domingo, outubro 30, 2005


© Abrigo de Pastora 2005

A Cavafy, nos dias distantes de 1903

Nenhum tão solitário mesmo quando
acordava com os olhos do amigo nos seus olhos
como este grego que nos versos se atrevia
a falar do que tanto se calava
ou só obliquamente referia -
nenhum tão solitário e tão atento
ao rumor do desejo e das ruas de Alexandria.

1964

(Eugénio de Andrade)

quarta-feira, outubro 26, 2005

N.

Nastassja Kinski

Espantoso

Tornou-se ritual. Os grevistas dizem que a adesão à greve foi de 90%. As entidades patronais, que foi de 10%. Depois, vem o comentador e diz que a verdade deve ser a média. E todos acham normal.

Elementos

Marte cada vez mais próximo. Os plátanos, obedientes, vestiram troncos e folhas de camuflados bicolores.

domingo, outubro 23, 2005

Igualdade de oportunidades, onde está?

A escola com melhor posição no último ranking publicado é um colégio que cobra 400 euros por mês e tem turmas de 8 alunas.

(Carlos do Carmo, música daqui)


Gaivota

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

(Alexandre O'Neill)

sábado, outubro 22, 2005




Sonnet 130

My mistress' eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips' red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask'd, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound;
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground:
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare.


(William Shakespeare)


A canção anterior (que bem merece ser ouvida!) tem uma história que pode ler-se na Wikipedia, aqui. O título do álbum, "Nothing like the Sun", por sua vez, foi inspirado neste belo soneto de Shakespeare.

Frágil

E amanhã a chuva levará
O sangue que a luta deixou derramar
Na pele a dor do aço tão cruel
Jamais a nossa voz vai calar

Um ato assim pode acabar
Com uma vida e nada mais
Porque nem mesmo a violência
Destrói ideais
Tem gente que não sente que o mundo assim
Ficará frágil demais

Choro eu e você
E o mundo também, e o mundo também
Choro eu e você
Que fragilidade, que fragilidade

(Sting)

*


Fragile

If blood will flow when flesh and steel are one
Drying in the colour of the evening sun
Tomorrow's rain will wash the stains away
But something in our minds will always stay

Perhaps this final act was meant
To clinch a lifetime's argument
That nothing comes from violence and nothing ever could
For all those born beneath an angry star
Lest we forget how fragile we are

On and on the rain will fall
Like tears from a star, like tears from a star
On and on the rain will say
How fragile we are, how fragile we are

On and on the rain will fall
Like tears from a star, like tears from a star
On and on the rain will say
How fragile we are, how fragile we are
How fragile we are, how fragile we are


(Sting)

segunda-feira, outubro 17, 2005

Chapéus-de-chuva


(Auguste Renoir)

A palavra impossível

Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.

(Adolfo Casais Monteiro)

sábado, outubro 15, 2005

Feminino?


Simone de Beauvoir

A escrita, a liberdade e a vida

"Vivir para contarla" (de Gabriel García Márquez) é um título que muito aprecio. Para lá da óbvia causalidade que uma biografia implica, ele remete para o amadurecimento em que a boa escrita se apoia. A História dá-nos exemplos abundantes de seres humanos que compraram a sua liberdade (alguns, a imortalidade) através da escrita. Um homem senta-se, está consigo na sua solidão e, escrevendo, muda o mundo, porque agita as mentes. Mas para escrever e deixar marca não basta querer. Não bastam copiosos exercícios académicos. É preciso viver. Uma vida feita da sujeição aos agentes da natureza que provocam as rugas e as cãs, de sofrimentos vários, da paciência da observação dos acasos e do exercitar do livre-arbítrio possível, a cada dia que passa. Só depois o escritor pode transmitir o que tem de único, o seu testemunho insubstituível, a sua herança para o futuro. E, então, felizes os que o lêem.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Será que, será que, será?

Podres poderes

enquanto os homens exercem seus podres poderes
motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
e perdem os verdes somos uns boçais
queria querer gritar setecentas mil vezes
como são lindos, como são lindos os burgueses
e os japoneses mas tudo é muito mais
será que nunca faremos senão confirmar
a incompetência da américa católica
que sempre precisará de ridículos tiranos?
será, será que , que será , que será, que será
será que essa minha estúpida retórica
terá que soar, terá que se ouvir por mais mil anos?
enquanto os homens exercem seus podres poderes
índios, padres e bichas, negros e mulheres
e adolescentes fazem o carnaval
queria querer cantar afinado com eles
silenciar em respeito ao seu transe , num êxtase
ser indecente mais tudo é muito mau
ou então cada paisano e cada capataz
com sua burrice fará jorrar sangue demais
nos pantanais, nas cidades , caatingas e nos gerais
será que apenas os hermetismos pascoais
e os tons e os mil tons, seus sons e seus dons geniais
nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?
enquanto os homens exercem seus podres poderes
morrer e matar de fome, de raiva e de sede
são tantas vezes gestos naturais
eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
daqueles que velam pela alegria do mundo
indo e mais fundo tins e bens e tais
será que nunca faremos senão confirmar
a incompetência da américa católica
que sempre precisará de ridículos tiranos?
será, será que, que será, que será, que será,
será que essa minha estúpida retórica
terá que soar, terá que se ouvir por mais mil anos?
ou então cada paisano e cada capataz
com sua burrice fará jorrar sangue demais
nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais
será que apenas os hermetismos pascoais
e os tons e os mil tons, seus sons e seus dons geniais
nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?
enquanto os homens exercem seus podres poderes
morrer e matar de fome de raiva e de sede
são tantas vezes gestos naturais
eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
daqueles que velam pela alegria do mundo
indo mais fundo
tins e bens e tais
tudo mais fundo
tins e bens e tais
tudo mais fundo
tins e bens e tais


(Caetano Veloso)

Saudades do futuro


(Zhu Shi Jie, Cerejeiras em Flor)

Coisas estranhas que se ouvem sem querer

Na rua, uma mulher ao telemóvel:
- Ó, pá, passei a tarde no cabeleireiro.

Num transporte público, um brasileiro ao telemóvel:
- Esse que eu lhe ia arranjar também é sem contrato. Mas se você está bem nesse, é melhor ficar.

sábado, outubro 08, 2005

De uma wish list para uma cidade melhor


(UW)

Árvores. Muitas árvores. Dez vezes mais árvores. Não só acantonadas em jardins, mas em todos os passeios, com sombras que se vejam!

quinta-feira, outubro 06, 2005

Se perguntarem: das artes do mundo?

Se perguntarem: das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.


(Herberto Helder)