segunda-feira, janeiro 31, 2005
Curioso
Do ponto de vista desta pastora, a abstenção em eleições nacionais é o mesmo que a saída da sala numa assembleia para evitar votar: lastimável.
O azul dos olhos de Salgueiro Maia
É também a pensar nele e nos que se arriscaram naquela madrugada que transformou uma longa noite num imenso dia (e em todos os que tiveram que morrer e penar para que essa madrugada se tornasse imperiosa) que, quando me sentir indecisa sobre uma escolha eleitoral, não deixarei de, humildemente, "dar o corpo ao manifesto", e irei votar. Mesmo que vote em branco. Ainda acredito na democracia que me foi oferecida tão generosamente. Mesmo que continuemos a ser o tal povo que não se governa nem se deixa governar...
Borboleta branca
(Miriam A.Kilmer)
Antigamente, dizia-se que, quando aparecia a alguém uma borboleta branca, isso significava que essa pessoa ia receber uma carta com boas notícias.
No Inverno não se vêem borboletas, porque migraram para paragens mais quentes ou porque são lagartas ou crisálidas. Mas novas borboletas brancas hão-de vir, quando for o seu tempo.
On voit mourir toute chose animée
Lors que du corps l'âme subtile part.
Je suis le corps, toi la meilleure part:
Où es-tu donc, ô âme bien-aimée?
Ne me laissez par si long temps pâmée,
Pour me sauver après viendrais trop tard.
Las! ne mets point ton corps en ce hasard:
Rends-lui sa part et moitié estimée.
Mais fais, Ami, que ne soit dangereuse
Cette rencontre et revue amoureuse,
L'accompagnant, non de sévérité,
Non de rigueur, mais de grâce amiable,
Qui doucement me rende ta beauté,
Jadis cruelle, à présent favorable.
Louise Labé (1524-1566)
domingo, janeiro 30, 2005
Registo
sábado, janeiro 29, 2005
Interessante
"Democracia", de Robert A. Dahl, editado pela "Memórias do Mundo". Para os dias de hoje.
Silêncio (II)
- Não estava em silêncio. Sofria a teu lado.
- Mas tu mandaste embora Judas: «O que tens a fazer, fá-lo depressa!» O que foi feito de Judas, Senhor?
- Eu não lhe disse isso. Disse, sim, que fizesse quanto antes aquilo que ia fazer, do mesmo modo que te disse a ti: «Pisa!» Porque Judas tinha dorido o coração, como tu agora.
Foi nesse momento que ele assentou o pé no
fumie, sujo de sangue e de pó. Os cinco dedos do pé tinham calcado o rosto do homem que ele amava. Ainda agora não conseguia compreender o terrível acesso de alegria que sentira naquele momento.- Não há fortes nem fracos... Quem pode garantir que os fracos sofram menos que os fortes? - O padre falava agora apressadamente, voltado para a porta. - Se já não há padres neste país que te confessem, eu te ouvirei. Dirás depois o acto de contrição... e irás em paz...
Kichijiro chorava tentando sufocar os soluços. Até que, por fim, largou a porta. Sebastião Rodrigues tinha tido a ousadia de administrar a esse homem um sacramento que só um sacerdote no legítimo exercício do seu munus lhe podia dispensar. Os seus companheiros iriam atacá-lo violentamente; dir-lhe-iam que era um sacrilégio, mas, traindo-os a eles, sabia muito bem que não traíra o Senhor. Continuava a amá-lo, embora de uma maneira muito diferente. Tudo o que acontecera até esse momento fora necessário para chegar a esse amor.
«Sou agora o último sacerdote neste país. O Senhor não ficará em silêncio. Mesmo admitindo que ele se mantenha calado, toda a minha vida, até hoje, falará dele para todo o sempre.»
(in "Silêncio", Shusaku Endo, Círculo de Leitores)
Silêncio (I)
«Também eu pisei o fumie. Também o meu pé esteve por instantes sobre o rosto dessa imagem, o rosto com que sonhei centenas de vezes. O rosto com que nunca deixei de sonhar, errante pelos montes e, depois, metido na prisão. O rosto do homem que eu quis amar toda a vida. Esse rosto voltou-se para mim na placa do fumie. Era um rosto exausto, encovado, de olhos tristes. E esses olhos tristes disseram-me: «Pisa-me! Sim, pisa-me! Tens os pés doridos, não é? Como tantos outros que me pisaram até ao dia de hoje... A mim basta-me que os pés vos doam. Eu partilho da vossa dor, vivo o vosso sofrimento. Para isso é que estou aqui.»
(in "Silêncio", Shusaku Endo, Círculo de Leitores)
["Silêncio", de 1967, é a história, baseada em factos reais, da viajem do missionário jesuíta Sebastião Rodrigues ao Japão, no séc. XVII, numa altura em que este país tinha as suas fronteiras encerradas. Sebastião Rodrigues lutou contra a agonia do catolicismo no Japão, cujas autoridades perseguiam, torturavam e crucificavam os católicos, que a dado momento passaram a considerar indesejáveis. Os padres missionários reagiram passando à clandestinidade. Capturados, muitos foram forçados a apostatar, pisando a imagem de Cristo. Shusaku Endo (1923-1996) era católico.]
sexta-feira, janeiro 28, 2005
Claro futuro para o equilibrista em cima do muro
Então tá combinado, é quase nada
É tudo somente sexo e amizade
Não tem nenhum engano nem mistério
É tudo só brincadeira e verdade
Podemos ver o mundo juntos
Sermos dois e sermos muitos
Nos sabermos sós sem estarmos sós
Abrirmos a cabeça para que afinal
Floresça o mais que humano em nós
Então tá tudo dito
E é tão bonito
E eu acredito num claro futuro
De música, ternura e aventura
Pro equilibrista em cima do muro
Mas e se o amor pra nós chegar
De nós, de algum lugar
Com todo o seu tenebroso esplendor?
