quarta-feira, agosto 31, 2005

O poder do pânico

«O medo vai ter tudo»
(Alexandre O'Neill)

Pergunto-me como terá começado o boato assassino que hoje matou quase seis centenas de pessoas, em Bagdade. Terá sido intencional? (Em vez de um bombista, terá havido um efabulador suicida? Ou haveria realmente um bombista?) Ou terá sido um crescendo de equívocos que se foi propagando? O mais provável é nunca se vir a saber.

É terrível pensar que somos mais vulneráveis quando estamos juntos, em grande número. Até porque as multidões que se formam para grandes celebrações religiosas são constituídas, muitas vezes, por pessoas desesperadas, que têm na religião não só o seu bálsamo, mas também a sua tábua de salvação.

Este horrível acidente provocado por homens poderia ter acontecido em qualquer parte do mundo onde já se tivesse ouvido a palavra "terrorismo", embora fosse mais provável num lugar diariamente martirizado por atentados. Um lugar em que duas seitas de uma mesma região partilham um território e uma riqueza comum e tentam agora encontrar regras para essa convivência. E há ainda tendências dentro de cada seita... Os xiitas sabem que, nas suas grandes celebrações religiosas, são vulneráveis a ataques. (Celebram datas de mortes e de martírios de líderes religiosos, coisa que não é comum noutras religiões.) Agora têm mais um martírio para o calendário, de seis centenas de seres humanos que morreram de forma estúpida. Poderia tudo isto, ao menos, unir os iraquianos enquanto grande família?

Também estou de luto, hoje.

Respondendo a uma vaga de fundo da sociedade portuguesa, aqui a apresento (v.3):

ÍTACA

Quando começares a tua viagem para Ítaca
anseia por que o caminho seja longo,
cheio de aventuras, cheio de conhecimento.
Dos Lestrígones e dos Ciclopes,
do irado Posídon não tenhas medo,
nunca encontrarás coisas dessas no teu caminho,
se o teu pensamento se mantiver elevado, se um distinto
sentimento o teu espírito e o teu corpo tocar.

Os Lestrígones e os Ciclopes,
o feroz Posídon não encontrarás,
se não os carregares na tua alma,
se a tua alma não tos apresentar.

Anseia por que o caminho seja longo.
Que sejam muitas as manhãs de Verão
que com tal satisfação, com tal alegria,
entrarás em portos pela primeira vez;
pára em mercados fenícios,
para adquirires as boas mercadorias,
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos,
e perfumes inebriantes de todos os tipos,
a maior quantidade de perfumes inebriantes;
visita muitas cidades do Egipto,
para aprenderes e aprenderes dos sábios.

Mantém Ítaca sempre no teu pensamento.
A chegada aí é o teu propósito.
Mas não apresses de maneira nenhuma a viagem.
Melhor que dure muitos anos;
e que chegues velho à ilha,
rico com tudo o que ganhaste no caminho,
não esperando que Ítaca te dê riqueza.

Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela nunca terias começado.
Mas não tem mais nada para te dar.

E se a encontrares pobre, Ítaca não te enganou.
Assim que te tornaste sábio, com tanta experiência,
terás já percebido o que as Ítacas significam.

Konstandinos Kavafis, 1910
Tradução de Carla Hilário Quevedo (com vénia)


Nota 1: Encontrei na rede várias traduções deste poema. Não sabendo eu nada de grego, escolhi pelo português.

Nota 2: Pelo caminho, além de um sítio onde encontrei uma das traduções, o Galaaz Literatura Portuguesa, descobri outro também interessante: o BookCrossing. Não sabia que a ideia já estava tão difundida.

terça-feira, agosto 30, 2005

Ítaca rodeada pelas ondas

Ítaca

Não vale a pena suportar tanto castigo.
Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar.
Onde quer que te encontres está contigo
dentro de ti em casa na distância
onde quer que procures há outro mar
Ítaca é a tua própria errância.


(Manuel Alegre)

segunda-feira, agosto 29, 2005

domingo, agosto 28, 2005

Dádiva de Atena em Lisboa


© Laurindinha 2005

«Estudo afirma que homens têm QI médio superior às mulheres» (Lusa, 25/8/05)

1. «Os investigadores frisam no entanto "que quando os níveis de QI são iguais (entre homens e mulheres), as mulheres são mais eficazes do que os homens pois elas são mais conscienciosas e capazes de suportar longos períodos de trabalho".» (id.)

Poderemos concluir daqui que o QI não mede directamente a "capacidade para fazer coisas" e que, para uma mesma capacidade de realizar testes de QI, as mulheres são mais... inteligentes?

