quinta-feira, dezembro 30, 2004

Janeiras

Natal dos simples

Vamos cantar as janeiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras

Vamos cantar orvalhadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas

Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte

Muita neve cai na serra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra

Quem tem a candeia acesa
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza

Já nos cansa esta lonjura
Já nos cansa esta lonjura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à ventura


(José Afonso)

Agradecimentos

Aos blogs Reino das Bananas e Pula Pula Pulga, respectivamente, pela distinção e pelo destaque a uma entrada do AdP: muito obrigada!

Cepticismo

Em locais em que não há logística para enterrar cadáveres que são potenciais focos de epidemias, como há quem conte tantos milhares de corpos, se nem alinhados estão?

Não interessará a alguns países inflaccionar os números, para rentabilizarem a piedade do mundo e conseguir mais apoio de emergência? Às televisões interessa, com certeza, o aumento galopante do número de mortos referido.

Pastora sentada à sombra


(Jean-François Millet)

Nas fronteiras do horror

Em tempos, aprendia-se com a televisão. Hoje em dia, isso é muito mais raro e acontece mais nos canais de cabo, para quem os tenha. Mesmo assim, a televisão continua a ser uma "janela para o mundo" privilegiada. Por exemplo, de que outra forma poderíamos entender a força do maremoto de domingo sem as poderosas imagens transmitidas?

A televisão mostra não só a destruição da natureza, mas também os extremos de crueldade humana. Ontem assisti a um novo limite. Um programa sobre crianças-soldados mostrou como estas podem ser armas terríveis, porque não têm noção das monstruosidades que cometem. Vi e ouvi crianças com ar inocente e doce explicar como tiravam o coração e o fígado dos que matavam, como lhes punham "sal e pimenta", e os cozinhavam para comer ou para dar de comer aos seus chefes. Como cortavam mãos com machados. Como apostavam, ao encontrar uma mulher grávida, se tinha um menino ou uma menina na barriga, e lha abriam para descobrir.

A Unicef tem um programa para prevenir o recrutamento e conseguir a desmobilização de crianças-soldados. As crianças são (podem ser, devem ser) o melhor do mundo, certo? O futuro é das crianças, não é? Então, em nome da nossa sobrevivência como espécie e da sanidade mental colectiva, por favor, não se esqueçam de apoiar a Unicef!

Orkut, ou uma entrada de outro mundo

1. Hoje, depois de longo desinteresse, fui espreitar a conta de um alter-ego de Laurindinha no Orkut. Pelo que é indicado, o sistema já tem 3314973 utilizadores.

O Orkut é uma "comunidade" associada ao Google em que se entra por "convite" de um membro, e que serve, supostamente, para conhecer outras pessoas, nomeadamente os amigos dos amigos, ou pessoas com interesses comuns. (Pergunto-me se o sistema de entrada por convite não teria sido um ensaio para o GMail.)

2. Não o escrevi no campo indicado, mas o meu interesse pelo Orkut, que me levou a aceitar um "convite" que recebi não foram os "amigos", nem os "colegas", nem as "redes comerciais" nem os "dates", mas a curiosidade em perceber como o sistema funcionava e quais as suas potencialidades.

3. A primeira surpresa são os formulários do perfil. Perguntam-nos quase tudo o que imaginar se possa. Por exemplo, o grupo étnico (os identificados pela cultura americana), a religião, a posição política, o tipo de sentido de humor, o estilo do vestuário, se se fuma e como, se se bebe e como.

Algumas das respostas possíveis são inesperadas. Por exemplo, quanto à orientação sexual, entre outras, pode ser-se bissexual, mas também bi-curioso...

Sobre animais de estimação, pode escolher-se "adoro os meus animais de estimação", "gosto deles nos jardins zoológicos", "gosto de animais domésticos" e "não gosto de animais domésticos". Esta era mesmo difícil... Felizmente, havia a hipótese de não responder.

4. Para a informação mais sensível, há a possibilidade de escolher partilhá-la com todos, com os amigos e amigos dos amigos, só com os amigos, ou com ninguém.

5. Aquela ideia de que se pode criar uma rede de todas as pessoas do planeta sendo a distância entre cada duas inferior a um número inteiro relativamente baixo está sempre presente. E, de facto, não é preciso passar de amigo a amigo muitas vezes para se chegar a uma figura pública ou a alguém que se conhece de algum lado.

6. Uma das coisas mais curiosas do Orkut é a distribuição por países dos seus utilizadores: o Brasil tem uma fatia de 62%, deixando os Estados Unidos em segundo lugar apenas com 11% (em terceiro lugar aparece o Irão com 8%)! Deve ser moda no Brasil ter e fazer amigos no Orkut. Só posso dizer que, definitivamente, não entendo estes brasileiros...

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Vaza-me os olhos

Vaza-me os olhos: continuarei a ver-te,
tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te,
mesmo sem pés chegarei a ti,
mesmo sem boca poderei invocar-te,
Decepa-me os braços: poderei abraçar-te
com o coração como se fosse a mão.
Arranca-me o coração: palpitarás no meu cérebro.
E se me incendiares o cérebro,
levar-te-ei ainda no meu sangue.


(Reiner Maria Rilke)

Os publicitários e o português

Ser publicitário e poeta não é coisa inédita. Mas há liberdades que arrepiam.

Em cartazes de Lisboa pode ler-se:

amoreiras.
o natal que
eu gosto.


Estão aqui alguns dos erros de publicitários de que eu não gosto.

Quando?

Quando é que alguma coisa acontece? Quando é que a lei das rendas tem efeitos? Quando é que adoptamos o novo acordo ortográfico? Quando é que pomos em causa o pacto de estabilidade e crescimento? Quando é que voltamos a discutir política? Quando é que voltamos a acreditar em nós? E, já agora, mais simples, quando é que os partidos terão programas eleitorais e os disponibilizarão na internet, para pôr ali ao lado?

Flora domesticada ou a simplicidade das aldeias



Como em faixas de uma "primavera dos cereais", há aqui: céu - pinheiros - feno de aveia e trigo - laranjeira - videiras - oliveira - couves - canteiro com sementeira desconhecida.

Runas

Para o caso do Francisco José Viegas, também há solução.

Poesia de Pedro Magalhães Mexia

Em húngaro:

A jelentések

Nem tudom, hogy jött mindez: felteszem,
hogy volt előbb egy alakzat, mely aztán
forgáccsá hullt, hogy puzzle váljék belőle.
De ha az összes darab egyesül,
nem ölt semmilyen formát néha, s akkor
mily szeplőtlen kezdetből származott ez,
mi később széttört? Nem lehet csinálni
forgácsot forgácsból elsődleges
összefüggés nélkül, mely most hiányzik.
Ha minden darab kapcsolódik, egy
nagyobb darab alakjává fogunk még
redukálódni, vagy ez az alak
pragmatikus, instrumentális ábránd,
mely jelenteni enged valamit?
Ó, jelentések, nyitottam tinektek
Egy füzetet gyerekkoromban.



Em português:

Os significados

Não sei como tudo começou: suponho
que havia uma figura que depois
se estilhaçou para formar um puzzle.
Mas se juntarem todas as peças
talvez não haja nenhuma figura, e então
de que origem intacta partiu tudo
o que depois se quebrou? É impossível
fazer estilhaços de estilhaços sem uma
coerência primeira, agora ausente.
Quando todas as peças se juntam
estaremos reduzidos ainda a uma peça
de uma figura maior, ou essa figura
é uma utopia pragmática, instrumental,
que permite algum sentido?
Ó significados, para vós, na infância,
tinha um caderno.