Mas e se o amor já está
Se há muito tempo que chegou e só nos enganou?
Então não fale nada
Apague a estrada
Que seu caminhar já desenhou
Porque toda razão, toda palavra
Vale nada quando chega o amor
(Caetano Veloso)
quinta-feira, janeiro 27, 2005
60 anos depois da libertação do campo de concentração de Auschwitz
(E poderemos alguma vez compreender os neo-nazis? E os deputados alemães que, ainda há dias, recusaram prestar homenagem às vítimas dos nazis?)
quarta-feira, janeiro 26, 2005
Dúvida
Do not go gentle into that good night
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.
Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.
Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.
Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.
(Dylan Thomas)
terça-feira, janeiro 25, 2005
Solilóquio sobre campanhas eleitorais
(inspirado nos "Dilemas de voto" dos monólogos da Isabel)
1. Ouvi alguém dizer que as pessoas tendem a votar no partido tradicional dos progenitores.
2. Percebe-se que as pessoas que se dispõem a responder a sondagens não dão necessariamente uma boa amostra do universo dos eleitores.
3. Li que a divulgação de resultados de sondagens pode influenciar os indecisos.
4. Li que os partidos encomendam as suas próprias sondagens.
5. Parece-me que os candidatos adaptam a sua campanha aos resultados das sondagens a meio das campanhas eleitoral. O que até seria aceitável, se as campanhas não fossem orquestradas por especialistas em marketing.
6. Lembro-me de, noutras campanhas, ler que as sondagens encomendadas por cada partido costumavam apresentar bons resultados para o respectivo partido cliente.
7. Reparo que as margens de erro são conhecidas, mas as diferentes sondagens dão resultados discrepantes.
8. Sei que a estatística não é uma ciência exacta, e que os resultados podem ser manipulados.
9. Pergunto-me se os resultados eleitorais não dependem demasiado de centros de sondagens e de marketeers.
10. Não me interessa a vida privada dos candidatos. Mas gostaria de saber de que massa são feitos.
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com «ele» na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:
O «homem» vai andando com as suas ideias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar,
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é – o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.
(Alberto Caeiro)
Paolo e Francesca
(Dante Gabriel Rossetti)
E ela a mim: «Nenhuma maior dor
do que a de recordar tempo feliz
já na miséria; e o sabe o teu doutor.
Mas tu, se em conhecer qual a raiz
primeira deste amor, pões tal afeito,
di-lo-ei como quem chora em quanto diz.
Um dia a ler com ele me deleito,
de Lançarote, o amor como o prendeu:
Éramos sós e nada a nós suspeito.
Várias vezes o olhar nos suspendeu
essa leitura e deu pálido aviso;
mas foi um ponto só que nos venceu.
Quando lemos do desejado riso
a ser beijado por tão grande amante,
e este, que de mim seja indiviso,
a boca me beijou todo anelante.
Galeoto foi o livro e quem o disse:
nesse dia não lemos adiante.»
Como um espírito isto referisse,
chorava o outro, e em mim tal pena vi
que foi qual se a morrer eu me sentisse;
e como um corpo morto assim caí.
(in "A Divina Comédia", Dante, tradução de Vasco Graça Moura, Círculo de Leitores)
O Universo não é uma ideia minha
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
(Alberto Caeiro)
segunda-feira, janeiro 24, 2005
A cavalo dado...
E quem me manda perder a paciência com tanta lentidão? (Será a limitação das linhas onde estou? Será o servidor do blogger?) E porque não guardo todas as alterações do template, para os casos em que o Blogger o faz desaparecer, como aconteceu? (Aos blogs que detectaram o seu desaparecimento na coluna da direita, agradeço que avisem!)
Fora estes detalhes, viva o Blogger e a sua interface simples (sistema de comentários à parte)! (E vivam os blogs, que ainda hão-de incubar prémios Nobel da literatura...) E o Hello, com a sua capacidade de diminuar por nós as imagens para tamanhos decentes! (Porque "uma imagem vale por mil palavras".)
Quem sabe os programadores do Blogger e do Hello não passam por aqui e lêem uma tradução desta entrada...
domingo, janeiro 23, 2005
E se...?
2. E se houvesse prémios anuais, com visibilidade, para diferentes profissões? Por que é que só sabemos dos prémios Pessoa, Camões, do Prémio Gulbenkian de Ciência e... dos Globos de Ouro?
O melhor dos mundos possíveis
- O senhor é decerto o proprietário duma vasta e magnífica fazenda - disse Cândido ao turco.
- Tenho apenas vinte jeiras - respondeu o turco - cultivo-as com os meus filhos. O trabalho afasta de nós três calamidades: o aborrecimento, o vício e a pobreza.
Cândido, ao voltar para a granja, ruminou profundamente a frase do turco. Disse a Pangloss e a Martin:
- Este bom velhote parece-me estar na posse duma sorte preferível à dos seis reis com quem nós tivemos a honra de cear.
- As grandezas - disse Pangloss, são muito perigosas, segundo dizem todos os filósofos. Senão vejamos: Eglon, rei dos moabitas, foi assassinado por Aod; Absalão foi pendurado pelos cabelos e foi atravessado por três dardos; o rei Madab, filho de Jeroboão, foi morto por Baza; o rei Ela por Zambri; Ochosias por Jehu; Atalia por Joïada; os reis Joaquim, Jechonias, Sedecias, foram escravizados. Toda a gente sabe como morreram Creso, Astiago, Dario, Denis de Siracusa, Pirro, Perseu, Aníbal, Jugura, Ariovisto, César, Pompeu, Nero, Otão, Vitelius, Domiciano, Ricardo II de Inglaterra, Eduardo II, Henrique II, Ricardo III, Maria Stuart, Carlos I, os três Henriques de França, o imperador Henrique IV. Toda a gente sabe...
