segunda-feira, junho 26, 2006

Uma viagem providencial (II)

Em Tofoa, primeira decepção e uma morte

Quando, abandonando-os à sua sorte, a Bounty desapareceu no horizonte, o capitão Bligh e os seus dezoito companheiros cuidaram, antes de mais nada, de inventariar os seus recursos. As provisões que alguns camaradas compadecidos lhes tinham lançado constavam de: cerca de setenta quilos de pão, dezassete bocados de carne de porco, cada um com cerca de um quilo, seis litros de rum, seis garrafas de vinho, cento e vinte litros de água potável e quatro pequenos barris vazios.

Como a ilha de Tofoa ficava perto, Bligh decidiu ir lá buscar, imediatamente, água e fruta-pão, a fim de conservar intactos, durante o máximo de tempo possível, os poucos víveres mencionados.

Mas depois de percorrerem a costa viram apenas, no cimo de uma falésia abrupta, alguns coqueiros. Apesar dos perigos da rebentação e da dificuldade em escalar a falésia, conseguiram recolher uma vintena de cocos.

No dia seguinte aventuraram-se no interior da ilha, mas sem resultado. Encontraram no entanto alguns naturais, que os acompanharam até à pequena angra onde fundeara a chalupa, logo seguidos por outros. Os indígenas fizeram algumas perguntas acerca da Bounty e Bligh teve uma inspiração infeliz: recomendou aos companheiros que respondessem que o navio naufragara e que eles eram os únicos sobreviventes. Tratava-se, certamente, de uma mentira inocente, mas Bligh não devia ter dado a conhecer aos nativos que se encontravam em situação de inferioridade. Conseguiram embarcar uma pequena quantidade de fruta-pão, de cocos e de bananas bravas, mas a água que arranjaram foi muito pouca.

Este suplemento de víveres, embora limitado, levantou o moral dos homens. A este respeito, Bligh diz-nos: «Não me olhavam já com aqueles olhos angustiados que fixavam em mim desde que perdêramos de vista o navio. Tinham recuperado um pouco de coragem e pareciam resolvidos a fazer o que pudessem.»

O número de indígenas aumentou, formando na praia um verdadeiro cordão humano. Em breve começaram a entrechocar pedras, sinal que habitualmente precedia um ataque. Com dificuldade, por causa da rebentação, os ingleses conseguiram embarcar os víveres que se encontravam na margem e refugiar-se na chalupa, com excepção de John Norton, cabo de marinheiros, que retirava a faxeita da praia. Os indígenas lançaram-se sobre o infeliz e esmagaram-lhe a cabeça com as pedras. Sobre a chalupa caiu igualmente uma chuva desses projécteis, ferindo mais ou menos todos os ocupantes.

Esta manifestação incitou os ingleses a remarem para o mar alto, mas não tardaram a aperceber-se, consternados, que os indígenas lançavam em sua perseguição pirogas carregadas de pedras. Mais ligeiras, estas embarcações não tardaram a alcançá-los e a infligir-lhes novo ataque.

Como ripostar, se não tinham armas? Apenas podiam apanhar as pedras que lhes atiravam e arremessar-lhas por sua vez, mas nessa luta, nova para eles, os indígenas levavam-lhes a palma.

O supremo recurso que lhes ocorreu foi lançarem à água algumas peças de vestuário, a fim de incitarem os atacantes a abandonar a perseguição. Bligh não hesitou, e as pirogas pararam para recolherem aqueles tesouros. Como a noite se aproximava, fizeram meia volta e regressaram à ilha, com a sua presa. Os dezoito ocupantes da chalupa puderam então meditar em paz na sua dramática situação.

Pediram todos ao comandante que os conduzisse de volta a Inglaterra e ele respondeu que não podia esperar socorros nem assistência antes de chegarem à ilha de Timor, distante, pelo menos, mil e duzentas léguas. Em vista disso, todos se declararam dispostos a contentar-se com uma ração diária, fixada por Bligh, após cálculo das provisões restantes, em trinta gramas de pão e num sétimo de litro de água potável.

O comandante fê-los então jurar, com infinita solenidade, que respeitariam o pacto.

«Afastámo-nos da costa - diz Bligh - para percorrer um oceano quase desconhecido, num barco com cerca de dez metros da proa à popa. Tive, todavia, a satisfação de verificar que todos permaneciam mais contentes do que eu com a nossa sorte. Eram quase oito horas do dia 2 de Maio quando, com a vela na primeira rizadura nos fizemos ao largo. Dividi a minha gente em quartos e pus um pouco de ordem na chalupa. Depois demos graças a Deus e agradecemos-Lhe que nos tivesse poupado miraculosamente. Plenamente confiante na Sua misericordiosa protecção, senti o espírito muito mais tranquilo.»


Sir John Barrow, "Revolta na Bounty", tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, Publicações Europa-América, 1972

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