Cortesia Fora do Mundo e lyrikline.org

domingo, dezembro 26, 2004

Mais agradecimentos

Aos blogs Luminiscências, Portugalidades e As Musas Esqueléticas, pelas visitas e pela leitura: obrigada!

Bendito seja o mesmo sol



Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural - mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral...

(Alberto Caeiro)

Agradecimento

Muito obrigada a'O Observador pela preferência. Esta pastora corou ao ver-se em tão distinta companhia.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Fogo



É "desenvolvimento simultâneo de calor e luz produzido pela combustão de certos corpos". Pode ser instrumento de guerra ou centro de círculo para negociar e saborear a paz.

Quando está frio, há neste abrigo uma simples fogueira. O fogo, sempre igual, tem coreografias sempre diferentes. O crepitar da madeira recorda permanentemente a sua presença. Ocasionalmente, haverá broa e queijo fresco. E cantigas, e histórias, e risos. E esperança e fraternidade, se isso ainda existe.

Aconcheguem-se.

Agradecimentos

Muito obrigada pelas palavras excessivamente amáveis com que os blogs Nas Fronteiras da Dúvida e Touch of Evil se referem ao AdP!

Ode a Eros

Eros, Cupido, Amor, pequeno Deus travesso
Com quem todos brincamos!
Brincando nos ferimos,
Ferindo-nos gozamos,
Se rimos já choramos,
Mal que choramos rimos...
Já, voltados do avesso,
Por igual o voltamos,
O torturamos nós como ele nos tortura,
Descemos aos recessos da criatura...

Pequenino gigante!
Sonhava, ou não sonhava,
Quem te representou risonho e pequenino
Que de Hércules a clava
Não pesa como pesa a tua mão de infante,
Nem seu furor destrói
Como nos dói
Teu riso de menino?

Nas tuas leves setas
Nas flâmulas gentis
Que cantam os poetas
E os namorados juvenis,
Que longos ópios e letais licores,
Que pântanos de lodo e que furores,
Que grinaldas de louros e de espinhos,
Que abissais labirintos de caminhos!

Mascarilha de seda e de veludo
Sob a qual o olhar brilha, a boca ri,
Que olhar ambíguo ou mudo,
Que boca atormentada
Não terás além ti
Na mascarada?

Pai da Crueldade e da Piedade,
Filho do Crime e da Beleza,
Que infante serás tu, que, desde que há Idade,
Aos Ícaros opões a mesma astral parede,
E os Lázaros susténs dos restos dessa mesa
Em que se bebe sempre a mesma sede,
Se come
A mesma fome?

Divindade nocturna
Que te cinges de rosas,
Suprema fúria mascarada
Que a porta abres do céu... escancarada
Sobre o negro vazio duma furna,
Que a urna de cristal nas mãos formosas
Vens ofertar às bocas sequiosas
E escorres sangue do cristal da urna,
Que tens tu afinal, ao fundo da caverna
Sempre aos mortais vedada:
A eterna morte... o nada,
Ou a vida eterna?


(José Régio)

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Nos 35 anos da morte de José Régio



Epitáfio para um poeta

As asas não lhe cabem no caixão!
A farpela de luto não condiz
Com seu ar grave, mas, enfim, feliz;
A gravata e o calçado também não.
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela!
Descalcem-lhe os sapatos de verniz!
Nao vêem que ele, nu, faz mais figura,
Como uma pedra, ou uma estrela?
Pois atirem-no assim à terra dura,
Ser-lhe-á conforto:
Deixem-no respirar ao menos morto!

(José Régio)

terça-feira, dezembro 21, 2004

Pastora e rebanho ao pôr-do-sol


(Jean-François Millet)

Abelardo e Heloísa: uma dor tão grande

"Tanto me encorajava a certas coisas como fazia precisamente o contrário e vendo que não podia demover-me dos meus propósitos nem provocar a minha cólera, entre lágrimas e suspiros disse: «Por último, resta-nos saber o seguinte: ao perdermo-nos assim, nós dois encontraremos uma dor tão grande quanto o nosso amor.» O mundo inteiro reconheceu, no futuro, o espírito da profecia contida nestas palavras."

(in "As Cartas de Abelardo e Heloísa", Guimarães Editores)

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Livros sobre livros e sobre a escrita



Não os procuro, surgem-me nas mãos:

- "História do Cerco de Lisboa" (José Saramago) - a importância de um revisor e de uma palavra;

- "O Caderno Dourado" (Doris Lessing) - uma matrioska de cadernos;

- "Se Numa Noite de Inverno um Viajante" (Italo Calvino) - versões, falsificações, cumplicidade entre um leitor e uma leitora;

- "Correspondente de Guerra" (John Steinbeck) - o "esforço de guerra" como auto-censura;

- vários, de Jorge Luís Borges - por exemplo, a história do homem a quem é concedido um lapso de tempo antes de morrer, em que exteriormente fica imóvel e interiormente podo completar a sua obra-prima, desfrutada apenas por si.

E, ainda, um filme: "Fahrenheit 451", de François Truffaut, baseado no livro homónimo de Ray Bradbury.

Adenda: o livro de Melquíades, sobre o futuro que se faz presente, em "Cem anos de solidão" (Gabriel García Márquez).

Livro de Horas

Aqui diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.

E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!


(Miguel Torga)

Fogo


A wounded deer leaps highest

A wounded deer leaps highest,
I've heard the hunter tell;
'Tis but the ecstasy of death,
And then the brake is still.

The smitten rock that gushes,
The trampled steel that springs:
A cheek is always redder
Just where the hectic stings!

Mirth is mail of anguish,
In which its cautious arm
Lest anybody spy the blood
And, "you're hurt" exclaim


(Emily Dickinson)

domingo, dezembro 19, 2004

Injustiça (V)



Aristides de Sousa Mendes, injustiçado.

Injustiça (IV)

Tosca

Como pode uma pastora deixar de ser tosca, por mais poemas de Alberto Caeiro que leia? Não lhe está na natureza, não, mas nas grilhetas das circunstâncias.

*

Retrato de uma princesa desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino.



(Sophia de Mello Breyner Andresen)

*

Ainda aqui hei-de falar de aristocracia, eu que tenho sangue de servos (mas não alma de servidão).

Injustiça (III)


(James S. Arthur)

Injustiça (II)

Judas (como o Homem), instrumento do plano divino.

Eu não falo de todos vós. Eu conheço aquele que escolhi, mas é preciso que se cumpra o que está na Escritura: "Aquele que come o pão comigo é o primeiro a trair-Me!" Digo isto agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, acrediteis que Eu Sou. Garanto-vos: quem recebe aquele que Eu envio, recebe-me a Mim, e quem Me recebe, recebe Aquele que me enviou".

Depois de dizer estas coisas, Jesus ficou profundamente comovido e disse com toda a clareza: "Garanto-vos que um de vós vai trair-Me." Desconcertados, os discípulos olhavam uns para os outros, pois não sabiam de quem Jesus falava. Um deles, aquele que Jesus amava, estava sentado à mesa ao lado de Jesus. Simão Pedro fez-lhe um sinal para que ele procurasse saber de quem é que Jesus falava. Então o discípulo inclinou-se sobre o peito de Jesus e perguntou: "Senhor, quem é?" Jesus respondeu: "É aquele a quem vou dar o pedaço de pão que estou humedecendo no molho". Então Jesus pegou num pedaço de pão, molhou-o e deu-o a Judas Escariotes, filho de Simão. Nesse momento, depois do pão, Satanás entrou em Judas. Então Jesus disse-lhe: "O que pretendes fazer, fá-lo depressa". Ninguém dos presentes compreendeu porque é que Jesus lhe disse isto. Como Judas era o responsável pela bolsa comum, alguns discípulos pensaram que Jesus o tinha mandado comprar o necessário para a festa ou dar alguma coisa aos pobres. Judas tomou o pedaço de pão e saiu imediatamente. Era noite.