- Também sei - interrompeu Cândido - que é preciso cultivar a nossa horta.
- Tens razão - respondeu Pangloss - porque quando o homem foi posto no Paraíso mandaram-no trabalhar; o que prova não ser o homem um ente criado para o repouso.
- Trabalhemos sem discorrer - disse Martin - porque é o único meio de tornar a vida sofrível.
Todo o grupo concordou com a proposta e cada qual tratou de mostrar os seus talentos. A granja rendeu muito dinheiro. Cunegundes estava feia, para falar verdade, como um mostrengo, mas soube ostentar habilidades de doceira; Paquette bordava; a velha cuidava das roupas. Até o frade Giroflée se tornou útil, fazendo perfeitamente trabalhos de carpintaria; chegou mesmo a ser um homem honesto. Pangloss dizia algumas vezes a Cândido:
- Todos os sucessos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; porque enfim, se tu não fosses expulso dum formoso castelo com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunegundes, se tu não tivesses passado pela Inquisição, se tu não corresses a América a pé, se tu não espadeirasses o barão, se tu não perdesses todos os carneiros do maravilhoso Eldorado, tu não comerias aqui os frutos da terra.
- Tudo isso é muito bonito - respondeu Cândido - mas é preciso cultivar a nossa horta.
(in "Cândido", Voltaire, Guimarães Editores)
Chocolate e cochonilha
- Qual história! - replicou o grande homem, isso é até uma coisa indispensável no melhor dos mundos; é mesmo nele um ingrediente necessário. Porque se Colombo não tivesse apanhado numa ilha da América a doença terrível que envenena a fonte geradora, que chega mesmo a impedir a geração, e que evidentemente se opõe à grande finalidade da Natureza, nós não teríamos nem o chocolate, nem a cochonilha. (...)
(in "Cândido", Voltaire, Guimarães Editores)
sábado, janeiro 22, 2005
Onde está esse mundo que é o melhor dos mundos?
Cândido, mais tocado de compaixão que de horror, deu ao espantoso mendigo os dois florins que tinha recebido do bondoso anabaptista Jacques. O fantasma fixou-o longo tempo, chorou, e saltou-lhe ao pescoço num abraço. Cândido, assustado, recuou.
- Ah! - diz o mísero ao outro mísero - já não reconheces o teu amigo Pangloss?
- O quê? É o meu querido mestre? Nesses estado lastimoso? Mas que tremenda desgraça lhe aconteceu? Porque saiu do mais formoso dos castelos? Que é feito da menina Cunegundes, a pérola das raparigas, a obra-prima da Natureza?
- Estou sem forças - respondeu Pangloss.
Imediatamente Cândido levou-o para a estrebaria do anabaptista e deu-lhe um pedaço de pão a comer. Quando o viu refeito tornou a perguntar:
- Que é feito de Cunegundes?
- Morreu - respondeu o outro.
Cândido, ouvindo isto, desmaiou; o amigo reanimou-o com umas gotas de péssimo vinagre que por acaso achou na estrebaria. Cândido abriu os olhos e exclamou:
- Cunegundes morreu! Onde está esse mundo que é o melhor dos mundos? Mas de que doença morreu ela? Não seria pelo desgosto de me ver expulso do formoso castelo do barão com grandes pontapés no traseiro?
- Não - respondeu Pangloss - morreu esventrada pelos soldados búlgaros, depois de ter sido violada tanto quanto se pode sê-lo. O barão morreu também, com a cabeça esmigalhada, por tentar defender a ilha. A baronesa foi partida em bocados, e o meu pobre pupilo foi tratado com a mesma fereza que a irmã. Quanto ao castelo, não ficou dele pedra sobre pedra; destruiram as granjas; não deixaram um carneiro, um pato, uma árvore. Mas fomos inteiramente vingados, porque os soldados árabes fizeram o mesmo numa baronia das vizinhanças, e que pertencia a um fidalgo búlgaro.
(in "Cândido", Voltaire, Guimarães Editores)
sexta-feira, janeiro 21, 2005
quinta-feira, janeiro 20, 2005
The heart asks pleasure first
And then excuse from pain.
And then those little anodynes
That deaden suffering.
And then, to go to sleep;
And then, if it should be
The will of its Inquisitor,
The liberty to die.
(Emily Dickinson)
Eugénio de Andrade por Óscar Lopes e Eduardo Lourenço
"Levando a imaginação mítica até aos menores interstícios ou junturas do poema, universalizando o princípio da metamorfose (que é, aliás, um dos princípios da dialéctica, o princípio de Heraclito, segundo o qual tudo se transforma), Eugénio de Andrade é, por isso mesmo, um desenganador de toda a baixa mitologia ideológica. Alguns dos seus poemas são um modo de realidade-esperança, o modo da mais íntima e apaziguante esperança que eu conheço.
"Uma esperança impensável, a não ser talvez em música e em poesia paramusical como essa, e que Eugénio de Andrade captou no limiar do que ainda pode dizer-se em palavras com sentido. Eis porque a sua poesia é, em português, das que mais me enchem de alegria."
