segunda-feira, julho 10, 2006

Uma viagem providencial (XIII)

«Quem o receberá?»

A 25 de Maio, perto do meio-dia, algumas andorinhas-do-mar vieram esvoaçar tão próximo da chalupa que uma delas foi apanhada à mão. Esta ave tem mais ou menos o tamanho de um pombo pequeno.

«Dividi-a - conta Bligh -, com entranhas e tudo, em dezoito porções, e depois reparti-a, como suplemento da ração de pão e água do almoço, segundo o tão conhecido método do mar, o «Quem o receberá?»1 O pássaro foi engolido, com ossos e tudo, e regado com água do mar, à guisa de molho. À tarde voltámos a ter a sorte de apanhar outra ave marinha, desta vez uma espécie do tamanho de um pato, o que veio confirmar que nos aproximávamos de terra. Ordenei que a matassem para o jantar e que o sangue fosse dividido pelos três homens mais enfraquecidos por falta de alimentos. O corpo da ave, com entranhas, bico e patas, foi partido em dezoito bocados e, com uma ração de pão extraordinária que resolvi distribuir, tivemos um jantar excelente, comparado com os habituais.

«Na manhã de 26 apanhámos outra andorinha-do-mar. Seria a Providência que acorria às nossas necessidades de modo tão pouco comum? Fosse como fosse, a verdade é que os homens ficaram encantados com o novo suplemento do seu almoço. O pássaro foi servido como na tarde da véspera, quer dizer, mandei dar o sangue aos mais fracos. A maior parte dos meus companheiros tinha o costume de molhar o pão na água do mar, para o tornar mais saboroso, mas eu preferia cortá-lo em bocadinhos e mergulhá-lo na água doce que me serviam numa casca de coco. Comia-o depois às colheres, tendo o cuidado de não apanhar bocados muito grandes de cada vez e de levar o mais tempo possível a mastigá-lo, como se se tratasse de um reparto copioso.»


1 Um homem volta as costas ao objecto que deve ser repartido e outro designa separadamente as porções e, a cada uma, pergunta em voz alta: «Quem o receberá?» A pessoa que está de costas voltadas indica então o beneficiário. Este método imparcial de distribuição proporciona a todos igual possibilidade de apanharem o melhor bocado. Bligh contou muitas vezes que os seus pobres companheiros riram muito quando lhes coube o bico e a palmura das patas.


Sir John Barrow, "Revolta na Bounty", tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, Publicações Europa-América, 1972

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