou as epidermes serão sempre máscaras? Será a figura de uma mulher de costas um retrato do melhor que conseguimos entender os outros? O que estará a pensar?

Da igualdade e da privacidade / Registo

«[...] [A] informação das certidões de nascimento de todas as crianças nascidas na Califórnia desde 1961. Os dados, cobrindo mais de dezasseis milhões de nascimentos, incluíam não só itens padronizados como o nome, o género, a raça e o estado civil dos pais, mas também factores mais reveladores sobre os pais: o código postal (que indica o seu estatuto socioeconómico e a composição racial do seu bairro), o modo como pagavam a conta do hospital (novamente, um indicador económico, dado que revela o regime de protecção de saúde a que se recorre) e o seu nível de habilitações escolares. [...] Os dados da Califórnia não só incluíam informações estatísticas sobre cada bebé, como também informação sobre o nível das habilitações escolares da mãe, o seu rendimento económico e, o que é mais significativo, a data de nascimento desta.»

(Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner)

Singularidade

Quantas religiões existem para as quais basta dizer uma frase para efectivar a conversão, sendo que a apostasia dá direito a pena de morte?

Impressões do dia

1. Onde andam os chineses nas estatísticas do Sitemeter, pergunto de novo. Mesmo que os posts em português sejam apenas 2% do total de posts publicados, de acordo com o estudo Global Blogosphere Guide (pág.3; via Ponto Media), seria de esperar que os leitores chineses que chegam cá via Google - geralmente, procurando um verso de Pessoa - fossem mais do que os leitores... da Ucrânia. Mesmo que o português não fosse uma língua tão importante quanto gostaríamos que fosse (mas para os chineses até deve ser, por causa dos PALOP), eles são aos milhares de milhões...

2. Onde andam, na blogosfera portuguesa, os pobres? Lendo os blogs que existem por aí, não há quem ande de autocarro, quem use o sistema nacional de saúde, quem tenha dois empregos ou receba menos de um salário mínimo e a recibos verdes, quem não tenha tempo ou dinheiro, ou os dois, para continuar a estudar. Sim, já sei que devem estar a pensar que esses não têm acesso à internet, e também que não escrevem, pelo menos nada digno de registo. Pois se nem sequer lêem nada digno de registo nem vivem nada digno de registo. É verdade que ainda há dias ouvi um "A ler? Que horror! Detesto ler!". Mas conheço com frequência pessoas comuns que me dizem que têm um blog. Quando vou ver, verifico que são daqueles blogs que não têm divulgação de nenhum tipo e que também não a procuram, ou então não a sabem procurar. As literacias, pois... Esses blogs revelam, em geral, pessoas extrovertidas, que se expõem e ao seu trabalho sem nenhuma consciência dos perigos que isso pode acarretar. As excepções são assinaladas. E onde andará o pastor do anúncio televisivo que "até já escreveu blogs"? Escreve para os amigos? Usa o MySpace?

Há, apesar de tudo, uma Humanidade a pulsar, essa mesma Humanidade sem a qual tudo teria muito menos sentido.

quarta-feira, janeiro 10, 2007


(Vilhelm Hammershøi)

Borreguinhos tecnológicos

1. Haverá alguma conjugação astrológica desfavorável à blogosfera? É que, depois da inutilização do blo.gs e da degradação do Technorati, ontem foi a vez de o Blogger, o Sitemeter e o Haloscan não funcionarem. O Bloglines continuou a funcionar mas para os blogs do Blogger isso não serviu para nada. O Haloscan continua a meio gás. Se os serviços bons são escassos, também não deve haver melhor para migrações simples, não é? Diga quem souber.

2. Este novo sistema de armazenamento e apresentação de imagens do Blogger não é grande melhoria... Antes, a imagem original podia ser apresentada na página de rosto do blog e, se fosse grande, era possível vê-la isolada e ajustada ao tamanho da janela do browser. Agora, nada disso acontece. Muito aborrecido quando se tem fotografias de quadros com boa resolução.

3. A Apple lançou o iPhone. Telemóvel com acesso à internet e leitor de música? Onde é que já vi isso antes, e a um preço bem simpático?

O Dia do Carneiro

(excertos)

«[...] A cena de Abraão, do seu filho e do carneiro, ao apresentar-nos um Deus misericordioso (para os humanos) impressionou judeus, cristãos e muçulmanos até à época contemporânea. Woody Allen refere-se várias vezes a esta história, sempre estupefacto por Abraão estar mesmo até ao último momento seriamente decidido a matar o seu filho, prova de que "um homem cumpre com qualquer ordem estúpida desde que lhe seja transmitida por uma voz grave e bem colocada". Os vestígios desta história encontram-se no cerne do cristianismo, pois é o próprio Filho, Jesus Cristo, que é o "cordeiro de Deus" sacrificado pelos pecado de todos os humanos.»