(Óscar Lopes)
*
"A primeira e a mais pura expressão da Poesia como arquitectura do real, a mais límpida manifestação da entrega sem reservas aos sortilégios do «puro poético», parece-nos ser a poesia de Eugénio de Andrade. No momento exacto em que a Poesia Portuguesa se revê com a máxima complacência nos poemas de Pessoa, o poeta de As Mãos e os Frutos volta lenta mas seguramente a consciência poética das «ideias» e dos «problemas» para «as palavras» como duplo mágico e imediato do mundo. A plenitude deste movimento só mais tarde será visível para todos mas já transparece nos adolescentes êxtases diante do rio ou da fonte em Pureza. Não significa isso que a consciência do poético seja inexistente em Eugénio de Andrade. Pelo contrário: poucos poetas terá havido entre nós que tanto tenham meditado sobre «o material poético», sobre a sua euritmia e sua externa musicalidade. Exactamente por isso pôde conceber o poema como beleza objectal, se assim se pode falar. O poema é, para Eugénio de Andrade, a sua morada de cristal, o lugar em que ele vive a sua plenitude ou a plenitude do seu encontro com os outros e o mundo, o mundo aparecendo sempre nele apenas como elo ou passagem para a glorificação do seu próprio-ser-poeta. Mas o poema é também, ou visa ser, morada de cristal, pura transparência sem sujeito. A exterior perfeição do poema - e Eugénio de Andrade foi o primeiro a concebê-lo como ânfora, como ser análogo da estátua ou rio - restaura o equilíbrio da Vida, a sua ameaça latente, mas no fundo incapaz de anular o êxtase cósmico, vital, espermático, de que o poeta é expressão viva e sempre renovada."
(Eduardo Lourenço)
(textos das contracapas de "Eugénio de Andrade - Poesia e Prosa [1940-1979]")
quarta-feira, janeiro 19, 2005
Querido Eugénio
Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela, obstinou-se em escolher-me, poisa-me no ombro, descansa de seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava, era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação perturbava a minha alegria - comigo, como é que faria o seu mel?
(Eugénio de Andrade)
*
Enquanto escrevia
Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me lentamente a mão direita. A noite chegava com esses antiquíssimos mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem desejos de outro corpo estendido ao lado? Já não me lembro; passava os dias a dormir à sombra daquela árvore; era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia; como se tivesse sede.
(Eugénio de Andrade)
What if...?
Bem... o mais provável, para começar, seria um ataque DoS. Denial of Service.
Pungente
Não que tudo mereça ser lido...
terça-feira, janeiro 18, 2005
Musica mirabilis
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo
- e desperte o lume.
(Eugénio de Andrade)
segunda-feira, janeiro 17, 2005
I’m in the mood for love
Simply because you’re near me
Funny, but when you’re near me
I’m in the mood for love
Heaven is in your eyes
Bright as the stars we’re under
Oh, is it any wonder?
I’m in the mood for love
Why stop to think of whether
This little dream might fade?
Let’s put our hearts together
Now we are one, I’m not afraid
If there’s a cloud above
If it should rain, we’ll let it
But for tonight forget it
I’m in the mood for love
Why stop to think of whether
This little dream might fade?
Let’s put our hearts together
Now we are one, I’m not afraid
If there’s a cloud above
If it should rain, we’ll let it
But, for tonight, forget it
I’m in the mood for love
(Wilmott, McHugh & Fields)
Programas eleitorais, campanhas e voto no pacote
Nos 10 anos da morte de Miguel Torga
Posso abrir ao acaso um livro de Miguel Torga sabendo que vou encontrar uma pérola. Como esta:
Drama
A quem falo no mundo? Por quem foi
Esta bandeira branca de poeta?
A quem descubro a chaga que me rói
Por não ser seu artista e seu profeta?
A quem arranco com beleza a seta
Do calcanhar humano que lhe dói?
A quem vejo chegado à sua meta,
Novo senhor da terra e novo herói?
A nenhum homem, que a nenhum conheço.
Água de um rio que não tem começo,
Nas duas margens sinto o mesmo não.
Mas na direita a vida é gasta e velha...
Só na outra uma chama se avermelha
Capaz de me aquecer o coração.
(Miguel Torga, "Poesia Completa I", Círculo de Leitores)
Escrito há quatrocentos anos
"Desocupado leitor, não será preciso jurar por minha honra que foi meu desejo que este livro, fruto da razão, fosse o mais belo, mais garboso e discreto que se possa imaginar; mas não foi possível furtar-me a essa lei da natureza segundo a qual uma coisa engendra outra semelhante. E daí que, do meu estéril e mal cultivado engenho, só pudesse nascer a história de um filho seco, atrofiado, caprichoso e cheio de pensamentos nunca imaginados por alguém, como se fosse concebido num cárcere onde os mais desconsolosos e mais tristes sons têm a sua morada."
(in "Dom Quixote", Miguel Cervantes, Clássica Editora)
Recomendado vivamente por esta pastora a quem ainda não leu!
Agradecimento
domingo, janeiro 16, 2005
A auto-estima do povo português
Podia citar Pessoa, mas que nos interessam messianismos e ilusórias pré-destinações?
Freitas do Amaral dizia, na sua campanha eleitoral para a presidência: "para a frente, Portugal!". Agora há também um movimento (uma associação?) chamada "Portugal positivo". No tempo dos governos de Cavaco Silva éramos "os bons alunos da Europa". Agora, segundo as declarações do nosso presidente da República, na China, somos "simpáticos".
Eduardo Lourenço diz que a crise e a depressão são um álibi português.
A terra é pouco fértil e tem poucos recursos minerais, em comparação com outras. O clima não é propício para trabalho metódico, e o catolicismo matricial também não. A escola da "educação para todos" tem sido um fracasso retumbante.
