Cândido, mais tocado de compaixão que de horror, deu ao espantoso mendigo os dois florins que tinha recebido do bondoso anabaptista Jacques. O fantasma fixou-o longo tempo, chorou, e saltou-lhe ao pescoço num abraço. Cândido, assustado, recuou.
- Ah! - diz o mísero ao outro mísero - já não reconheces o teu amigo Pangloss?
- O quê? É o meu querido mestre? Nesses estado lastimoso? Mas que tremenda desgraça lhe aconteceu? Porque saiu do mais formoso dos castelos? Que é feito da menina Cunegundes, a pérola das raparigas, a obra-prima da Natureza?
- Estou sem forças - respondeu Pangloss.
Imediatamente Cândido levou-o para a estrebaria do anabaptista e deu-lhe um pedaço de pão a comer. Quando o viu refeito tornou a perguntar:
- Que é feito de Cunegundes?
- Morreu - respondeu o outro.
Cândido, ouvindo isto, desmaiou; o amigo reanimou-o com umas gotas de péssimo vinagre que por acaso achou na estrebaria. Cândido abriu os olhos e exclamou:
- Cunegundes morreu! Onde está esse mundo que é o melhor dos mundos? Mas de que doença morreu ela? Não seria pelo desgosto de me ver expulso do formoso castelo do barão com grandes pontapés no traseiro?
- Não - respondeu Pangloss - morreu esventrada pelos soldados búlgaros, depois de ter sido violada tanto quanto se pode sê-lo. O barão morreu também, com a cabeça esmigalhada, por tentar defender a ilha. A baronesa foi partida em bocados, e o meu pobre pupilo foi tratado com a mesma fereza que a irmã. Quanto ao castelo, não ficou dele pedra sobre pedra; destruiram as granjas; não deixaram um carneiro, um pato, uma árvore. Mas fomos inteiramente vingados, porque os soldados árabes fizeram o mesmo numa baronia das vizinhanças, e que pertencia a um fidalgo búlgaro.
(in "Cândido", Voltaire, Guimarães Editores)
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