(João, 13:18-30)

Névoa


(Jean-François Millet, "Vedação")

Injustiça

s. f., falta de justiça; acto contrário à justiça; ofensa do direito.

quarta-feira, dezembro 15, 2004

O efeito da ONU no comportamento dos animais políticos

Um colega pragmático que tive tinha uma lei empírica: segundo ele, quando as pessoas envelhecem, tendem a passar, ideologicamente, da esquerda para a direita. Penso que não é preciso ser de esquerda nem de direita para perceber o fundo desta ideia, que é o putativo aumento do cepticismo e da desilusão com a natureza humana ou, mais simplesmente, um maior realismo, à medida que aumenta a experiência de vida e o conhecimento dos homens.

Apesar de ter um número limitado de observações, arrisco uma outra lei empírica: quem contacta a Organização das Nações Unidas, nomeadamente em trabalho, torna-se mais humano, mais tolerante e mais sensível às misérias e às injustiças do mundo.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Blogs e "Easter Eggs"

Uns amigos informáticos ensinaram-me o que são os "Easter eggs": são umas caixinhas de surpresas dentro dos programas, como, por exemplo, uma foto de família do programador quando se passa o rato por cima de um texto de uma janela recôndita do programa. (Giro, não é?)

Tenho reparado em coisas parecidas com os "Easter eggs", nos blogs:

a) comentários que aparecem na lista de comentários do HaloScan acessível por password, mas que não aparecem associados a nenhuma entrada no blog;

b) links cujo texto e url não estão associados, sendo que um (o incorrecto) tem uma mensagem cifrada sobre o outro (o que está correcto);

c) o blo.gs demonstra correlações interessantes entre blogs;

d) há referências indicadas pelo Technorati que não se verificam, na prática.

As mãos e os frutos

I

Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, choupos meus,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
- Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.

(Eugénio de Andrade)

Novas perguntas para neo-liberais

O André Abrantes Amaral, d'O Observador, responde assim à pergunta para neo-liberais:

"Em resposta à Laurindinha, quero dizer-lhe que é sempre necessário distinguir entre criar condições mínimas de sobrevivência para que (como refere o Timshell na caixa de comentários) “não se morra à fome” e a justiça social na medida em que são realidades completamente diferentes.

O conceito de justiça social é uma ilusão. É-o por duas razões. Em primeiro lugar, o facto de uns terem mais dinheiro que outros, não resulta de uma qualquer injustiça, mas da própria natureza das coisas (não podemos, nem devemos, ganhar todos o mesmo). Em segundo lugar, e considerando a justiça social como forma de distribuição da riqueza, mesmo em benefício de quem ganha menos, mas não necessariamente mal, a justiça social tem o efeito perverso de desmotivar os cidadãos, de os acomodar tanto para o trabalho como para o desenvolvimento das suas capacidades críticas. Conduz ainda à transferência para o Estado das nossas responsabilidades enquanto indivíduos e a uma limitação da liberdade do ser humano."


Tenho novas perguntas, para o AAA, ou para neo-liberais que queiram responder.

1. Como é que se propõe "criar condições mínimas de sobrevivência" para que 'não se morra à fome'? Tem a certeza de que os postos de trabalho são tantos quantos aqueles de que deles precisam, num mundo neo-liberal puro?

2. Não percebo como é que a justiça (social, neste caso) pode desmotivar e diminuir a criatividade. Está a referir-se a um salário? E, já agora, a salário igual para trabalho igual?

3. Considera sua responsabilidade enquanto indivíduo dar esmola a todos os pedintes que encontra na rua? Qual é a esmola justa? Considera sua responsabilidade individual pagar uma operação cirúrgica a quem não tem dinheiro para a pagar? Quanto à sua liberdade, não está disposto a abdicar de uma parte dela a favor do bem comum e da paz social?

4. Qual é o papel da escola na promoção da igualdade de oportunidades?

O Elixir da Eterna Juventude

Estou velho!
dói-me o joelho
dói-me parte do antebraço
dói-me a parte interna
de uma perna
e parte amiga
da barriga
que fadiga
o que é que eu faço?
escolho o baço ou o almoço?
vira o osso
dói o pescoço
é do excesso
do ex-sexo
alvoroço
perco o viço
já soluço
já sobrosso
esmiúço
os meus sintomas
e já agora, do meu médico
os diplomas
esmiúço
a consciência
e já agora, apresento a penitência

Ah que estou arrependido
de ter feito e de ter tido
ai coração, ora seja
como a que ouvi na igreja

Mea culpa, mea culpa
minha máxima desculpa
é ter vindo p'ro presente
conservado em aguardente

Quero ser p'ra sempre jovem
as minhas células movem
uma campanha eficaz
água benta e água-raz
O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p'ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

Vou implorar aos apóstolos
mas é pior, que desgosto-os
com tanto pecado junto
não lhes pega nem o unto

Vou recorrer aos meus santos
esses, ao menos, são tantos
que há-de haver um que me acuda
senão ainda tenho o Buda

Maomé vai à montanha
o papa, ninguém o apanha
na Rússia, o rato rói a rolha
venha o diabo e escolha

O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p'ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

Misticismo agora à parte
envelhecer é uma arte
"arte-nova", "arte-final"
numa luta desigual

Só me vou pôr de joelhos
ante o mais velho dos velhos
e perguntar-lhes o segredo
de p'ra ele inda ser cedo

Quando o espelho me mira
já nem o chapéu me tira
deito-lhe a língua de fora
pisco o olho e vou-me embora

O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p'ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

(Sérgio Godinho)

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Fogo

O beijo

"Riabóvitch parou, pensativo... Inesperadamente, sentiu uns passos apressados e o roçagar de um vestido, e logo uma voz ofegante e feminina a sussurrar «até que enfim!», e duas mãos suaves, perfumadas, indubitavelmente de mulher, lhe enlaçaram o pescoço; sentiu apertar-se-lhe à cara uma face tépida e ouviu, no mesmo instante, o som do beijo. Mas quem lho deu já se soltava, com um gritinho, fugindo dele num salto de repugnância, como pareceu a Riabóvitch. Também por pouco não gritou e atirou-se para o rasgão brilhante da nesga da porta..."

(do conto "O Beijo", in "Contos", Anton Tchékhov, Relógio d'Água)

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Agradecimentos

Ao blog Portugalidades, pelo destaque feito à entrada do Abrigo de Pastora sobre os oitenta anos de Mário Soares, e ao Forum Comunitário, pelas palavras simpáticas: muito obrigada!

quarta-feira, dezembro 08, 2004

Relógio biológico dos plátanos


(Creative moments)

Relógio biológico do saber

"Mas o que mais custa a Pasteur não é o cansaço físico; o seu desejo de saber choca-se com a imensidade da matéria e nem calcula os anos de esforço que terá de consumir para alcançar uma base segura que lhe permita trabalhos pessoais; teme que a sua inteligência não seja suficientemente robusta e penetrante para vencer as dificuldades que lhe surgem agora em maior número à medida que progride; todos lhe parecem mais hábeis e mais finos, dominando sem custo as lições e avançando mais do que ele; mas é certo também que, ao falar-lhes sobre pontos que já aprendeu, os encontra superficiais, flutuantes, sem opinião própria, jogados ao sabor das últimas leituras; são mais brilhantes, certamente, e a seu lado faz uma figura pesada e lenta; ignora muito do que eles sabem, mas o que construiu ficou seguro; irá caminhando para o futuro, até onde o levarem as forças, e já sente que os outros se dissolverão na jornada, inconscientes, realmente fracos ante os embates da grande vida."