A capacidade que temos para dizer mal uns dos outros, se produzisse dinheiro, punha-nos ricos.
Quando seremos capazes de olharmos uns para os outros e valorizar o que é positivo? De sermos tolerantes e de colaborarmos uns com os outros para um bem comum? Somos capazes de fazê-lo com o nosso círculo de amigos. Então, porque não deixar mais lata a fronteira desse círculo, de forma a incluir, também, quem partilha uma história e um destino connosco?
E quando é que os políticos e comentadores deixarão de olhar para a massa anónima como se fossem todos estúpidos e manipuláveis? Talvez pudesse começar também por aqui a mudança de atitude.
Trabalhar no campo é duro
TRABALHAR NO CAMPO É DURO
E É POR MUITOS CENSURADO
SEMPRE COM POUCO FUTURO
PASSA-SE A VIDA ARRASTADO
Voltas
Quem na pobreza nasceu
Destinado a trabalhar
Tem muito que recordar
Dos tempos que já viveu
Por tanto que já sofreu
Derramando seu sangue puro
Com paixão lhes digo e juro
Quero dizer à Juventude
Mesmo que tenha saúde
TRABALHAR NO CAMPO É DURO
Quem tenha que trabalhar
Para ganhar seu sustento
É com dores e sofrimento
Que sente o tempo passar
Ouvindo muitos chorar
O seu reles ordenado
Anda sujo e esfarrapado
Não é senhor dos seus brios
Enche a barriga aos vadios
E É POR MUITOS CENSURADO
Trabalhar na agricultura
Tirar da terra o produto
É sempre um trabalho bruto
Para qualquer criatura
Quem trabalha a terra dura
Não tem caixa nem seguro
É como o fruto maduro
Que não se chega a colher
Trabalhando até morrer
SEMPRE COM POUCO FUTURO
Trabalhar não aborrece
Para quem saiba concordar
O que é triste é não ganhar
A quantia que merece
Por tudo quanto padece
Nunca foi recompensado
É por todos desprezado
Por mais honesto que seja
Nunca tem o que deseja
PASSA-SE A VIDA ARRASTADO
Mário Paulino Fernandes (Arronches), in "Há tanta ideia perida... (2) - Meu Alentejo tão querido", 2º Encontro de Poetas Populares Alentejanos - Vila Viçosa - 30 e 31 de Julho e 1 de Agosto de 82, Centro Cultural Popular Bento de Jesus Caraça
Feiras anuais
Em tempos idos, cada uma destas feiras, que se realizava uma vez por ano, num dia específico, marcava o tempo para comprar ou vender determinados produtos agrícolas ou gado, para uma dada região.
Hoje, essa é uma realidade em processo de fossilização. Em campanha eleitoral, vão lá políticos distribuir aventais de plástico e, com alguma sorte, uns chapéus aceitáveis para os resistentes levarem para a lida do campo. Para usar até os fios se gastarem, sejam quais forem as cores da propaganda.
As aldeias continuam a ter a frescura das plantas e do seu verde afirmativo. E continua o trabalho duro e a pobreza de quem lá vive. Mas sempre há alegrias, como as dos dias de feira, em que se foge à labuta dos outros dias, e se encontram, lá longe, os vizinhos próximos e os distantes, e se compara o que se vai vender e as pechinchas que se levam para casa. Ah! E até se começavam namoros...
sábado, janeiro 15, 2005
Canção de primavera
Pois que Maio chegou,
Revesti-o de clâmides de cores!
Que eu, dar, flor, já não dou.
Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves,
Acordai desse azul, calado há tanto,
As infinitas naves!
Que eu, cantar, já não canto.
Eu, invernos e outonos recalcados
Regelaram meu ser neste arrepio...
Aquece tu, ó sol, jardins e prados!
Que eu, é de mim o frio.
Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio,
Vem com tua paixão,
Prostrar a terra em cálido desmaio!
Que eu, ter Maio, já não.
Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto;
Ter sol, não tenho; e amar...
Mas, se não amo,
Como é que, Maio em flor, te chamo tanto,
E não por mim assim te chamo?
(José Régio)
Incidentes
sexta-feira, janeiro 14, 2005
Retórica
Quanto ao equívoco, também terei tido a minha quota parte da responsabilidade. Afinal, "ao sabor da corrente" é uma expressão com várias interpretações, e só me lembrei de uma.
Quando o planeta que distingue a hora
faz pra viver co Touro o seu retorno,
cai virtude da chama a cada corno
que o mundo em nova cor então decora;
e não só o que se abre a nós de fora,
e em rio e monte põe florido adorno,
mas por dentro, onde o dia é sem contorno,
o humor terrestre prenho dele mora,
onde tal fruto e outros mais se colha.
E aquela entre as mulheres que é sol, em mim,
movendo os belos raios do olhar gera
pensar, falar e agir de amor, e enfim
por mais que ela governe, queira, escolha,
para mim nunca chega a primavera.
Nota: Este soneto teria acompanhado um presente de frutos. Co touro, em meados de Abril; mas por dentro, no subsolo.
(in "Rimas", Petrarca, tradução de Vasco Graça Moura, Círculo de Leitores)
Lições de Titã
Uma sonda atravessou hoje as brumas e desvendou a superfície do segundo maior satélite do Sistema Solar. Agora já não há superfícies desconhecidas entre os quatro corpos com atmosfera das nossas vizinhanças: a Terra, Vénus, Marte e Titã (descontando as "atmosferas" extensas).
Foi possível uma cooperação entre americanos e europeus na pesquisa espacial. Foi possível construir, em vez de destruir. Foi possível conceber uma missão complexa e pô-la em prática.
