- «Reginaldo, Reginaldo,
Pajem de el-rei tão querido,
Não sei porque, Reginaldo,
Te chamam o atrevido.»
- «Porque me atrevi, senhora,
A querer o defendido.»
- «Não foras tu tão cobarde
Que já dormiras comigo.»
- «Senhora zombais de mim
Porque sou vosso cativo.»
- «Eu não no digo zombando,
Que deveras te lo digo.»
- «Pois quando quereis, infanta,
Que vá pelo prometido?»
- «Entre las dez e las onze
Que el-rei não seja sentido.»
Inda não era sol-posto,
Reginaldo adormecido;
As dez não eram bem dadas,
Reginaldo já erguido.
Calçou sapato de pano,
Que de el-rei não fosse ouvido,
Foi-se à câmara da infanta,
Deu-lhe um ai, deu-lhe um gemido.
- «Quem suspira a essa porta,
Quem será o atrevido?»
- «É Reginaldo, senhora,
Que vem pelo prometido.»
- «Levantai-vos minhas aias,
Que assim Deus vos dê marido!
E ide abrir mansinho a porta
Que el-rei não seja sentido.»
Vela o pajem toda a noite...
Por manhã é adormecido;
Chamava o rei que chamava
Que lhe desse o seu vestido:
- «Reginaldo não responde,
Alguma tem sucedido!
Ou está morto o meu pajem
Ou grande traição há sido.»
Responderam os vassalos
Que tudo tinham sentido:
- «Morto não é Reginaldo,
De sono estará perdido.»
Vestiu-se el-rei muito à pressa,
E leva um punhal consigo.
Vai correndo sala e sala,
Abrindo porta e postigo,
Chega ao camarim da infanta,
Entrou sem fazer ruído.
Dormiam tão sossegados
Como mulher e marido.
De nada do que se passava
De nada davam sentido.
Acudiram os vassalos,
Que viram a el-rei perdido:
- «Nunca Vossa Magestade
Mate um homem adormecido.»
Tira el-rei seu punhal de oiro,
Deixa-o entre os dois metido,
O cabo para a princesa,
Para Reginaldo o bico.
Ia-se a virar o pajem,
Sentiu cortar-se no fio:
- «Acorda já, bela infanta,
Triste sono tens dormido!
Olha o punhal de teu pai
Que entre nós está metido.»
- «Cal'te daí, Reginaldo,
Não sejas tão dolorido;
Vai já deitar-te a seus pés,
Que el-rei é bom e sofrido.
Para o mal que temos feito
Não há senão um castigo;
Mas se el-rei mandar matar-te,
Eu hei-de morrer contigo.»
- «Donde vens, ó Reginaldo?»
- «Senhor, de caçar sou vindo.»
- «Que é da caça que caçaste,
Reginaldo o atrevido?»
- «Senhor rei, da caça venho,
Mas não a trago comigo;
Que o trazer caça real
A vassalo é defendido.
Só vos trago uma cabeça,
A minha: dai-lhe o castigo.»
- «Tua sentença está dada,
Morrerás por atrevido.»
Vedes ora o bom do rei
Dando voltas ao sentido:
- «Se mato a bela infanta,
Fica o meu reino perdido...
Para matar Reginaldo,
Criei-o de pequenino...
Metê-lo-ei numa torre
Por princípio de castigo.
- «Dizei-me vós, meus vassalos,
Pois tudo tendes ouvido,
Que mais justiça faremos
Neste pajem atrevido?»
Respondem os condes todos,
E muito bem respondido:
- «Pajem de rei que tal faz,
Tem a cabeça perdido.»
Já o metem numa torre,
Já o vão encarcerar.
Mas ano e dia é passado,
E a sentença por dar.
Veio a mãe de Reginaldo
O seu filho a visitar:
- «Filho, quando te pari
Com tanta dor e pesar,
Era um dia como este,
Teu pai estava a expirar.
Eu coas lágrimas nos olhos,
Filho, te estava a lavar;
Cabelos desta cabeça
Com eles te fui limpar.
E teu pai já na agonia,
Que me estava a encomendar:
Enquanto fosses pequeno
De bom ensino te dar,
E depois que fosses grande
A bom senhor te entregar.
Ai de mim, triste viúva,
Que te não soube criar!
A el-rei te dei por amo,
Que melhor não pude achar:
Tu vais dormir coa infanta
De teu senhor natural!
Perdeste a cabeça, filho,
Que el-rei ta manda cortar!...
Ai! meu filho, antes que morras,
Quero ouvir o teu cantar.»
- «Como hei-de cantar, mi madre,
Se me sinto já finar?»
- «Canta, meu filhinho canta,
Para haver minha bênção,
Que me estou lembrando agora
De teu pai nesta prisão.
Canta-me o que ele cantava
Na noite de São João;
Que tantas vezes mo ouviste
Cantar co meu coração.»
- «Um dia antes do dia
Que é dia de São João,
Me encerraram nestas grades
Para fazer penação.
E aqui estou, pobre coitado,
Metido nesta prisão,
Que não sei onde o Sol nasce,
Quando a Lua faz serão.»
De suas varandas altas
El-rei andava a escutar;
Já se vai onde a princesa,
Pela mão a foi buscar:
- «Anda ouvir, ó minha filha,
Este tão lindo cantar,
Que ou são os anjos no Céu,
Ou as sereias no mar.»
- «Não são os anjos no Céu,
Nem as sereias no mar,
Mas o triste sem-ventura
A quem mandais degolar.»
- «Pois já revogo a sentença,
E já o mando soltar;
Prende-o tu, infanta, agora,
Pois contigo há-de casar.»
(in "Romanceiro", Almeida Garrett, Círculo de Leitores, 1997)
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