2. Usa-se o resultado para "ajudar a explicar" o desequilíbrio na distribuição por sexos dos prémios Nobel. Por que é que terão achado que é preciso uma "explicação" para lá dos factores culturais? Aparentemente, nem tentaram quantificá-los.

3. Em vez de prémios Nobel, por que não falaram de pornografia e de futebol?

quarta-feira, agosto 24, 2005

Eu falo das casas e dos homens

Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais...
Não me venham dizer que estava materialmente
previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas
das vítimas.

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...

Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...

Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?

Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...

(Adolfo Casais Monteiro)

terça-feira, agosto 23, 2005

Rescaldo

Por onde o fogo passou, cheira ao que parece ser carne de bichos queimados. Os pássaros, que costumavam andar pela ribeira, andam agora, cheios de fome, pelas hortas, a comer couves. Já nem têm medo dos homens, quando estes os tentam afugentar.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Milho vermelho


Imagem: USDA

Mais bonita em noites de luar, a tarefa de descamisar o milho era um trabalho comunitário entre familiares e vizinhos. Nas eiras, que então pareciam espelhos a reflectir a luz da lua, sentavam-se os convivas em pequenos bancos de madeira, em redor do grande monte de espigas apanhadas uns dias antes, à torreira do sol. Era trabalho para um, dois, ou mesmo três serões, dependendo da extensão das terras do dono e da generosidade do ano agrícola.

Pegava-se numa espiga, que se punha ao alto no colo, com o caule seguro entre as pernas, para permitir o trabalho seguinte. Começando então do lado da barba, tiravam-se as "folhas" exteriores, mais secas e ásperas. Depois, as camadas interiores, já mais suaves e, por vezes, húmidas, que pareciam uma roupa interior da cor de algodão natural.

A seguir, o passo mais difícil para os garotos, que era separar a espiga das suas roupagens exteriores e do caule da planta, com um movimento firme da mão e do pulso na planta, apoiada num joelho. Finalmente, tirava-se a barba à espiga descamisada, que se atirava para o cesto de vime onde já estavam outras como ela. Por detrás dos descamisadores iam-se formando montinhos de "camisas" em que as crianças brincavam.

Quando, em vez de uma espiga amarela, aparecia uma espiga vermelha, havia palmas e votos de boa sorte, e a recordação de uma atlântida perdida em que se cantava e dançavam bailaricos no fim dos serões da descamisada.

O trabalho, em si, era cansativo e monótono e, por isso, tentava-se despachá-lo o mais depressa possível, competindo com os companheiros para ver quem fazia atrás de si um monte maior, prova do trabalho realizado.

Na minha memória, estes serões eram sempre tépidos. E essa alegria simples que já não há é também recordação de uma espécie de atlântida perdida. Como se elas, essas atlântidas, se fossem sucedendo ao longo do tempo, para gerações sucessivas. Será a juventude, que nos foge por entre os dedos? As mortes que se sucedem, e que nos recordam a nossa própria condição de mortais? Não sei. Talvez seja só a matriz portuguesa a impor-me a saudade. A saudade do milho vermelho.

Águia real


(SDGFP)


(BirdForum)

Entrada que podia ser só um rascunho

Carlos: Sabes que há investigadores que acreditam que o comportamento de grupos humanos é, de certa forma, previsível?

Pedro: Patético... Podem continuar a sonhar. Achas que algumas vez poderiam ter previsto os ataques de 11 de Setembro?

Carlos: Talvez não. Mas talvez isso se deva ao facto de os grupos terroristas funcionarem em pequenos grupos, as células, como eles lhe chamam. Aí, é mais importante o factor individual, com tudo o que tem de imprevisível.

Pedro: Se os indíviduos têm livre arbítrio, como é que os grupos humanos não o têm, do mesmo modo?

Carlos: Como diz o António Damásio, o livre arbítrio pode existir, mas em pequena escala temporal. Quanto maior a escala temporal, maior é a influência do meio.

Pedro: Não te choca que se trate os seres humanos como meros números para uma estatística?

Carlos: Mas isso faz-se hoje curriqueiramente! Nas sondagens, por exemplo, para prever resultados eleitorais a partir de uma pequena amostra. Nos estudos de mercado, nas empresas de gestão de aplicações financeiras...

Pedro: Aí, há até uma espécie de metacognição que influencia o desenrolar dos acontecimentos...

Carlos: Pois, mas continua a ser em grande escala. Previsível, até certo ponto.

Pedro: Como é que estados, ou mesmo grandes corpos policiais e militares poderão, então, combater os terroristas?

Carlos: Dizia-se da guerra de guerrilha que esta só podia ser feita com o apoio da população e com guerrilheiros muito motivados. Através de estratégias de comunicação eficazes, pode-se atingir estes dois factores.

