quinta-feira, dezembro 01, 2016

Luto por Antínoo

As mensagens afluíram; Pâncrates enviou-me o seu poema finalmente terminado; não era mais que um medíocre centão de hexâmenos homéricos, mas o nome que figurava ali quase em cada linha tornava-o para mim mais comovente que muitas obras-primas. Numénio mandou-me uma Consolação segundo as regras; passei uma noite a lê-la; não lhe faltava nenhum lugar-comum. Estas fracas defesas erguidas pelo homem contra a morte desenvolviam-se em duas linhas: a primeira consistia em no-la apresentar como um mal inevitável; em nos lembrar que nem a beleza, nem a juventude, nem o amor escapavam à podridão; em nos provar, enfim, que a vida e o seu cortejo de males são ainda mais horríveis que a própria morte, e que vale mais morrer que envelhecer. Servem-se destas verdades para nos inclinar à resignação; elas justificam sobretudo o desespero. A segunda linha de argumentos contradiz a primeira, mas os nossos filósofos não se preocupam muito com isso: já se não tratava de nos resignarmos à morte, mas de a negar. Só a alma conta; apresentavam arrogantemente como um facto a imortalidade daquela entidade vaga que nunca vimos funcionar na ausência do corpo antes de ter o trabalho de lhe provar a existência. Eu não estava tão certo: pois que o sorriso, o olhar, a voz, estas realidades imponderáveis, estavam destruídos, porque não a alma? Esta não me parecia forçosamente mais imaterial que o calor do corpo. Afastávamo-nos do despojo onde essa alma já se não encontrava: era, todavia, a única coisa que me restava, a única prova de que aquele vivente existira. A imortalidade da raça passava por suavizar a morte de cada homem: importava-me pouco que se sucedessem gerações de Bitínios, até o fim dos tempos, nas margens do Sangários. Falava-se de glória, bela palavra que dilata o coração, mas esforçavam-se por estabelecer entre ela e a imortalidade uma confusão mentirosa, como se o traço de um ser fosse a mesma coisa que a sua presença. Mostravam-me o deus resplandecente no lugar do cadáver; esse deus fora feito por mim; acreditava nele à minha maneira, mas o destino póstumo, o mais luminoso no fundo das esferas estelares, não compensava esta vida breve; o deus não substituía o vivente perdido. Indignava-me este furor que o homem tem de desdenhar os factos em proveito das hipóteses, de não reconhecer os seus sonhos como sonhos. Compreendia de outra forma as minhas obrigações de sobrevivente. Esta morte seria vã se eu não tivesse a coragem de a encarar de frente, de me ligar a estas realidades do frio, do silêncio, do sangue coagulado, dos membros inertes, que o homem recobre tão depressa de terra e de hipocrisia; preferia tactear na noite sem o auxílio de fracas lâmpadas. Sentia que à minha volta começavam a melindrar-se com uma dor tão longa: a violência escandalizava, aliás mais que a causa. Se eu me tivesse entregue às mesmas lamentações pela morte de um irmão ou de um filho ter-me-iam igualmente censurado por chorar como uma mulher. A memória da maior parte dos homens é um cemitério abandonado, onde jazem, sem honras, mortos que eles deixaram de amar. Toda a dor prolongada insulta o seu esquecimento.

in "Memórias de Adriano", de Marguerite Yourcenar, Ulisseia, tradução de Maria Lamas

"Como não morrer de fome em Portugal"?

Terminei há dias a leitura de um terceiro livro em pouco tempo de estrangeiros sobre as suas impressões no seu novo país. Depois de um retrato do Reino Unido por um português ("Bifes mal passados", de João Magueijo) e outro da Suíça por um inglês ("Swiss Watching", de Diccon Bewes), ambos muito interessantes e hilariantes, o humor inglês infiltrou-se num retrato de Portugal visto por uma inglesa ("Como não morrer de fome em Portugal", de Lucy Pepper).

Todos estes livros sofrem de um problema básico, que é serem demasiado pessoais, e não se conseguir distinguir o que é geral ou, pelo menos, comum, da reação de um nacional de um país A num outro país B.

No entanto, o livro de Lucy Pepper não deixa de ter mérito, porque é um caso raro de alguém que se integrou bastante na vida portuguesa, e que levanta questões que não podem deixar de nos interpelar.

Por exemplo, tal como há o preconceito internacional de que os ingleses cozinham mal, há entre os portugueses o preconceito de que a nossa cozinha não está nada mal. É apetitosa, ainda que simples. (Isso vê-se naqueles programas de televisão pimba ao fim de semana, em que o cozinheiro mais popular explica que o segredo é "só pôr sal" na carne que vai grelhar, para que se distinga bem o sabor da carne. Simplicidade, sim. Elaboração e sofisticação, confessamente nenhuma)

Quando temos a experiência de tentar mostrar as mil maneiras de comer bacalhau a algum amigo estrangeiro é que nos apercebemos que o bacalhau tem um sabor intenso e que nos levou décadas de habituação até que o apreciássemos devidamente. E que os doces portugueses têm todos imenso açúcar e, sim, ovos.