Talvez ainda haja esperança para a espécie humana.
quinta-feira, janeiro 13, 2005
Corrente
Meu pensamento é um rio subterrâneo.
Para que terras vai e donde vem?
Não sei... Na noite em que o meu ser o tem
Emerge dele um ruído subitâneo
De origens no Mistério extraviadas
De eu compreendê-las..., misteriosas fontes
Habitando a distância e ermos montes
Onde os momentos são a Deus chegados...
De vez em quando luze em minha mágoa,
Como um farol nem mar desconhecido,
Um movimento de correr, perdido
Em mim, um pálido soluço de água...
Eu relembro de tempos mais antigos
Que a minha consciência da ilusão
Águas divinas percorrendo o chão
De verdores uníssonos e amigos,
E a ideia de uma Pátria anterior
À forma consciente do meu ser
Dói-me no que desejo, e vem bater
Como uma onda de encontro à minha dor.
Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto
Da minha alma, perdido som incerto,
Como um esterno rio indescoberto,
Mais que a ideia de rio certo e abstracto...
E p'ra onde é que ele vai, que se extravia
Do meu ouvi-lo? A que cavernas desce?
Em que frios de Assombro é que arrefece?
De que névoas soturnas se anuvia?
Não sei... Eu perco-o... E outra vez regressa
A luz e a cor do mundo claro e actual,
E na interior distância do meu Real
Como se a alma acabasse, o rio cessa...
(Fernando Pessoa)
Agradecimento
Obrigada também pelo reparo. Por vezes segue-se a corrente consciente e voluntariamente, como as aves que pedem boleia às massas de ar. Mas tentarei ir mais vezes "contra a corrente", na medida das possibilidades.
quarta-feira, janeiro 12, 2005
Grandes diálogos, fracos debates eleitorais
Platão e Galileu ofereceram-nos grandes diálogos. Há poucas décadas, havia ainda grandes debates eleitorais na televisão portuguesa. Agora, a correlação de forças é feita no convidar e no aceitar ou recusar.
Discussão de ideias? O que é que isso interessa? Interessa é a cor da gravata e, supostamente, os segundos a mais ou a menos num cronómetro. A apresentadora do "Prós e Contras" deixou escapar num dos programas que pensava que talvez saissem do seu programa alguns "ministeriáveis". Como se não bastasse sermos representados pelas escolhas de concelhias e líderes de partidos, ainda teríamos que estar sujeitos às arbitrariedades das escolhas de uma jornalista...
É isto uma democracia?
terça-feira, janeiro 11, 2005
Visita
Perfumei-o de almíscar rescendente;
Vesti-me com a púrpura fulgente,
Ensaiando meus cantos como um bardo.
Ungi as mãos e a face com o nardo
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
misteriosa visita a quem aguardo.
Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre à húmida pousada?
Nem princesas, nem fadas. Era, flor,
era a tua lembrança que batia
Às portas de ouro e luz do meu amor!
(Antero de Quental)
Círculos uninominais
(David Eppstein)
Filipe Alves defendeu, numa caixa de comentários do AdP, a criação "urgente" de círculos uninominais.
Se bem me lembro, quando se falou mais a sério nos círculos uninominais, propôs-se um círculo nacional, com listas partidárias semelhantes às que existem actualmente, concomitantemente com círculos uninominais, e é a essa solução que me reporto.
Parece-me que o processo da criação dos círculos seria, em qualquer caso, feito com "regra e esquadro" de modo a beneficiar os partidos que aprovassem esses círculos, o que contribuiria para a descredibilização da classe política. Há também o perigo de, com os círculos uninominais, levar para o parlamento demagogos e caciques em vez de pessoas preocupadas com o interesse nacional. E há, ainda, porque a proporcionalidade entre votos e eleitos seria menor, a quase inevitalidade da exclusão da Assembleia de pequenos partidos e partidos que não privilegiam protagonismos dos seus militantes. Assim, as eventuais vantagens dos círculos uninominais seriam eclipsadas pelos efeitos políticos a que conduziriam. Idealmente, deveria ser possível criar círculos uninominais que conduzissem, nas primeiras eleições que se seguissem, a resultados semelhantes aos dos partidos com o sistema actual, mas isso não é fácil de conseguir.
Por outro lado, é gritante a evidência de que há pessoas entre os nossos concidadãos de que podemos dizer melhor do que dos partidos.
Haverá forma de alcançar um justo equilíbrio?
Linho
Cortesia: Câmara Municipal de Arcos de Valdevez
Estamos no Inverno e o linho não aquece. Por que é que, então, me lembrei dele?
O linho representa a elegância obtida de esforço e conhecimento ancestral de quem vive lado a lado com a terra. A demorada e difícil produção do linho, em muitas etapas com agenda bem definida, a sua fiação artesanal, tema de tantos contos populares, o seu toque muito próprio, a sua cor crua mas vaidosa, tudo isso dá ao linho um charme indisfarçável.
O linho não tem nacionalidade. Mas possuí-lo, antigo, com padrões tradicionais desenhados ou puxados em linha de algodão, ou torcidos nos fios da urdidura depois de tirados alguns fios da trama, é justa razão para orgulho nas nossas raízes.
segunda-feira, janeiro 10, 2005
«O amor torna-se maior e mais nobre na adversidade»
Levou-a para o quarto e começou a despir-se sem falsos pudores, de luz acesa. Florentino Ariza deitou-se de costas tentando recuperar o autodomínio, novamente sem saber o que fazer com a pele de tigre que tinha vestido. Ela disse-lhe: «Não olhes.» Ele perguntou porquê sem tirar os olhos do tecto baixo.
- Porque não vais gostar - disse ela.
