segunda-feira, outubro 25, 2004

Inferno (III)

"Por outro lado, o nosso fogo terrestre, por mais furioso ou vasto que possa ser, é sempre uma extensão limitada; mas o lago de fogo do Inferno é ilimitado, não tendo margens nem fundo. E diz-se que o próprio Diabo, interrogado acerca deste ponto por um soldado, foi obrigado a confessar que uma montanha lançada no oceano ardente seria consumida num instante como um pedaço de cera. E esse fogo terrível não se contentará em atingir os corpos dos danados exteriormente, mas toda a alma perdida será ela mesmo um inferno, as chamas desencadeadas enraivecendo-se até às suas vísceras. Oh! Quão terrível é a sorte desses desgraçados! O sangue ferve e cachoa nas suas veias; o cérebro ferve no crânio; o coração no peito flameja e arde; as entranhas não passam de uma massa vermelha de polpa que se consome; os olhos delicados flamejam como globos em fusão.

"Todavia, tudo o que acabo de vos dizer referente à força, à qualidade e à extensão deste fogo não é nada quando comparado com a sua intensidade, intensidade que é justamente considerada como sendo o instrumento escolhido pela vontade divina para punição da alma e do corpo ao mesmo tempo. Trata-se de um fogo que procede directamente da ira de Deus, e que se manifesta não pela própria actividade, mas como um instrumento da vingança divina. Assim como as águas baptismais purificam a alma com o corpo, também o fogo da punição tortura o espírito com a carne. Todos os sentidos da carne são torturados e o mesmo sucede com todas as faculdades da alma: os olhos com as trevas absolutas e impenetráveis; o nariz com fétidos nauseantes; os ouvidos com berros, uivos e imprecações; o paladar com a matéria imunda, a lepra e a podridão, a imundície inominável e sufocante; o tacto com aguilhões e pregos em brasa e cruéis línguas de fogo. Assim, por meio dos vários tormentos dos sentidos, a alma imortal é eternamente torturada na sua essência mesma, no meio de léguas e léguas de ardentes fogos acesos nos abismos pela majestade ofendida de Deus Omnipotente, e soprados numa perene e sempre crescente fúria pelo sopro raivoso do Todo-Poderoso."

(in "Retrato do Artista quando Jovem", James Joyce, Difel)

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