(in "Vida de Pasteur", Agostinho da Silva, Ulmeiro)

Relógio biológico da utilização da internet



A imagem representa a distribuição de visitas por horas do dia, num contador com cerca de 25000 contagens. Parece uma pirâmide demográfica, não é? Note-se as horas de almoço, das 13h00 às 14h00, e de jantar, das 19h00 às 21h00.

GMail, esperteza saloia e progressões geométricas


(Marc Chamberland)

Lembro-me de uma história bucólica que me contavam em criança e a que achava bastante graça. Era mais ou menos assim. Um rapaz recebia a visita de Jesus Cristo, que lhe dava a escolher entre um lugar no céu e uma flauta que andaria sempre com ele. São Pedro segredou-lhe bons conselhos ao ouvido: deveria escolher o céu. Mas o rapaz escolheu a flauta e divertiu-se muito com ela. Quando morreu, ao chegar às portas do céu, a que não teria direito, já estão a imaginar o que aconteceu... Pediu a São Pedro para entreabrir a porta do céu, para que o pudesse ver por uma nesga, e aproveitou para atirar a flauta lá para dentro, e assim entrar com ela no Paraíso.

Há também a história do homem que, perante o génio saído da lâmpada mágica e preparado para lhe realizar quaisquer três desejos, pede o direito de pedir mais desejos.

E a história do homem que ganhou uma partida de xadrez a um rei e lhe pediu como "simples" prémio um grão de milho pela primeira casa do tabuleiro, dois grãos pela segunda casa, quatro grãos pela terceira casa, e por cada casa, até chegar à sexagésima quarta, o dobro do número de grãos da casa anterior. Claro que não havia no mundo milho suficiente para tanto...

As contas do GMail também permitem a esperteza saloia, porque poucos dias depois de uma pessoa obter uma conta, são oferecidos seis convites, que podem muito bem ser aproveitados pelo próprio.

Resultados do concurso de contos e desenhos

Como já tinha sido noticiado noutra entrada, a participação no concurso foi muito fraca. Mais precisamente, foi um "flop" total. Houve duas participações, que foram desclassificadas. Uma, por não ser um conto e por não ser da autoria de quem concorria. (Pensei que não era preciso explicitar que isto não era admissível...) A outra, por não ser um conto, mas antes um capítulo de um livro, e por não se subordinar a nenhum dos três temas propostos.

Mas como esta pastora quer mesmo partilhar o privilégio de ter email "vasculhado pela CIA"... os participantes vão receber uma conta do GMail, cada um. Enjoy!

Instantâneos da vida política

1. O ministro Morais Sarmento explicou a nova forma de aplicação de multas por infracções ao código da estrada na primeira pessoa: "eu, infractor"... A identificação pareceu fácil.

2. O social-democrata Ângelo Correia mostrou que não faz ideia do que seja cavalheirismo nem elementar boa-educação ao referir-se ao aspecto físico de Manuela Ferreira Leite em termos insultuosos, no programa "Diga Lá, Excelência".

3. Mário Soares encontrou uma maneira curiosa de ser senador.

terça-feira, dezembro 07, 2004

Pergunta

Será que o facto de alguém se apaixonar indica que esse alguém é carente ou não é auto-suficiente?

Soares, 80


(Fotografia de Augusto Brázio no Diário de Notícias)

A vitalidade de Mário Soares é impressionante, sendo talvez fruto de um optimismo ou de uma iluminação que chega a poucos. É bem digna de celebração, já que é a de um "pai fundador" da democracia portuguesa.

Durante muitos anos, houve em casa uma cassete áudio com um discurso de um certo primeiro de Maio. Ecoava a palavra "trabalhadores", dita num tom empolgado no meio de promessas a cumprir. A gravação (e talvez também as promessas) perderam-se algures no tempo, ao tentar as minhas primeiras e inconscientes experiências de gravação no antigo rádio...

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Fogo



Para o frio.

Pastora

Há uma melancolia no nome deste blog que Alberto Caeiro não entenderia, mas que não é estranha a Laurindinha. Tem a ver com todos os rapazes e raparigas que nunca foram ou deixaram cedo a escola por terem que pastorear gado. Assim ordenava a mentalidade dos pobres de espírito.

Notas soltas sobre blogs

1. Escrever um blog anónimo pode ser bastante castrador...

2. Blogs com que se aprende sempre alguma coisa: Rua da Judiaria, Carvalhadas-on-line, Errante, No Arame, Universos Desfeitos. Será que são professores?

3. Quem disse que não se podia apagar "posts" de blogs? Ah! Ah! Ah!

4. Quem disse que nunca ninguém tinha divulgado a password de um blog de forma a poder ser acrescentados por outros e correndo o risco de acabar com o blog? E quem disse que nunca ninguém tinha feito uma cópia de um blog para outro?

5. Talvez adira à grafia "blogue" quando os linguístas escreverem "aicebergue"...

domingo, dezembro 05, 2004

O gosto pela leitura


(Raida Mustafayeva)


A OCDE alerta: os estudantes que lêem menos são mais vulneráveis ao insucesso escolar.

As crianças e jovens portugueses não estão habituados a ler e têm dificuldade em compreender o que está escrito, apontam os relatórios das provas de aferição (feitas pelos estudantes dos 4º, 6º e 9º anos) e também os estudos internacionais.

A "culpa" pode ser atribuída à família, mas os professores podem também não estar totalmente isentos de responsabilidades - dizem alguns especialistas na área que têm promovido iniciativas para contrariar as estatísticas e tornar os alunos melhores leitores.

[Notícia completa.]


O que cria o gosto pela leitura? É um gosto que pode ser imposto? Estimulado? Como? Basta o acesso a uma biblioteca? Valem mais os livros da Anita (defendidos no Ma-Schamba e também por mim, que li antes de todos o "Anita aprende a ler" e fiquei logo a saber que a leitura traz, pelo menos, liberdade e poder) ou livros cuidadosamente seleccionados por professores?

Um dos exercícios mentais que, em tempos, gostava de fazer era planear uma biblioteca escolar. Se calhar é o gosto pela leitura levada ao extremo de o querer partilhar...

Como fazê-lo? Há algumas coisas que continuarão a ser verdade para as crianças do futuro, mesmo que as distracções venham a ser mais sofisticadas e variadas. As crianças serão sempre curiosas, gostarão sempre de histórias, de animais, da natureza e de coisas coloridas, movimentadas e divertidas, e de aventuras. Isto tem que ser aproveitado para cativar as crianças para os livros. Não me parece que sejam os livros com ilustrações feitas por computador, com papel brilhante, com cores berrantes, como os que agora se vêem, os que melhor transmitem a magia dos livros... Pode ser que esteja enganada.

sábado, dezembro 04, 2004

Stopping By Woods On A Snowy Evening

Whose woods these are I think I know.
His house is in the village, though;
He will not see me stopping here
To watch his woods fill up with snow.

My little horse must think it's queer
To stop without a farmhouse near
Between the woods and frozen lake
The darkest evening of the year.

He gives his harness bells a shake
To ask if there's some mistake.
The only other sound's the sweep
Of easy wind and downy flake.

The woods are lovely, dark, and deep,
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep.


(Robert Frost)

I, de ícone

Ingrid Bergman

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

(Mário Cesariny de Vasconcelos)

Mário Cesariny



No Pavilhão Preto do Museu da Cidade, em Lisboa, está patente ao público uma exposição retrospectiva da obra de Mário Cesariny. Desde ontem, até 13 de Fevereiro de 2005.