Mas a sério, Lucy Pepper, as sopas portuguesas mais saborosas são o caldo verde, a sopa de feijão e a canja, além das outras de que fala, com caldo cor de laranja e entulho a boiar, que costumam chamar-se sopas de legumes. Como denegrir assim a sopa portuguesa, ainda por cima enquanto se fazem elogios à horrível bata das donas de casa mais populares?

Todo o livro é inverosímil na parte em que se diz mal da sogra e da prestimosa vizinha, que faziam sopas para uma semana para as filhas da moça inglesa, que tinha como alternativa "vegetais cozidos"! (Cozidos, não estufados nem assados nem outra alternativa saborosa... Será que nem sequer aprendeu a fazer um refogadinho? Pobres crianças.) Só acreditei que a autora existia mesmo quando encontrei na internet fotografias mais focadas do que aquela com que costuma apresentar-se e, claro, depois da descrição do seu parto em Portugal. Mas se existe, como é que escreveu tudo aquilo? Divorciou-se e quer vingar-se do marido?

A descrição do sistema de saúde em Portugal - monstruoso - peca por defeito. Devia ser denunciado internacionalmente, todos os dias, como violação de elementares direitos humanos.

O horror pelo urbanismo português, em particular na região metropolitana de Lisboa, só pode ser compreendido. (Mas, lá está, depois da revolução, permitiu a muitas famílias migrantes um teto seguro para morar.)

Uma coisa que me impressionou foi a dificuldade da autora em ir à praia. Claro que andar de carro não ajuda nada a ir para as praias da Costa da Caparica. Ir de transportes públicos é muito mais simples, a partir do Areeiro, Campo Pequeno, Praça de Espanha ou Alcântara, e com a possibilidade de apanhar os pequenos comboios ao longo das praias. (Estes são caros para bolsas portuguesas, mas haja estrangeiros que desfrutem deles.) Já o passeio nas dunas, por favor. É ótimo. Para confrontar com a descrição hilariante do João Magueijo sobre as lamacentas praias inglesas.

Sobre as classes sociais sem mobilidade, claro que os ingleses são especialistas nesse horror, com uma monarquia no século XXI. Àparte as famílias ricas da linha de Cascais, com fortunas do tempo da ditadura (ou algo que o valha), a revolução permitiu a mobilidade social por via da educação. O capitalismo ultra-liberal cristalizou entretanto a estrutura que se formou, ampliando as desigualdades... também por via da educação, com colégios privados que permitem as notas altas para entrar nos melhores cursos superiores, e com as universidades privadas de vão de escada, inauguradas pelo cavaquismo.

Em conclusão, foi uma leitura que valeu a pena e que se recomenda.

quarta-feira, junho 15, 2016

quarta-feira, junho 01, 2016

Matar uma cotovia

Mr. B. B. Underwood nunca tinha escrito de forma tão amarga e estava-se nas tintas se lhe cancelassem alguma publicidade e algumas assinaturas. (Só que Maycomb não jogava segundo essas regras: Mr. Underwood podia gritar até suar e escrever o que quisesse que não perdia a publicidade e as assinaturas. Se ele queria fazer figuras tristes no seu próprio jornal, isso era lá com ele.) Mr. Underwood não escreveu sobre os erros judiciários. Escreveu antes de uma maneira que até as crianças podiam perceber. Mr. Underwood disse simplesmente que era pecado matar os aleijados, quer estivessem de pé, sentados ou a fugir. Ele comparava a morte do Tom à matança estúpida das aves perpetrada por caçadores e crianças, e Maycomb pensou que ele estava a tentar escrever um editorial suficientemente poético para voltar a aparecer numa futura impressão do "The Montgomery Advertiser".

Como poderia ser assim?, pensava eu, ao ler o editorial de Mr. Underwood. Matança estúpida... O Tom tinha sido alvo de um processo legal justo até ao dia da sua morte; ele tinha sido julgado e condenado por doze homens bons e honestos; o meu pai tinha lutado por ele até ao fim. Então, de súbito, a alegoria de Mr. Underwood tornou-se clara para mim: o Atticus tinha usado todos os instrumentos ao alcance dos homens livres para salvar o Tom Robinson, mas, naquele secreto tribunal que mora no coração dos homens, o Atticus não tinha a mais pequena hipótese. O Tom era um homem morto a partir do momento em que a Mayella Ewell abriu a boca e desatou aos gritos.


("To Kill a Mockingbird", de Harper Lee)

segunda-feira, abril 25, 2016