*

«[...] O Dia do Carneiro é então uma ocasião para os muçulmanos confraternizarem com a família em torno de uma refeição, mas também de cederem ao consumismo, de se endividarem, de passarem horas presos nos engarrafamentos das grandes cidades e de arriscarem a vida nas estradas. Não sei se isto vos lembra alguma coisa. A mim, dada a minha grande afeição pessoal e gastronómica pelo carneiro, torna-me nostálgico. De tal forma que vou suspender a reserva pessoal e contar aos leitores que em tempos, eu também vivi no campo, e logo numa casa com carneiros. Mais ainda, que cheguei a pastoreá-los uma vez ou outra e que tenho grande orgulho em ter lido As Aventuras de Mark Twain em algumas dessas ocasiões. Quando criança, também eu me lembro de implorar aos meus pais que poupassem um dos carneiros de quem eu mais gostava. Uma das vezes terei até chorado e berrado enquanto a faca se aproximava do pescoço do bicho, tanto que a mão (do meu pai ou da minha mãe?) hesitava e voltava a avançar, hesitava e voltava a avançar, sempre mudando de ideias, num momento de tensão quase insuportável.

«Se não me engano, comêmo-lo no dia em que os futuros sogros do meu irmão foram jantar lá a casa.»


(Rui Tavares, Pobre e Mal Agradecido)

terça-feira, janeiro 09, 2007

Se as coisas funcionassem assim

Pediria, por favor, uns posts sobre o "estudo" da influência dos signos nos acidentes de automóveis (DN, Diário Digital, etc.) aos esclarecidos Diário Ateísta e A Destreza das Dúvidas. Até agora, só li sobre o assunto, em português, no Canhoto.

Gostaria de perceber, por exemplo:
1. Se existisse essa tão forte correlação de que o "estudo" fala, porque é que nunca teria sido descoberta antes?
2. As seguradoras teriam cobertura legal para que os crédulos pudessem pagar de acordo com o seu signo?
3. O que dizer de jornalistas que traduzem a "notícia" do "estudo" e a apresentam de forma tão pouco crítica e contextualizada?

Bem, não custa tentar.

Mulher a ler


(Vilhelm Hammershøi)

As Adam, early in the morning

As Adam, early in the morning,
Walking forth from the bower, refresh’d with sleep;
Behold me where I pass—hear my voice—approach,
Touch me—touch the palm of your hand to my Body as I pass;
Be not afraid of my Body.


(Walt Whitman)

Never-end-um

Os defensores do Não no referendo sobre a despenalização da IVG argumentam que alguns defensores do Sim pretendem fazer sucessivos referendos até que o Sim ganhe. A falta de vontade da maioria em voltar a debater o assunto parece dar-lhes razão. E uma nova vitória do Não reforçará o argumento. De facto, o que muda em oito anos? A renovação demográfica e a consciência dos hipócritas? Uma mais lúcida visão do mundo? Será suficiente? O alheamento dos mais novos da política e da participação cívica é evidente.

Por outro lado, se o Sim vencer, mas com um resultado não vinculativo, é bem possível que os defensores do Não passem a ser os novos defensores de um novo referendo, logo que surja a oportunidade. Afinal, não há cada vez mais discussão para restringir o aborto, na Europa e nos Estados Unidos? Se não defenderem novo referendo, hão-de agarrar-se às posições mais conservadoras dos conselhos de ética dos médicos.

Entretanto, parece que o que realmente tem impedido a prática das IVG não é a lei, mas sim o conservadorismo da Ordem dos Médicos, que nenhum referendo terá capacidade de vencer vinculativamente. Se assim for, algum dia lá terão os nossos representantes democraticamente eleitos de "pôr as mãos na massa". Neste caso, é provável que fiquem mais limpas.

sábado, janeiro 06, 2007


(Vilhelm Hammershøi)

Janeiras

Entrai, pastores

Entrai, pastores, entrai
por este portal sagrado
vinde adorar o Menino
numas palhinhas deitado

Pastorinhos do deserto
todos correm para o ver
trazem mil e um presentes
para o Menino comer

Ó meu Menino Jesus
convosco é que eu estou bem
nada deste mundo quero
nada me parece bem

Alegrem-se o céu e a terra
cantemos com alegria
já nasceu o Deus Menino
filho da Virgem Maria

Deus Menino já nasceu
andai ver o rei dos reis
ele é quem governa o céu
quer que vós o adoreis

Ah, meu Menino Jesus
que lindo amor perfeito
se vem muito cansadinho
vem descansar em meu peito


(popular)

Salvação

"A salvação não se nega a ninguém."

Conhecem esta frase e esta salvação? Sabem em que regiões de Portugal (ou do Brasil) poderia ser ouvida a frase? Não é extraordinária?

quinta-feira, janeiro 04, 2007


(Vilhelm Hammershøi)

Forca

[...] Se a corda fosse longa e permitisse a queda do corpo, podia ocorrer uma ruptura das vértebras cervicais, e a secção da medula espinal provocava a paragem da função respiratória e, assim, uma morte rápida.

Caso as vértebras cervicais não se rompessem (normalmente por ser usada uma corda curta), o condenado morria por asfixia causada pelo laço, tanto por obstrução respiratória quanto pela obstrução das veias jugulares e artérias carótidas.