Já vi, e recomendo!

As mãos e os frutos

XXIX

Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.

(Eugénio de Andrade)

quarta-feira, dezembro 01, 2004

A segunda palavra


(Helena Vieira da Silva)

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

(António Ramos Rosa)

terça-feira, novembro 30, 2004

18:46

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

(Luís Vaz de Camões)

Noites

1. Voo

Ela desce, atabalhoadamente, de um salto de um décimo andar. A roupa não ondula, nem há nenhuma “echarpe” flutuante, como nos filmes e nos sonhos, mas não há tempo para reparar nisso. Estes breves instantes condensam a satisfação de ter tido a coragem de tomar o seu destino completamente nas suas mãos – o acto de mais completo uso da sua liberdade – e do alívio que sentirá daqui a poucos segundos, porque todo o insuportável sofrimento que monopolizou a sua vida terá, em breve, um fim.

O sangue parece subir-lhe à cabeça, e os nervos estão incrivelmente tensos. No último instante, lembra-se de alguém e invoca o seu nome, como prometera a si própria fazer, há muitos anos. Alguém que não podia deixar de estar presente neste momento decisivo.

Toda a vida passa, então, num segundo, pela sua mente. Não se pode dizer que não viveu, que não viajou – pelo mundo, pelas emoções, pelas sensações, pelas ideias. Não procurou o limite dessas coisas, mas saboreou tudo o que teve, saboreou muito. Foi um patinho feio que nunca se transformou em cisne. Catrapum!


2. Mergulho

Ela desce no azul líquido e baço, o corpo e os cabelos ondulam, e as últimas bolhas de ar abandonam o seu corpo. Viveu encarcerada na sua solidão. Há uma corda atada a uma pedra que ela atou a um tornozelo. Não vai ser um truque de Houdini. A aflição é enorme; ela debate-se e, depois, chora porque sabe que é assim que tem de ser, que somos todos apenas formigas efémeras no formigueiro, que não vale a pena lutar por mais. As formigas não têm o direito de olhar para as estrelas, caro Oscar Wilde... Só de transformar-se em húmus.

domingo, novembro 28, 2004

Observação com espírito aberto

As moles de caras anónimas dos transportes públicos sempre me fascinaram. Não apenas aqueles rostos de adolescentes de beleza resplandecente, não apenas a fealdade cansada da maioria que trabalha e sobrevive, mas, por baixo da superfície, a unicidade de cada ser humano, a sua história de sonhos e conquistas de todos desconhecida, mas nem por isso menos preciosa.

“Cada ser humano é um mundo.” Não interessam as rugas, as olheiras, os papos, todas as imperfeições. Cada ser humano poderia, em princípio, ser meu amigo. Por que não?

sexta-feira, novembro 26, 2004

Os impuros

Javé disse a Moisés e Aarão: «Quando alguém tiver na pele uma inflamação, um furúnculo ou qualquer mancha que produza suspeita de lepra, será levado diante do sacerdote Aarão ou de um dos seus filhos sacerdotes. O sacerdote examinará a parte afectada. Se no lugar doente o pêlo se tornou branco e a doença ficou mais profunda na pele, é caso de lepra. Depois de o examinar, o sacerdote declará-lo-á impuro. Mas se há sobre a pele uma mancha branca, sem depressão visível da pele, e o pêlo não se tornou branco, o sacerdote isolará o doente durante sete dias. No sétimo dia examinará de novo o doente: se observar que a doença permanece sem se espalhar pela pele, tornará a isolá-lo por mais sete dias; no sétimo dia, examiná-lo-á novamente. Se então verificar que a mancha não ficou mais branca e não se espalhou pela pele, o sacerdote declarará puro o homem, pois trata-se de um furúnculo. A pessoa lavará a sua roupa e ficarará pura. Mas se o furúnculo se alastrar sobre a pele depois de o enfermo ter sido examinado pelo sacerdote e declarado puro, ele deverá apresentar-se de novo ao sacerdote. O sacerdote examiná-lo-á; se observar que o furúnculo se alastrou sobre a pele, o sacerdote declará-lo-á impuro: trata-se de lepra.»

(Levítico, 13:1-8)

Prémio Raoul Follereau do AdP

Direitinho para António Baeta Oliveira, que livrou este blog da lepra anunciada...

quinta-feira, novembro 25, 2004

quarta-feira, novembro 24, 2004

Rui Gomes da Silva passa a ministro-adjunto do primeiro-ministro

Alguém me explica que país é este? Não é contraditório de mais? Será que alguém acha que esta criatura precisa de salários de ministro por mais uns meses para pagar as dívidas ao fisco? Serão todos membros de uma sociedade secreta? De desavergonhados?

terça-feira, novembro 23, 2004

Biberão de consumismo

A lei da oferta e da procura tem efeitos positivos conhecidos na razão qualidade-preço dos produtos e serviços. No entanto, a publicidade altera as regras deste jogo, criando necessidades de consumo completamente artificiais. A manipulação é particularmente evidente quando os seus alvos são os mais jovens.

Como seria útil que houvesse uma limitação a uma frequência razoável da difusão dos habituais anúncios sobre brinquedos de Natal... Como não há, vamos ter que assistir até à náusea, por mais um ano, à exploração descarada da fragilidade das crianças.

"Os Poemas da Minha Vida"

Edição do Público, terá antologias de Mário Soares, Miguel Veiga, Freitas do Amaral, Urbano Tavares Rodrigues, Nuno Grande, Ramalho Eanes, Vasco Gonçalves e Marcelo Rebelo de Sousa.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Forças da natureza


Paul Gauguin, "Te Aa No Areois" ("A semente dos Areois"), 1892

Chamo-Te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que não quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

A arte de contar contos

Há quem diga que o conto é uma das forma literárias mais difíceis. Talvez por isso os 6 Gigabytes de "webmail" no GMail não estejam a ser suficientemente apelativos e o concursozinho aqui lançado não tenha tido ainda nenhum participante...

Entrada anti-diários

Fiquei contente quando soube que o Círculo de Leitores tinha editado a poesia completa de Miguel Torga.

domingo, novembro 21, 2004

Cotovia


Cortesia de Carlos Pinheiro e Braganç@Net

Não interessam os modelos de topo de gama de marcas conceituadas de automóveis, nem carros de colecção, nem férias milionárias em ilhas paradisíacas do Pacífico.

Quem nunca acordou ao som do canto da cotovia ainda não sabe tudo sobre qualidade de vida.

Aves de Portugal



O desenho científico é difícil, mas os resultados podem ser obras de arte. Diz quem sabe que pode ser mais útil que a fotografia.

Há tesouros naturais portugueses que deviam ser desenhados exaustivamente e mostrados ao grande público. O livro "Guia das Aves Comuns de Portugal" (de vários autores, e edição da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves) é um exemplo a seguir.

Há frases lapidares

"No entanto, antes de chegar ao verso final, já tinha percebido que não sairia nunca desse quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no momento em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo o que neles estava escrito era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a Terra."

(in "Cem anos de solidão", Gabriel García Marquéz)

Livros e mais livros

No Parque das Nações, começou ontem uma feira do livro na FIL e termina hoje outra na Gare do Oriente.

Boas prendas de Natal...

O sabor da cereja


(Cortesia SCNAL)

Há ideias que atravessam culturas. E isso é bom.

sábado, novembro 20, 2004

Diálogo de surdos

Nos anos oitenta, em plena guerra fria e sob a ameaça da guerra nuclear, Sting cantava "I hope the Russians love their children too". Agora, ao saber dos raptos, assassinatos e atentados suicidas quotidianos no Iraque, pergunto-me se não haverá por lá gente que também ame os seus filhos, que tenha algum respeito pela vida humana. Pergunto-me como poderemos comunicar com aquele povo. Pergunto muitas vezes: como poderemos comunicar?