Então ele olhou para ela. Viu-a nua até à cintura, tal como ele a imaginara. Tinha os ombros enrugados, os seios caídos e as costelas forradas por uma pele pálida e fria como a de uma rã. Ela cobriu o peito com a blusa que acabava de despir e apagou a luz. Então ele endireitou-se e começou a despir-se na escuridão, atirando para cima dela cada peça que ia despindo e ela devolvia-lhas a rir à gargalhada.
Permaneceram deitados de costas um longo momento, ele cada vez mais aturdido à medida que a embriaguez o abandonava, e ela tranquila, quase abúlica, mas suplicando a Deus que não lhe desse para começar a rir sem razão como lhe acontecia sempre que se descuidava com o anis. Conversaram para enganar o tempo. Falaram de si, das suas vidas diferentes, do acaso inverosímil de se encontrarem nus no camarote às escuras de um navio encalhado, quando seria justo que pensassem que já não lhes restava mais nada senão esperar a morte. Ela nunca tinha ouvido dizer que ele tivesse uma mulher, nem uma sequer, numa cidade onde se sabia tudo mesmo antes de acontecer. Disse-lho de uma maneira casual, e ele replicou-lhe imediatamente sem uma vacilação na voz:
- É que me conservei virgem para ti.
Ela não teria acreditado de todos os modos, mesmo que fosse verdade, porque as suas cartas de amor estavam cheias de frases como essa que não tinham valor pelo seu sentido mas pela sua capacidade de deslumbrarem. Mas agradou-lhe a coragem com que o disse. Florentino Ariza, pelo seu lado, perguntou-se então o que nunca se tinha atrevido a perguntar-se: que tipo de vida oculta tinha levado ela à margem do casamento. Nada o teria surpreendido porque ele sabia que as mulheres são iguais aos homens nas suas aventuras secretas: os mesmos estratagemas, as mesmas inspirações súbitas, as mesmas traições sem remorsos. Mas fez bem em não lho perguntar. Numa época em que as suas relações com a Igreja estavam já bastante deterioradas, o confessor perguntou-lhe, sem que viesse a propósito, se alguma vez tinha sido infiel ao seu esposo e ela levantou-se sem responder, sem terminar, sem se despedir, e nunca mais voltou a confessar-se com esse confessor nem com nenhum outro. Em troca, a prudência de Florentino Ariza teve uma recompensa inesperada: ela estendeu a mão na escuridão, acariciou-lhe o ventre, os flancos, o púbis quase imberbe. Disse: «Tens uma pele de bébe.» Depois deu o passo final: procurou-o onde não estava, voltou-o a procurar sem ilusões e encontrou-o inerme.
- Está morto - disse ele.
Acontecia-lhe sempre quando era a primeira vez, de modo que tinha aprendido a conviver com aquele fantasma: cada vez tinha que aprender de novo como se fosse a primeira. Pegou na mão dela e pô-la sobre o seu peito: Fermina Daza sentiu, quase à flor da pele, o velho coração incansável a latejar com a força, a pressa e a desordem dum adolescente. Ele disse: «Para isto é tão mau amar de mais como amar de menos.» Mas disse-o sem convicção: estava envergonhado, desejando uma razão para a culpar a ela do fracasso. Ela sabia-o e começou a provocar o corpo indefeso com carícias brincalhonas, como uma gata meiga que se rejubila na crueldade, até que ele não conseguiu resistir por mais tempo ao martírio e foi para o seu camarote. Ela ficou a pensar nele até ser manhã, convencida finalmente do seu amor e à medida que o anis a abandonava em ondas lentas ia-a invadindo a angústia de que ele se tivesse desgostado e não voltasse nunca mais.
Mas voltou no mesmo dia, à hora insólita das onze da manhã, fresco e restaurado, e despiu-se diante dela com uma certa ostentação. Ela gostou de o ver à luz do dia tal como o tinha imaginado às escuras: um homem sem idade, de pele escura, lúcida e tensa como um guarda-chuva aberto, sem mais pêlos do que os muito escassos e lassos das axilas e do púbis. Estava de arma em riste e ela apercebeu-se de que não se mostrava por acaso, mas exibia-a como um troféu de guerra para se dar coragem. Nem sequer lhe deu tempo para tirar a camisa de noite que tinha vestido quando começou a brisa do amanhecer e a sua pressa de principiante provocou-lhe um estremecimento de compaixão. Mas não a incomodou porque em casos como aquele não era fácil distinguir entre a compaixão e o amor. No fim, porém, sentiu-se vazia.
Era a primeira vez que fazia amor em mais de vinte anos e tinha-o feito embargada pela curiosidade de sentir como podia ser na sua idade após um retiro tão prolongado. Mas ele não lhe dera tempo para saber se o seu corpo também o queria. Tinha sido rápido e triste e ela pensou: «Agora é que está tudo fodido.» Mas enganou-se: apesar do desencanto de ambos, apesar do arrependimento dele pela sua torpeza e dos remorsos dela pela loucura do anis, não se separaram por um momento nos dias seguintes.
("O amor nos tempos de cólera", Gabriel García Marquez, Dom Quixote)
domingo, janeiro 09, 2005
We never know how high we are
Till we are called to rise;
And then, if we are true to plan,
Our statures touch the skies.
The heroism we recite
Would be a daily thing,
Did not ourselves the cubits warp
For fear to be king.
(Emily Dickinson)
sábado, janeiro 08, 2005
Blog: por que é que tinha que se aportuguesar?
Triste
Livros... de culto?
Filmes e séries de culto
Os nossos deputados
O Pula Pula Pulga fez nos últimos dias uma selecção de deputados da Assembleia da República, tendo escolhido alguns com fotografias e textos de currículos que não lhes são especialmente favoráveis.