Pedro: Comunicação... Para haver comunicação, é preciso haver conhecimento do outro. É também preciso conhecer a sua linguagem, ou então obrigá-lo a falar a nossa, o que é mais difícil, porque requer tempo e disposição mental para aprendê-la. Estou ainda a pensar em estratégias não violentas...

Carlos: Há quem pense que há maneiras mais rápidas...

Pedro: Haverá?...

domingo, agosto 21, 2005

"Hacia la ciudad espléndida"

Através de uma listagem sobre textos emblemáticos sobre direitos humanos, descobri o discurso de Pablo Neruda de aceitação do Nobel. Está disponível em linha aqui. A voz de Neruda também pode ser ouvida, aqui (30 min).

Alguns excertos:

«Algo nos esperaba en medio de aquella selva salvaje. Súbitamente, como una singular visión, llegamos a una pequeña y esmerada pradera acurrucada en el regazo de las montañas: agua clara, prado verde, flores silvestres, rumor de ríos y el cielo azul arriba, generosa luz ininterrumpida por ningún follaje.

Allí nos detuvimos como dentro de un círculo mágico, como huéspedes de un recinto sagrado: y mayor condición de sagrada tuvo aún la ceremonia en la que participé. Los vaqueros bajaron de sus cabalgaduras. En el centro del recinto estaba colocada, como en un rito, una calavera de buey. Mis compañeros se acercaron silenciosamente, uno por uno, para dejar unas monedas y algunos alimentos en los agujeros de hueso. Me uní a ellos en aquella ofrenda destinada a toscos ulises extraviados, a fugitivos de todas las raleas que encontrarían pan y auxilio en las órbitas del toro muerto.

Pero no se detuvo en este punto la inolvidable ceremonia. Mis rústicos amigos se despojaron de sus sombreros e iniciaron una extraña danza, saltando sobre un solo pie alrededor de la calavera abandonada, repasando la huella circular dejada por tantos bailes de otros que por allí cruzaron antes. Comprendí entonces de una manera imprecisa, al lado de mis impenetrables compañeros, que existía una comunicación de desconocido a desconocido, que había una solicitud, una petición y una respuesta aún en las más lejanas y apartadas soledades de este mundo.»




(Mário Eloy)


«En aquella larga jornada encontré las dosis necesarias a la formación del poema. Allí me fueron dadas las aportaciones de la tierra y del alma. Y pienso que la poesía es una acción pasajera o solemne en que entran por parejas medidas la soledad y la solidaridad, el sentimiento y la acción, la intimidad de uno mismo, la intimidad del hombre y la secreta revelación de la naturaleza. Y pienso con no menor fe que todo está sostenido - el hombre y su sombra, el hombre y su actitud, el hombre y su poesía - en una comunidad cada vez más extensa, en un ejercicio que integrará para siempre en nosotros la realidad y los sueños, porque de tal manera la poesía los une y los confunde. Y digo de igual modo que no sé, después de tantos años, si aquellas lecciones que recibí al cruzar un río vertiginoso, al bailar alrededor del cráneo de una vaca, al bañar mi piel en el agua purificadora de las más altas regiones, digo que no sé si aquello salía de mí mismo para comunicarse después con muchos otros seres, o era el mensaje que los demás hombres me enviaban como exigencia o emplazamiento. No sé si aquello lo viví o lo escribí, no sé si fueron verdad o poesía, transición o eternidad, los versos que experimenté en aquel momento, las experiencias que canté más tarde.

De todo ello, amigos, surge una enseñanza que el poeta debe aprender de los demás hombres. No hay soledad inexpugnable. Todos los caminos llevan al mismo punto: a la comunicación de lo que somos. Y es preciso atravesar la soledad y la aspereza, la incomunicación y el silencio para llegar al recinto mágico en que podemos danzar torpemente o cantar con melancolía: mas en esa danza o en esa canción están consumados los más antiguos ritos de la conciencia: de la conciencia de ser hombres y creer en un destino común.»




