segunda-feira, julho 17, 2006

Uma viagem providencial (XX)

De novo no mar alto

A 3 de Junho, depois de passar por vários baixios e outras ilhas, a chalupa dobrou o cabo Iorque, que é o ponto mais a nordeste da Nova Holanda. Às oito horas da noite dirigiu-se outra vez para o mar alto.

«Deus sabe como a nossa situação era desesperada! - escreve Bligh. Mas verifiquei com espanto, no meu foro íntimo, que a tripulação parecia menos preocupada do que eu próprio. Os homens davam-me a impressão de acabarem de embarcar com destino a Timor num navio onde tudo estivesse previsto para o seu conforto e segurança. Pelo meu lado, embalava-os na esperança de que dentro de oito ou dez dias desembarcaríamos em lugar seguro. Após ter pedido a Deus que continuasse a beneficiar-nos com a Sua misericordiosa protecção, distribuí a cada um uma ração de água para o jantar e mandei aproar a oés-sudoeste.

«Passáramos apenas seis dias na costa da Nova Holanda, onde encontrámos ostras, palurdas, aves e água. Mas, além desse reabastecimento suplementar, acháramos outra coisa igualmente importante: refiro-me ao alívio que sentimos por não sermos obrigados a permanecer sentados na chalupa e à bênção do verdadeiro repouso nocturno. Essa melhoria da nossa situação salvou-nos certamente a vida, pois, por muito pequena que fosse, a modificação que operou foi excepcional. Sem ela, a natureza acabaria por ceder aos ataques conjugados da extrema fadiga e da fome prolongada. Embora continuássemos num estado físico apavorante, o nosso moral fortalecera-se com a esperança de que chegaríamos ao fim dos nossos infortúnios.

«Pelo meu lado, por incrível que pareça, nunca senti as torturas da fome nem da sede. A minha ração bastava-me, pois sabia que não podia ter mais...»

No manuscrito do diário de Bligh lê-se o seguinte comentário:

«... Talvez por esta razão não me sinta autorizado a julgar objectivamente a história de seres tão infelizes como nós e que a necessidade levou a destruírem-se mutuamente, para comerem. Mas ser-me-á permitido duvidar da veracidade dos acontecimentos? Francamente, não creio que tal coisa pudesse acontecer entre nós; acho que a morte pela fome teria sido aceite apenas como qualquer doença mortal.»

A 5 de Junho apanharam à mão uma ave marinha e distribuíram o sangue pelos três homens manifestamente mais enfraquecidos, mas a carne guardaram-na para o almoço do dia seguinte. A 6, Bligh cumpre a sua promessa e restabelece a ração do jantar, que suprimira.

A 7, após uma noite atrozmente fria e encharcados pela água do mar, os homens recebem apenas a ração habitual para o pequeno-almoço; em contrapartida, ao almoço é-lhes distribuído um suplemento de sessenta gramas de palurdas secas, esgotando-se assim toda a reserva deste alimento.

As altas vagas abateram-se durante todo o dia sobre a chalupa. O estado de Mr. Ledward, que desempenhava as funções de médico, e de Lawrence Lebogue, um velho marinheiro endurecido, pareciam piorar de hora a hora. O único socorro que era possível prestar-lhes resumia-se a uma ou duas colherinhas de vinho especialmente reservado pelo comandante para este género de circunstâncias, infelizmente de fácil previsão.


Sir John Barrow, "Revolta na Bounty", tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, Publicações Europa-América, 1972

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