terça-feira, junho 27, 2006

Uma viagem providencial (III)

O tempo enevoa-se

Quando o dia nasceu, a 3 de Maio, os homens verificaram, com desânimo vizinho do desespero, que o Sol subia no horizonte transformado numa bola de fogo vermelha. Era de prever, portanto, uma severa tempestade.

De facto, às oito horas, o vento começou a soprar com violência e o mar encapelou-se. As vagas eram tão altas que a vela pedia, inerte, cada vez que a chalupa era apanhada entre duas ondas, e enfunava-se brutalmente, apesar de pequena, quando a embarcação subia a uma crista. Bligh relata que não poderia arriscar-se a reduzir o pano, tão terrível e constante era o perigo: as vagas varriam a popa e obrigavam-nos a esgotar a água sem descanso e o mais energeticamente possível. «Raramente, estou certo - afirma Bligh -, os homens terão vivido horas mais angustiantes.»

O pão, que levavam dentro de sacos, corria constantemente o risco de se molhar e de criar bolor. Se a situação não melhorasse, as consequências podiam ser fatais, pois mesmo que os dezoito homens se salvassem morreriam de fome. Bligh decidiu então deitar pela borda fora todas as peças de vestuário supérfluas, a maior parte dos rolos de cordame e a vela sobressalente, o que aliviou sensivelmente a embarcação. O carpinteiro despejou também a ferramenta, que alinhou no fundo da chalupa, o que permitiu guardar o pão na caixa e protegê-lo assim da água. Como todos estivessem transidos de frio e encharcados até aos ossos, Bligh ordenou que servissem a cada um, como pequeno almoço, uma colher de rum e um quarto de fruta-pão, esta, ao que parece, já quase intragável. Estava resolvido a fazer respeitar, mesmo com risco da própria vida, o compromisso que, de livre vontade, a tripulação assumira para consigo: queria que a pequena reserva de víveres durasse oito semanas, e sabia que só o conseguiria se impusesse a magra ração diária que calculara.

Depois do almoço, as ondas tornaram-se cada vez mais altas e os homens extenuaram-se a esgotar a água. Quanto ao piloto, cabia-lhe evitar a todo o custo que a chalupa se atravessasse nas vagas. A noite chegou, fria, com a água a encharcar constantemente os pobres homens, de tal modo que, de madrugada, tinham os membros tão entorpecidos que lhes custava mexê-los. Reanimou-os nova colher de rum. Ao pequeno-almoço repartiram entre si cinco pequenos cocos e à noite receberam algumas migalhas de fruta-pão. Em seguida fizeram as suas preces.


Sir John Barrow, "Revolta na Bounty", tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, Publicações Europa-América, 1972

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