Arte de amar

Se vais para o amor como quem vai
pela primeira vez ao fogo das pelejas,
trata de procurar, antes de mais,
aquela a quem desejas.
Trata depois, então,
de conquistar o coração
da jovem que elegeste entre as demais mulheres.
E trata finalmente, em último lugar,
de esse amor prolongar
o mais que tu puderes.
Aqui tens o plano, nas suas grandes linhas.
Este vai ser de nosso carro o curso;
esta, a meta - que há-de ser atingida
no termo do percurso.

(Ovídio)

sexta-feira, novembro 19, 2004

Alerta

Um leitor diz num comentário que muita introspecção pode afastar as ovelhas. Pois bem. Foi colocada na coluna da direita uma ligação para o texto da constituição europeia, que é o que vai ser referendado. Isso e, como bem lembra Jorge Miranda, a supremacia deste texto sobre a constituição portuguesa.

Fim do SMO

Pronto. Agora já só somos defendidos por mercenários.

Lobo


Fonte: MEC, Espanha

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

(Alexandre O'Neill)

quinta-feira, novembro 18, 2004

Mulher lendo uma carta


(Pieter de Hooch)

Pedido de ajuda

Desculpem, talvez comece a abusar da solicitude que vós, leitores do AdP, têm tido a cada pedido de socorro da pastora... (Agradeço de novo!)

Procuro um esclarecimento. Como se faz um blog no blogger que tenha uma cópia sincronizada de outro?

Obrigada.

segunda-feira, novembro 15, 2004

Lenço


Fonte: Lenços dos Namorados (excelente!)

Amoras


(Cortesia SCNAL)

As amoras

O meu país sabe a amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

(Eugénio de Andrade)

sábado, novembro 13, 2004

Interpretations

A poet sits in a coffee shop, writing:
the old lady
thinks he is writing a letter to his mother,
the young woman
thinks he is writing a letter to his girlfriend,
the child
thinks he is drawing,
the businessman
thinks he is considering a deal,
the tourist
thinks he is writing a postcard,
the employee
thinks he is calculating his debts,
the secret policeman
walks slowly, towards him.

(Mourid Barghouti)

Direito de estimação

Artigo 21.º
(Direito de resistência)

Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

(in Constituição da República Portuguesa, VI Revisão Constitucional, 2004)

quinta-feira, novembro 11, 2004

Como a comida quer o sal

Um rei tinha três filhas; perguntou a cada uma delas, por sua vez, qual era a mais sua amiga. A mais velha respondeu:

– Quero mais a meu pai do que à luz do Sol.

Respondeu a do meio:

– Gosto mais de meu pai do que de mim mesma.

A mais moça respondeu:

– Quero-lhe tanto como a comida quer o sal.



(Continua aqui.)

Como ganhar até 6 contas do GMail

Até ao dia 30 de Novembro, está aberto um concurso de contos e desenhos subordinados a um dos seguintes temas:

1) desenvolvimento da história contada na entrada "Como contar uma história?";
2) São Martinho;
3) Abrigo de Pastora.

Regras:

1. As participações deverão ser enviadas até ao dia 30 de Novembro para abrigodepastora[arroba]gmail[ponto]com (substituir a arroba e o ponto).
2. Há um mínimo de 3 e um máximo de 6 contas do GMail para distribuir.
3. Os vencedores serão conhecidos com a máxima brevidade possível.
4. As participações vencedoras serão publicadas no Abrigo de Pastora.
5. As restantes participações poderão ser ou não publicadas.

Participem e divulguem!

quarta-feira, novembro 10, 2004

GMail

Quem ainda não tem um endereço do GMail está disposto a esforçar-se para tê-lo? Quem quer propor uma forma de esta pastora decidir quem mais merece um convite?

História de estimação

"We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness." (Declaração de Independência dos E.U.A., 1776)

"All human beings are born free and equal in dignity and rights. They are endowed with reason and conscience and should act towards one another in a spirit of brotherhood." (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948)

terça-feira, novembro 09, 2004

Sagrada Sabedoria


Hagia Sophia de Constantinopla

Há 15 anos, caiu o muro da vergonha. Se isso foi possível, ainda há algumas coisas possíveis. A convivência das tradições do cristianismo e do islamismo, na Turquia, é um exemplo. Demonstrado neste grande santuário.

domingo, novembro 07, 2004

Narcisos


(Fotografia de Christine Skelmersdale)

Jogo das cinco pedrinhas

Jogo praticado quase exclusivamente por raparigas, utilizando cinco pequenas pedrinhas arredondadas como material.

Conforme podemos observar na recolha elaborada pela Escola de S. Mamede em Évora, este jogo, desenvolve-se da seguinte forma:

Escolhe-se o local do jogo, que pode ser ao nível do chão, num degrau de escada, ou na soleira da porta. Depois de estabelecida a ordem de saída, com os jogadores dispostos em círculo inicia-se o jogo; as cinco pedrinhas são lançadas ao chão de forma a ficarem o mais juntas possível. O jogador agarra uma pedrinha, lança-a ao ar e apanha-a sem a deixar cair. Entretanto teve que tirar do conjunto que está no chão uma pedra e apanhar, com a mesma mão, a que está em queda. Junta novamente as cinco pedrinhas e lança-as de novo ao chão.

Repete a operação anterior, só que, quando lança a pedrinha ao ar, em vez de apanhar uma pedra terá de apanhar duas.

Prossegue, até às cinco, caso consiga desenvolver as acções com êxito. Se falhar dá a vez a outro jogador. Quando voltar a jogar, recomeça na situação que tinha falhado.

Após terminado o último lançamento, terá que pegar nas cinco pedras, lançá-las ao ar e tentar apanhá-las nas costas da mão.

Ganhará quem conseguir ficar com o maior número de pedras nas costas da mão.

(C.M. Borba)

Judeus com Arafat


Foto do dia da Lusa (7/Nov/2004)

Explicação

Como quem usa o Blogger deve ter reparado, o tempo dos blogs é falsificável. Esta entrada, escrita e publicada em 1 de Novembro, é um exemplo disso. Os leitores atentos à blogosfera podem também já ter deparado com entradas que têm fotografias de acontecimentos que só sucederam na hora seguinte à que é indicada ou entradas com datas do dia seguinte ao da leitura, pelo que não estou a ser especialmente original.

Resolvi usar este recurso e brincadeira para deixar um delicioso excerto de Umberto Eco, um dos meus preferidos dele. Como é um pouco extenso, e para não enfastiar ninguém, digo já ao que venho, e sugiro a quem se interessar que leia um pedacinho em cada dia, para não cansar muito os olhos...

Entretanto, poderão surgir mais entradas, nos vários dias da semana, que serão inseridas entre as transcrições.

sábado, novembro 06, 2004

Pó de Simpatia (VI)

- E isso explica também os desejos das crianças: a mãe deseja fortemente uma coisa e...