Com base nestes dados, sugere-se que esses deputados seriam os que, nos partidos, arranjam os dinheirinhos ou os que distribuem os aventais nas feiras. Conclusão: não deviam estar na Assembleia. (Nem é preciso saber que actividade parlamentar é que estas pessoas tiveram. E se for boa?)
Há duas possíveis consequências da conclusão da Pulga:
a) Diminuir o número de deputados.
b) Alterar de fora a forma de funcionamento dos partidos.
A primeira implicaria uma diminuição da proporcionalidade entre votos e eleitos, excluindo os pequenos partidos irremediavelmente do parlamento. Haveria também menos disponibilidade de deputados para trabalhar nas comissões. Seria, ainda, mais difícil haver em cada grupo parlamentar especialistas em diferentes áreas e pessoas com experiências pessoais diversas.
A segunda dificilmente seria aceite, já que seria apontada como anti-democrática.
Se não é possível a exclusão, falemos de inclusão. Por que é que não há pessoas de mais valia nas listas para a Assembleia da República? Porque:
1. Entre os melhores técnicos, o ordenado é mais importante do que o serviço da causa pública. (E ser deputado parece já não valorizar os currículos.)
2. Num dos maiores partidos da democracia portuguesa, deixou de haver a massa crítica para uma intervenção ditada pelos interesses do país.
Como se combate este estado de coisas? Parece-me que uma das formas incontornáveis é o voto.
Agradecimentos
quinta-feira, janeiro 06, 2005
In the Long Run
The lucky wight may prosper for a day,
But in good time true merit leads the van,
And vain pretense, unnoticed, goes its way.
There is no Chance, no Destiny, no Fate,
But Fortune smiles on those who work and wait,
In the long run.
In the long run all goodly sorrow pays,
There is no better thing than righteous pain,
The sleepless nights, the awful thorn-crowned days,
Bring sure reward to tortured soul and brain.
Unmeaning joys enervate in the end,
But sorrow yields a glorious dividend
In the long run.
In the long run all hidden things are known,
The eye of truth will penetrate the night,
And good or ill, thy secret shall be known,
However well 't is guarded from the light.
All the unspoken motives of the breast
Are fathomed by the years and stand confest
In the long run.
In the long run all love is paid by love,
Though undervalued by the hosts of earth;
The great eternal Governemnt above
Keeps strict account and will redeem its worth.
Give thy love freely; do not count the cost;
So beautiful a thing was never lost
In the long run.
(Ella Wheeler Wilcox)
segunda-feira, janeiro 03, 2005
Novo-riquismo?
Atrasos contagiosos
Notas soltas sobre a WWW e a WLW
2. Desde que deixou de ter comentários e o cursor passou a ser um microfone, o "site" da TSF deixou de ser obrigatório. Ficou mais espaço para as milícias populares e para as bombas? Ainda bem que vamos ter eleições.
domingo, janeiro 02, 2005
Somos pequenos (milagres) no universo
Será agora que a paz se firmará onde antes houve guerra sanguinária? Será agora que não só os cadáveres de turistas têm direito a uma identificação por ADN e o mundo olha para a miséria em que vivem tantos seres da mesma espécie que já pisou a Lua e lançou sondas para lá da órbita de Plutão?
A auto-destruição nas nossas mãos
A dada altura, falou de estudos sobre a evolução de populações em ambientes com recursos limitados. Falou de rãs e de outras espécies de seres vivos. De crescimento da população, seguida de decréscimo, novo crescimento, e assim por diante, homeostaticamente, até atingir assimptoticamente um equilíbrio. Temi que fosse falar do canibalismo de algumas espécies, mas não aconteceu.
O último gráfico era sobre a evolução de uma população de veados, no norte da Europa. Havia um crescimento até um máximo e, depois, um decréscimo até à extinção da população. Não explicou por que mecanismos se dava a extinção tão abrupta. Também não encontrei mais informação sobre o assunto. Seria a "pool" genética que tinha sido reduzida drasticamente? (Se alguém souber explicar-me, agradeço.) E nós, o que será de nós se não pensarmos seriamente na gestão dos recursos do planeta que temos à nossa disposição?
Uma certa monarquia
Rainha. Em 2004, morreu uma rainha da língua portuguesa. Não teve honras de estado, como outros com menos valia tiveram. Não interessa! Saí à rua para me despedir da maior poetisa minha contemporânea. Um contratempo impediu-me de lá estar, para grande pena minha. Fica a obra, para a imortalidade.
Rei. Durante anos, procurei "As Mãos e os Frutos" nas livrarias. Em vão. Encontrei finalmente, numa feira, quase de alfarrabistas, "Eugénio de Andrade - Poesia e Prosa [1940-1979]", de uma "Biblioteca de Autores Portugueses". Um banquete, claro! Mas fazem falta edições nas livrarias, para oferecer (daqueles presentes que se dão com especial gosto), ou da obra completa, como foi feito com a poesia de Sophia, ou de todos os livros de Eugénio. Quem sabe é este ano... Fica aqui o "wishful thinking".
Fogo, lenha, memória
Ah, os chavões... Ouvi há dias na televisão, não sei bem em que programa (seria a letra de uma canção em inglês?) que há coisas que temos tendência a fitar. Uma era a corrente de um riacho. Outra era uma fogueira a arder. Pois é.
Sobro, azinho, oliveira, pinho. Flora que demorou a engrossar, que resistiu a tempestades, acabada, enfim, em combustão poluidora mas reconfortante. Entre tições, ficam saudades de histórias de quem já partiu.