Muitas vezes esse método era visto como uma "Morte Suja", pois podia ocorrer libertação de fezes ou urina por perda de controlo sobre os esfincteres durante a morte. Essa tal "Morte Suja" ofendia a moral do condenado e até mesmo a de sua família.
[...]

*

Methods of judicial hanging.

(Wikipedia)

Confesso

Fiquei até às três da manhã colada à BBC, à espera de um milagre. Daqueles em que a coluna vertebral não se quebra, em o sujeito é mandado em liberdade e em que, no final, se regenera.

Artigo 3.º

Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

(DUDH)


Que parte deste artigo é que Ban Ki-moon não terá percebido?

E se é para respeitar a soberania dos estados, para quê falar no Darfur ou na Somália? No Irão ou na Coreia do Norte?

Execução pública num auto-de-fé


(Picart, séc. XVIII)

O que é mais grave: a execução ou a sua exibição?

quarta-feira, janeiro 03, 2007


(Vilhelm Hammershøi)

Tempos difíceis para a fidelidade?

Dois comentários aqui deixados recentemente chamaram a atenção. O primeiro, o testemunho sofrido de uma traição por parte de um namorado. O segundo, a afirmação de que a fidelidade é um fenómeno cultural. Deixaram-me a pensar.

É verdade que os padrões de comportamento e as representações sociais associadas a este assunto variam muito de cultura para cultura. No entanto, basta comparar os comportamentos de diferentes espécies para perceber que a infidelidade tem uma base biológica. As diferenças entre sexos, em todas as culturas, reforçam essa ideia. A associação aos diferentes papéis dos gâmetas justifica-a: uns pequenos, móveis e numerosos, outros grandes, pouco móveis e mais escassos. E a gravidez. A assimetria é tão grande que, há tempos, uma notícia dava conta de um estudo segundo o qual um qualquer tipo de macaco tinha vantagem genética em ser o mais promíscuo possível, porque as vantagens da maior descendência se sobrepunham aos riscos. Ao melhor da pessoaestilo pipiano do fucking around...

As coisas agora são diferentes, dirão alguns. Os memes contam mais do que os genes. Mas a natureza continua a ser muito forte, e sê-lo-á durante muito tempo. E se assim não for, é a extinção da espécie.

Vivemos em tempos em que já não se discute se os compromissos precisam ou não de papéis. A resposta é, em definitivo, não: esses "papéis" são exorbitantemente caros, pelo que, hoje, o casamento funciona mais como manifestação exterior de riqueza. Num blog vizinho, falava-se há dias da tendência um pouco redutora de os casais e, em particular, as mulheres, quererem coabitar na mesma casa. Ora, havendo condições económicas para optar, seguramente que a evolução será num outro sentido.

Entretanto, mais liberta, também há mais gente de cabeça desempoeirada. Uma figura pública com idade para ser uma respeitável avó testemunhou na televisão que tem uma relação aberta com o companheiro, e este é um modelo cada vez mais aceite entre os mais jovens. Alguns casais, querendo trocar as voltas à natureza, apostam no swinging. Mas mesmo na maior liberalidade, o conceito de infidelidade permanece.

As convenções sociais, quaisquer que elas sejam, desempenham um papel importante na estabilização de uma sociedade, para as circunstâncias particulares em que vive. Por exemplo, mesmo os haréns hão-de ter uma razão de ser. Mas nas sociedades ditas ocidentais a emancipação da mulher não permite que a poligamia seja aceite.

Conhecem aquele ditado "filho de minha filha, meu neto é; filho de meu filho, será ou não"? Com os testes de ADN, os homens ficam com menos uma razão para investir numa relação monogâmica, porque passam a ter um meio tecnológico de verificação da paternidade.

O "lar doce lar", com pai e mãe, para a educação de uma criança também já não é modelo único e obrigatório. Casamentos disfuncionais são cada vez menos tolerados e sê-lo-ã tanto menos quanto mais favorável for a condição financeira.

A infidelidade magoa, quer seja pela traição, quer pelo relativizar de uma relação, quer por se ser preterido. Mas parece que a fidelidade ("conjugal", no sentido mais lato) é um valor em crise.

O apogeu do romantismo já nem sequer é do século passado.

O que resta, então?

Caracolinhos de lã

Grão a grão - semente a semente - 2876 comentários. Todos lidos. Muito obrigada a todos pelo vosso interesse por este rebanho!

Registo / perplexidades

1. Quem parece não pestanejar com uma execução por enforcamento no século XXI... indigna-se com insultos e com a divulgação na internet da execução.

2. Directores de hospital, médicos, demitem-se por o controlo da assiduidade passar a ser feito por identificação da impressão digital.

3. Jogadores de futebol não querem pagar impostos sobre a totalidade dos seus rendimentos.

Que vergonha!

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Concerto de Ano Novo

(ou razões para gostar de Portugal na Primavera - e também nas outras estações do ano - entre tantas outras boas razões)


(Luís Cerqueira)

Bom ano de 2007!