(Joseph Mallord William Turner)


«El poeta no es un "pequeño dios". No, no es un "pequeño dios". No está signado por un destino cabalístico superior al de quienes ejercen otros menesteres y oficios. A menudo expresé que el mejor poeta es el hombre que nos entrega el pan de cada día: el panadero más próximo, que no se cree dios. El cumple su majestuosa y humilde faena de amasar, meter al horno, dorar y entregar el pan de cada día, como una obligación comunitaria. Y si el poeta llega a alcanzar esa sencilla conciencia, podrá también la sencilla conciencia convertirse en parte de una colosal artesanía, de una construcción simple o complicada, que es la construcción de la sociedad, la transformación de las condiciones que rodean al hombre, la entrega de su mercadería: pan, verdad, vino, sueños. Si el poeta se incorpora a esa nunca gastada lucha por consignar cada uno en manos de los otros su ración de compromiso, su dedicación y su ternura al trabajo común de cada día y de todos los hombres, el poeta tomará parte, los poetas tomaremos parte en el sudor, en el pan, en el vino, en el sueño de la humanidad entera. Sólo por ese camino inalienable de ser hombres comunes llegaremos a restituirle a la poesía el anchuroso espacio que le van recortando en cada época, que le vamos recortando en cada época nosotros mismos.»

sábado, agosto 20, 2005

Hypnerotomachia Poliphili


Poliphilo sonha dentro do seu sonho

«A Hypnerotomachia Poliphili foi publicada em Veneza em 1499. A obra, do monge dominicano Francesco Colonna, foi descrita como sendo o mais belo livro jamais impresso. Foi o primeiro livro a ser desenhado e executado como uma unidade visual completa, com integração de tipos e ilustração. O gravador das matrizes de madeira originais permanece desconhecido, embora a sua autoria tenha sido atribuída a um vasto número de grandes mestres do Renascimento, incluindo Bellini, Montagna, Rafael e Botticelli.»

(SLNSW)



Poliphilo descreve as procissões triunfais

«A Hypnerotomachia Poliphili, que em latim significa «A Luta de Poliphilo pelo Amor num Sonho», foi publicada em 1499 por um veneziano chamado Aldus Manutius. A Hypnerotomachia é uma enciclopédia disfarçada em forma de romance, uma dissertação sobre tudo, desde arquitectura a zoologia, escrito num estilo que mesmo uma tartaruga acharia lento. É o livro mais longo que existe acerca de um homem que tem um sonho e faz Marcel Proust, que escreveu o maior livro do mundo acerda de um homem a comer uma fatia de bolo, parecer Ernest Hemingway. Atrever-me-ia a pensar que os leitores do Renascimento devem ter sentido o mesmo. A Hypnerotomachia foi um dinossauro na sua própria época. Embora Aldus fosse o maior impressor do seu tempo, a Hypnerotomachia é um emaranhado de tramas e personagens que não têm nada que os ligue entre si, para além do protagonista, um tipo qualquer alegórico, chamado Poliphilo. O enredo é simples: Poliphilo tem um sonho estranho no qual procura a mulher que ama. Mas a forma como está dito é tão complicada que mesmo a maioria dos eruditos do Renascimento - aqueles que liam Plotino na paragem do autocarro - consideraram a Hypnerotomachia dolorosa e entediantemente difícil.»

(Ian Caldwell e Dustin Thomason, "A Regra de Quatro")



Polia reanima Poliphilo com um beijo

*

Hypnerotomachia Poliphili (facsimile)

Leon Battista Alberti's Hypnerotomachia Poliphili: Re-Configuring the Architectural Body in the Early Italian Renaissance (Liane Lefaivre)

quinta-feira, agosto 18, 2005

515


(Lima de Freitas)

O que diz a Morte

"Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem...

Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem." -

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das coisas invisíveis, muda e fria.

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.


(Antero de Quental)

quarta-feira, agosto 17, 2005


(Albrecht Dürer)


Canção a caminho do Céu
(excerto)

As mãos que trago, as mãos são estas.
Elas sozinhas te dirão
se vem de mortes ou de festas
meu coração.


(Cecília Meireles)

sábado, agosto 13, 2005

Notícias do insólito moralizante

Há dias, uma notícia, julgo que do Público, chamou-me a atenção. Nela, referia-se que uma em cada vinte e cinco crianças criadas por homens que se julgavam seus pais seria, afinal, filha de outro homem. A notícia falava dos testes de paternidade através de análises do ADN, cada vez mais pedidos. Curiosamente, nunca era esclarecido se aquele rácio se referia aos indivíduos que pediam os testes ou à população em geral. Freud havia de ter uma explicação para esta omissão.

Hoje, também no Público, é noticiado que "Pentágono retira comando a general de quatro estrelas por alegada relação extraconjugal com uma civil", sendo que o "militar viu decretado o seu divórcio no mesmo dia em que teve de abandonar o posto". E ainda há quem critique a adopção da Sharia...

quinta-feira, agosto 11, 2005

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de se estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Lisboa, 15 de Janeiro de 1928

(Álvaro de Campos)

quarta-feira, agosto 03, 2005

Inscrição


(Edward Hopper)


Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar


(Sophia de Mello Breyner Andresen)