sábado, outubro 23, 2004

Inferno (I)

"- Tentemos agora, por um momento, compreender na medida do possível a natureza dessa morada dos danados que a justiça de um Deus ofendido criou para o castigo eterno dos pecadores. O Inferno é uma prisão estreita, sóbria e sórdida, um habitáculo de demónios e de almas perdidas, cheio de fogo e de fumo. A exiguidade dessa prisão é especialmente designada por Deus para punir aqueles que recusaram manter-se nos limites das Suas leis. Nas prisões terrenas o pobre cativo tem pelo menos uma certa liberdade de movimento, seja apenas entre as quatro paredes da sua cela ou no sinistro pátio da sua prisão. Não acontece assim no Inferno. Lá, devido ao grande número de danados, os prisioneiros estão empilhados uns sobre os outros na sua terrível prisão, cujas paredes, diz-se, têm quatro mil milhas de espessura; e os condenados estão tão completamente imobilizados, tão desamparados, que, como um bem-aventurado santo, Santo Anselmo, escreve no seu Livro das Similitudes, nem sequer têm a possibilidade de tirar do olho o verme que os atormente.

"Jazem nas trevas exteriores. Porque, lembrai-vos disto: as chamas do Inferno não emitem qualquer luz. Assim como, pela ordem de Deus, o fogo da fornalha de Babilónia perdeu o seu calor, mas não a sua luz, assim, pela ordem de Deus, o fogo do Inferno, conquanto retenha a intensidade do seu calor, arde eternamente nas trevas. É uma incessante tempestade de trevas, de negras chamas e de negra fumarada de enxofre a arder, no meio das quais os corpos estão amontoados uns sobre os outros, sem uma nesga de ar. De todas as pragas com que a terra dos faraós foi flagelada, uma só, a praga das trevas, foi classificada de horrível. Que qualificativo daremos então às trevas do Inferno, que hão-de durar não três dias apenas, mas toda a eternidade?"

(in "Retrato do Artista quando Jovem", James Joyce, Difel)

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