sábado, junho 24, 2006

A sobrevivência de Bligh

Começo pelo fim. Tudo acaba bem. A viagem do capitão Bligh e dos que o acompanharam depois da revolta na Bounty é dos mais impressionantes relatos de uma sobrevivência e merece ser lido ou relido. É o que proponho.


Dissipa-se o abominável pesadelo


«Não me é possível - declara o extraordinário navegador - descrever a alegria que nos invadiu à vista daquela terra tão desejada. Parecia-nos quase inacreditável que, a bordo de um barco sem ponte, a céu aberto e com tão poucas provisões, tivéssemos conseguido atingir a ilha de Timor, quarenta e um dias depois de deixarmos Tofoa, e percorrido, nesse lapso de tempo, segundo a nossa barquilha, a distância de três mil e seiscentas e dezoito milhas náuticas, sem que nenhum de nós, a despeito da nossa indizível miséria, perecesse no decurso da viagem!

«No domingo 14 de Junho fundearam na baía de Coupang, onde foram recebidos com toda a bondade, hospitalidade e humanidade possíveis e imagináveis. As casas dos notáveis abriram-se de par em par para os acolher. Quase impossibilitados de andar, os infelizes desembarcaram em estado físico verdadeiramente lamentável.

«Raramente, talvez - diz o comandante -, o talento de um pintor poderia manifestar-se melhor do que se pintasse os dois grupos de seres humanos que foram ao encontro um do outro. O espectador indiferente (admitindo que fosse possível existir algum!) sentir-se-ia embaraçado na escolha do objecto da sua admiração: os olhos dos famintos, flamejantes naquela hora de libertação, ou o horror dos que os recebiam, perante semelhantes espectros, cuja aparência esquelética suscitaria, se não lhe conhecessem a causa, maior pavor do que piedade? Tínhamos apenas a pele e o osso, os nossos membros eram uma chaga pegada e vestíamo-nos de farrapos. Foi neste estado, com lágrimas de gratidão e alegria a correrem-nos pelas faces, que a população de Timor nos contemplou, com um misto de horror, estupefacção e pena.

«Quando penso - prossegue o comandante - na maneira providencial como escapámos em Tofoa, simplesmente porque os indígenas renunciaram ao ataque; na viagem de mais de mil e duzentas léguas pelo mar alto sem quase possuirmos meios de assegurar a nossa subsistência e sem o menor abrigo para nos defendermos das inclemências do tempo; quando penso que, numa simples chalupa e sob tão furiosas tempestades, escapámos ao naufrágio, sem nenhum homem ser arrebatado pela doença; que tivemos a sorte inaudita de costear sem incidentes terras habitadas por indígenas hostis e que, finalmente, no termo da nossa provação, encontrámos tão bom acolhimento e tão fraternal amizade; quando penso em todos os milagres que nos conservaram vivos - a realidade de tão extraordinárias graças permite-me suportar, com alegria e bom humor, o fracasso de uma expedição cujo êxito levara tanto a peito e que sobreveio quando me animava a firme esperança de que os resultados da viagem corresponderiam plenamente às intenções de Sua Majestade e satisfariam os autores de tão poderoso projecto.»


Sir John Barrow, "Revolta na Bounty", tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, Publicações Europa-América, 1972

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