- Sobre isso eu teria mais cautela. Às vezes fenómenos análogos têm causas diferentes e o homem de ciência não deve dar fé a qualquer superstição. Mas voltemos ao meu pó. O que aconteceu quando submeti por uns dias à acção do Pó o pano sujo do sangue do nosso amigo? Em primeiro lugar, o Sol e a Lua atraíram de grande distância os espíritos do sangue que se encontravam no pano, graças ao calor do ambiente, e os espíritos do vitríolo que estavam no sangue não puderam escapar a fazer o mesmo percurso. Por outro lado a ferida continuava a expulsar uma grande abundância de espíritos quentes e ígneos, atraindo assim o ar circundante. Este ar atraía outro ar e este outro ar ainda e os espíritos do sangue e do vitríolo, dispersos a grande distância, enfim, reuniam-se àquele ar, que trazia consigo outros átomos do mesmo sangue. Ora, como os átomos do sangue, os provenientes do pano e os provenientes da chaga, se encontravam, expelindo o ar como um inútil companheiro de viagem, e eram por sua vez atraídos à sua sede maior, unidos a eles os espíritos do vitríolo penetravam na carne.

- Mas não poderíeis pôr directamente o vitríolo na chaga?

- Poderia, tendo o ferido à minha frente. Mas se o ferido estivesse longe? Acrescente-se que se houvesse posto directamente o vitríolo na chaga a sua força corrosiva a irritaria ainda mais, enquanto levado pelo ar só dá a sua parte doce e balsâmica, capaz de estancar o sangue, e que é usada também nos colírios para os olhos - e Roberto pôs os ouvidos à escuta, fazendo depois no futuro tesouro daqueles conselhos, o que certamente explicava o agravar-se do seu mal. - Por outro lado - acrescentou Igby -, é claro que não se deve usar o vitríolo normal, como se usava outrora, fazendo mais mal que bem. Eu arranjo vitríolo de Chipre, e antes calcino-o ao sol: a calcinação tira-lhe a humidade supérflua, e é como se dele se fizesse um caldo consistente; e depois a calcinação torna os espíritos desta substância capazes de ser transportados pelo ar. Finalmente, acrescento-lhe goma adraganta, que delimita mais rapidamente a ferida.


(in "A Ilha do Dia Antes", Umberto Eco, Círculo de Leitores)

Do desejo

V

Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.

(Hilda Hilst)

sexta-feira, novembro 05, 2004

Kefiah


(Alba Savoi, 1995)

Uma biografia do homem no limbo, aqui.

Pó de Simpatia (V)

- Mas então se tudo atrai tudo, por qual motivo os elementos e os corpos permanecem divididos e não se tem a colisão de qualquer força com outra?

- Pergunta aguda. Mas como os corpos que têm igual peso se unem mais facilmente, e o azeite se une mais facilmente com o azeite do que com a água, temos de concluir que o que mantém consolidados os átomos de uma mesma natureza é a sua raridade ou densidade, como também poderiam dizer-vos os filósofos que frequentais.

- E disseram-mo, provando-mo com as diversas espécies de sal: que sejam moídos ou coagulados de que maneira for, retomam sempre a sua forma natural, e o sal comum apresenta-se sempre em cubos de faces quadradas, o sal nitro em colunas de seis faces, e o sal amoníaco em hexágonos de seis pontas, como a neve.

- E o sal da urina forma-se em pentágonos, donde o senhor Davidson explica a forma de cada uma das oitenta pedras retiradas da bexiga do senhor Pelletier. Mas se os corpos de forma análoga se misturam com mais afinidade, com maior razão se atrairão com mais força que os outros. Por isso se queimardes uma mão obtereis refrigério do sofrimento mantendo-a por um pouco junto do fogo.

- O meu preceptor, uma vez que um camponês foi mordido por uma víbora, pôs em cima da ferida a cabeça da víbora...

- Certo. O veneno, que estava a infiltrar-se para o coração, retornava à sua fonte principal onde existia em maior quantidade. Se em tempos de peste meterdes numa caixa pó de sapos, ou até um sapo e uma aranha vivos, ou mesmo arsénico, esta substância venenosa atrairá a si a infecção do ar. E as cebolas secas fermentam no celeiro quando as da horta começam a despontar.


(in "A Ilha do Dia Antes", Umberto Eco, Círculo de Leitores)

quinta-feira, novembro 04, 2004

Segredo

Sei um ninho
e o ninho tem um ovo;
e o ovo, redondinho,
tem lá dentro um passarinho novo.

Mas escusas de me tentar:
nem o tiro nem o ensino;
quero ser um bom menino,
e guardar
este segredo comigo,
e ter depois um amigo
que faça o pino
a voar.

(Miguel Torga)

Os porquês de Laurindinha

1) Por não o ser.

2) Por me dizer alguma coisa (mas nada a ver com a Laurinda mais conhecida).

Rapariga com brinco de pérola


(Jan Vermeer)

Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

(Fernando Pessoa)

Pó de Simpatia (IV)

- Mas como é possível que tantos corpúsculos se dispersem no ar, e o corpo que os emana não sofra nenhuma diminuição?

- Talvez haja diminuição, e dareis por isso quando fizerdes evaporar a água, mas para os corpos sólidos não o notamos, tal como não o notamos com o musgo ou com outras substâncias fragrantes. Qualquer corpo, por menor que seja, pode sempre dividir-se em novas partes, sem nunca chegar ao fim da sua divisão. Considerai a fineza dos corpúsculos que se libertam de um corpo vivo, graças aos quais os nossos cães ingleses, guiados pelo olfacto, são capazes de seguir a pista de um animal. Será que a raposa, no fim da sua corrida, nos parece mais pequena? Ora, é justamente em virtude de tais corpúsculos que se verificam os fenómenos de atracção que alguns celebram como Acção à Distância, que a distância não é, e assim não é magia, mas se dá pelo contínuo comércio de átomos. E assim se verifica com a atracção por sucção, como a da água ou do vinho por meio de um sifão, com a atracção do íman sobre o ferro, ou a atracção por filtração, como quando pondes uma tira de algodão num recipiente cheio de água, deixando pender para fora do recipiente boa parte da tira, e vedes a água subir para além do bordo e pingar no chão. E a última atracção é a que tem lugar por meio do fogo, que atrai o ar circundante com todos os corpúsculos que nele vorticam: o fogo, actuando de acordo com a sua própria natureza, traz consigo o ar que está em seu redor como a água de um rio arrasta a terra do seu leito. E como o ar é húmido e o fogo seco, eis que se agarram um ao outro. Portanto, para ocupar o lugar do que foi levado pelo fogo, é necessário que venha outro ar das vizinhanças, senão criar-se-ia o vácuo.

- Então negais o vácuo?

- De modo nenhum. Digo que, assim que o encontra, a natureza procura enchê-lo de átomos, numa luta para conquistar todas as suas regiões. E se assim não fosse, o meu Pó de Simpatia não poderia agir, como afinal vos mostrou a experiência. O fogo provoca com a sua acção um constante afluxo de ar e o divino Hipócrates purificou da peste uma província inteira mandando acender por toda a parte grandes fogueiras. Sempre em tempo de peste matam-se gatos e pombos e outros animais quentes que exsudam espíritos de contínuo, para que a alma tome o lugar dos espíritos libertados no decorrer dessa evaporação, fazendo que os átomos impestados se agarrem às penas e ao pêlo desses animais, como o pão tirado do forno atrai a si a espuma dos tonéis e altera o vinho se o meterem sobre a tampa do tonel. Como acontece de resto se expuserdes ao ar uma libra de sal de tártaro calcinado e ateado como deve ser, que dará dez libras de bom óleo de tártaro. O médico do Papa Urbano VIII contou-me a história de uma freira romana a quem pelos demasiados jejuns e orações, se aqueceu tanto o corpo que os ossos ficaram todos exsicados. Esse calor interno, com efeito, atraía o ar que se corporizava nos ossos como faz no sal de tártaro, e saía no ponto onde reside a descarga da serosidade, e portanto pela bexiga, de modo que a pobre santa dava mais de duzentas libras de urina em vinte e quatro horas, milagre que todos assumiam como prova da sua santidade.


