domingo, dezembro 19, 2004

Tosca

Como pode uma pastora deixar de ser tosca, por mais poemas de Alberto Caeiro que leia? Não lhe está na natureza, não, mas nas grilhetas das circunstâncias.

*

Retrato de uma princesa desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino.



(Sophia de Mello Breyner Andresen)

*

Ainda aqui hei-de falar de aristocracia, eu que tenho sangue de servos (mas não alma de servidão).

Sem comentários: