"O horror desta prisão estreita e sombria é aumentado pelo seu espantoso cheiro. Todas as imundícies do mundo, todos os monturos e escórias do mundo, dizem-nos, correrão para lá como uma vasta e fumegante cloaca, quando a terrível conflagração do último dia tiver purgado o mundo. Por outro lado, o enxofre que ali arde em tão prodigiosa quantidade enche todo o Inferno com o seu intolerável fedor; e os corpos dos danados, eles próprios, exalam um cheiro tão pestilencial que, como diz S. Boaventura, só um deles bastaria para infectar o mundo inteiro. O próprio ar deste mundo, esse elemento puro, torna-se fétido e irrespirável, quando fica fechado muito tempo. Considerai, então, como deve ser fétido o ar do Inferno. Imaginai um cadáver imundo e pútrido, apodrecido, decomposto no fundo de uma sepultura, uma matéria gelatinosa de corrupção liquificada. Imaginai tal carácter presa das chamas, devorado pelo fogo do enxofre ardente, emitindo os densos e horrendos fumos da decomposição repugnante e nauseabunda. E a seguir imaginai esse fedor malsão multiplicado milhões e milhões de vezes pelo número de milhões e milhões de carcaças fétidas comprimidas nas trevas fumarentas, esta enorme fogueira de podridão humana. Imaginai tudo isso, e tereis uma ideia do horrível cheiro do Inferno.
"Mas esse fedor, por mais horrível que seja, não é o maior tormento físico que sofrem os danados. O tormento do fogo é o maior que um tirano jamais infligiu aos seus semelhantes. Colocai por um momento o vosso dedo na chama de uma vela e sentireis a dor causada pelo fogo. Mas o nosso fogo terreno foi criado por Deus para benefício do homem, para manter nele a centelha da vida, para o ajudar nos trabalhos úteis, enquanto o fogo do Inferno é de uma outra qualidade: foi criado por Deus para torturar e castigar o pecador impenitente. Além disso, o nosso fogo terrestre consome mais ou menos rapidamente, conforme o objecto atacado é mais ou menos combustível, a ponto de a ingenuidade humana ter mesmo inventado preparações químicas para impedir ou embaraçar a sua acção. Mas o sulfuroso breu que arde no Inferno é uma substância especialmente criada para arder eternamente com uma indizível fúria. Finalmente, o nosso fogo terrestre destrói à medida que arde, de modo que quanto mais intenso for mais curta será a sua duração; mas o fogo do Inferno possui a propriedade de conservar aquilo que queima e, embora se enfureça com uma incrível ferocidade, essa fúria não tem fim."
(in "Retrato do Artista quando Jovem", James Joyce, Difel)
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