(in "A Ilha do Dia Antes", Umberto Eco, Círculo de Leitores)

Caixinha de surpresas

É o que é a blogosfera. Nomeadamente as referências a alguns blogs que nos surgem nos contadores de visitas. Deve ser por causa do botão "next blog" do Blogger...

O que é certo é que já descobri assim um blog de poesia escrito em caligrafia tamil e outro com um título parecido (não me lembro exactamente) a "the space between my fingers was made for you to fill in".

quarta-feira, novembro 03, 2004

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Paz


(Paul Gauguin)

Pó de Simpatia (III)

Igby pôs Roberto ao corrente do seu segredo. A orbe, ou esfera do ar, está cheia de luz, e a luz é uma substância material e corpórea; noção que Roberto recebeu de bom grado pois no salão Dupuy já ouvira dizer que até a luz não era mais que poeira finíssima de átomos.

- É evidente que a luz - disse Igby -, saindo incessantemente do Sol, e lançando-se a grande velocidade para todos os lados em linhas rectas, onde encontra algum obstáculo no seu caminho pela oposição de corpos sólidos e opacos, se reflecte ad angulos aequales, e retoma outro percurso, até que se desvia para um lado pelo encontro com outro corpo sólido, e assim continua até quando se apaga. Tal como no jogo da bola à corda, onde a bola impelida contra uma parede faz ricochete desta para a parede defronte, e muitas vezes realiza um inteiro circuito, tornando ao ponto de onde havia partido. Ora o que acontece quando a luz cai sobre um corpo? Os raios fazem nele ricochete caindo átomos, pequenas partículas, como a bola poderá levar consigo parte do estuque fresco da parede. E como estes átomos são formados pelos quatro Elementos, a luz com o seu calor incorpora as partes viscosas, e transporta-as para longe. Prova disto é que se tentardes secar um pano húmido ao fogo vereis que os raios que o pano reflete trazem consigo uma espécie de névoa aquosa. Estes átomos errantes são como cavaleiros em corcéis alados que vão pelo espaço até que o Sol no ocaso lhes retira os seus Pégasos e os deixa sem cavalgadura. E então eles tornam a precipitar-se em massa para a terra de que provêm. Todavia estes fenómenos não se dão só com a luz, mas também por exemplo com o vento, o qual não é senão um grande rio de átomos semelhantes, atraídos pelos corpos sólidos terrestres...

- E o fumo - sugeriu Roberto.

- Claro. Em Londres obtêm o fumo do carvão de terra que vem da Escócia, que contém uma grande quantidade de sal volátil muito acre; este sal transportado pelo fumo disperde-se no ar, arruinando as paredes, os leitos e os móveis de cor clara. Quando se tem fechada uma câmara por alguns meses, depois encontra-se nela uma poeira negra que cobre tudo, como se vê uma branca nos moinhos e nas padarias. E na Primavera todas as flores parecem sujas de gordura.


(in "A Ilha do Dia Antes", Umberto Eco, Círculo de Leitores)

terça-feira, novembro 02, 2004

Sobre a abstenção

Será por ingenuidade ou por insatisfação minhas que não me passa nunca pela cabeça deixar de votar quando há eleições?

Faço sempre o passeio até à "assembleia de voto" com um sorriso nos lábios mal disfarçado e com a solenidade dos dias especiais. Penso nas moles de gente que nas décadas, séculos, milénios anteriores não tiveram oportunidade de votar. Penso nas moles de gente que na actualidade não têm ainda oportunidade de votar. Nesses dias, conto tanto como outros que tiveram mais oportunidades do que eu. Por tudo isso, digo presente. Assumo a minha quota parte de responsabilidade pelo futuro da sociedade em que vivo. E, admito, reprovo quem não assume essa responsabilidade.

Pelo que se tem sabido, espera-se que as eleições presidenciais de hoje nos Estados Unidos tenham um nível de participação "elevado", há muito não visto. O que significa uma abstenção de cerca de 40% dos eleitores...

Alguns dizem que isto acontece porque nos Estados Unidos o estado tem um papel muito menos importante do que, por exemplo, na Europa. Como se o liberalismo económico implicasse alienação da política.

Outros dizem que é por a democracia já estar muito consolidada e as necessidades básicas estarem essencialmente resolvidas que há menos participação. Como se essas coisas estivessem automaticamente garantidas para todo o sempre.

Hoje, deixo um cumprimento especial para quem, como eu, vota.

Forças da natureza


Paul Gauguin, "Fatata Te Moua" ("No sopé de uma montanha"), 1892

Reflexividade

No filme "The Five Obstructions", de Jørgen Leth e Lars von Trier (apresentado no DocLisboa 2004), há uma frase solta mais ou menos assim: "o bloco de notas é o aperfeiçoamento da vida do homem." (E os blogs são os blocos de notas modernos, não é?) O que acham disto?

[Esta entrada é escrita lembrando um teste que esteve na moda há uns meses, com o título "Does Your Blog Own You?"]

Pó de Simpatia (II)

Creio que, numa época em que as desinfecções eram sumárias, só o facto de lavar diariamente a ferida já era uma causa suficiente de cura, mas não se pode censurar Roberto se passou os dias seguintes a interrogar o amigo sobre aquele tratamento, que além do mais lhe recordava a empresa do carmelita a que assistira na sua infância. Salvo que o carmelita aplicara o pó na arma que havia provocado o dano.

- Com efeito - respondeu Igby -, a disputa sobre o unguentum armarium dura há muito tempo, e o primeiro a falar dele foi o grande Paracelso. Muitos usam uma pasta gordurosa, e consideram que a sua acção se exerce melhor sobre a arma. Mas como vós compreendeis, arma que fere ou pano que enfaixa são a mesma coisa, porque o preparado se deve aplicar onde há sinais de sangue do ferido. Muitos, vendo tratar a arma para tratar os efeitos do golpe, pensam numa operação de magia, enquanto o meu Pó de Simpatia tem os seus fundamentos nas operações da Natureza!

- Porquê Pó de Simpatia?

- O nome aqui também poderá levar ao engano. Muitos têm falado de uma conformidade ou simpatia que ligaria entre si as coisas. Agrippa diz que para suscitar o poder de uma estrela será preciso fazer referência às coisas que lhe são semelhantes e portanto recebem a sua influência. E chama simpatia a esta atracção mútua das coisas entre si. Como sucede com o pez, com o enxofre e com o óleo se prepara a madeira para receber a chama, assim empregando coisas conformes à operação e à estrela, reverbera-se um benefício particular sobre a matéria justamente disposta por meio da alma do mundo. Para influir sobre o sol dever-se-ia assim agir sobre o ouro, solar por natureza, e sobre as plantas que se viram para o sol, ou que se vergam ou fecham as folhas ao pôr do Sol para as reabrir ao seu nascimento, como o lótus, a peónia ou a quelidónia. Mas estas são lendas, não basta uma analogia deste género para explicar as operações da Natureza.


(in "A Ilha do Dia Antes", Umberto Eco, Círculo de Leitores)

segunda-feira, novembro 01, 2004

"Abruptozinho"?!

Esta pastora corou.

Tim Sebastian


"Hard Talk with Tim Sebastian", BBC World

Serei só eu a gostar das entrevistas "duras" deste Senhor?

Samovar


Cortesia Russian Tea Time

Com a mente a divagar pelos caminhos da ciência e da ilusão em cenários longínquos, lembrei-me de partilhar uma coisa que aprendi com a internet (graças a São Google), depois de tantas vezes lido em autores russos: o aspecto de um samovar!