terça-feira, março 29, 2005
Valsinha
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita com há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois o dois deram-se os braços com há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhanca toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz
(Vinicius de Moraes e Chico Buarque)
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita com há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois o dois deram-se os braços com há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhanca toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz
(Vinicius de Moraes e Chico Buarque)
segunda-feira, março 28, 2005
Discursos célebres
Tenho uma sugestão de leitura sobre um tema caro a esta pastora: discursos célebres. Aqui. Por exemplo, está lá o discurso de Antero de Quental sobre as "Causas da decadência dos povos peninsulares".
Como seria diferente o discurso político, se não fosse pensado para os dois minutos dos telejornais, e se tivesse ideias e argumentos, sonhos a realizar e formas de os atingir...
Como seria diferente o discurso político, se não fosse pensado para os dois minutos dos telejornais, e se tivesse ideias e argumentos, sonhos a realizar e formas de os atingir...
Controlo esquizofrénico e mal explicado
Num dia, a constituição diz que não é permitido atribuir a cada cidadão um número único. No dia seguinte, vai haver o número único. No outro a seguir, já vai haver uma base de dados genéticos de toda a população portuguesa.
Entretanto, a pergunta sobre se estas decisões foram pensadas. Se se ponderou a razão de ser das restrições anteriores. Se foi feito o balanço dos prós e dos contras.
Num dia, o terrorismo desculpa tudo. No outro, já é a evasão fiscal. A seguir, o problema a resolver são as identificações em casos de catástrofes naturais e, eventualmente, a identificação de criminosos.
Mas como são as coisas em outros países com tradição na defesa dos direitos individuais? E como é que no nosso país se tem aplicado os meios que já estão disponíveis? Tem sido na sua máxima extensão? E quais serão as consequências dos abusos desses novos meios propostos? São os especialistas que não pensam, ou os jornalistas que não sabem perguntar e investigar?
Entretanto, a pergunta sobre se estas decisões foram pensadas. Se se ponderou a razão de ser das restrições anteriores. Se foi feito o balanço dos prós e dos contras.
Num dia, o terrorismo desculpa tudo. No outro, já é a evasão fiscal. A seguir, o problema a resolver são as identificações em casos de catástrofes naturais e, eventualmente, a identificação de criminosos.
Mas como são as coisas em outros países com tradição na defesa dos direitos individuais? E como é que no nosso país se tem aplicado os meios que já estão disponíveis? Tem sido na sua máxima extensão? E quais serão as consequências dos abusos desses novos meios propostos? São os especialistas que não pensam, ou os jornalistas que não sabem perguntar e investigar?
Saudades de sombras de árvores frondosas
Será impressão minha, ou há uma moda na arquitectura actual de linhas muito puras, paredes brancas, pátios espaçosos, mas muito parca em árvores, sombras e espaços para as pessoas se sentarem? Alguém avise esses arquitectos de que a beleza não é incompatível com o bem-estar!
domingo, março 27, 2005
Meu Deus
Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.
(Clarice Lispector)
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.
(Clarice Lispector)
sábado, março 26, 2005
Os Imortais (III)
"Entre os corolários da doutrina de que não existe coisa que não esteja compensada por outra, há um de muito pouca importância teórica, mas que nos induziu, em fins ou no princípio do século X, a dispersar-nos pela face da terra. Cabe nestas palavras: Existe um rio cujas águas dão imortalidade; nalguma região haverá outro rio cujas águas a apaguem. O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorra o mundo acabará, algum dia, por ter bebido de todos. Propusemo-nos descobrir esse rio. A morte (ou a sua alusão) torna os homens preciosos e patéticos. Estes comovem pela sua condição de fantasmas; cada acto que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por apagar-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o calor do irrecuperável e do fortuito. Entre os Imortais, ao contrário, cada acto (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até à vertigem. Não há coisa que esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os Imortais. Homero e eu separámo-nos às portas de Tânger; creio que não nos dissemos adeus."
(do conto "O Imortal", parte IV, in "O Aleph", Jorge Luis Borges, Editorial Estampa)
(do conto "O Imortal", parte IV, in "O Aleph", Jorge Luis Borges, Editorial Estampa)
Os Imortais (II)
"Ser imortal é insignificante; com excepção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se mortal. Tenho notado que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos crêem na imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século prova que só crêem nele, já que destinam a todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou a castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Indostão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e engendra a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto... Doutrinada num exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito todas as coisas ocorrem a todos os homens. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo o homem é credor de toda a bondade, mas também de toda a traição, pelas suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar os números pares e os números ímpares tendem ao equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o talento e a estupidez, e é possível que o rústico poema do Cid seja o contrapeso exigido por um só epíteto das Éclogas ou por uma sentença de Heraclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desejo invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei dos que praticavam o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já passados... Encarados assim, todos os nossos actos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero escreveu a Odisseia; dado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias ou mudanças, o impossível seria não escrever, sequer uma vez, a Odisseia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demónio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou.
"O conceito do mundo como sistema de precisas compensações influi enormemente nos Imortais. Em primeiro lugar, tornou-os invulneráveis à piedade. Mencionei já as velhas pedreiras que sulcavam os campos da outra margem; um homem despenhou-se na mais funda; não podia lastimar-se nem morrer, mas a sede abrasava-o; antes que lhe atirassem uma corda, passaram setenta anos. Nem sequer interessava o próprio destino. O corpo era um submisso animal doméstico e bastava-lhe, cada mês, a esmola de umas horas de sono, de um pouco de água e de uma migalha de carne. Que ninguém nos queira rebaixar a ascetas. Não há prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos entregávamos. Às vezes, um estímulo extraordinário restituía-nos ao mundo físico. Por exemplo, naquela manhã, o velho gozo elementar da chuva. Esses momentos eram raríssimos; todos os Imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que nunca vi de pé: um pássaro fizera ninho no seu peito."
(do conto "O Imortal", parte IV, in "O Aleph", Jorge Luis Borges, Editorial Estampa)
"O conceito do mundo como sistema de precisas compensações influi enormemente nos Imortais. Em primeiro lugar, tornou-os invulneráveis à piedade. Mencionei já as velhas pedreiras que sulcavam os campos da outra margem; um homem despenhou-se na mais funda; não podia lastimar-se nem morrer, mas a sede abrasava-o; antes que lhe atirassem uma corda, passaram setenta anos. Nem sequer interessava o próprio destino. O corpo era um submisso animal doméstico e bastava-lhe, cada mês, a esmola de umas horas de sono, de um pouco de água e de uma migalha de carne. Que ninguém nos queira rebaixar a ascetas. Não há prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos entregávamos. Às vezes, um estímulo extraordinário restituía-nos ao mundo físico. Por exemplo, naquela manhã, o velho gozo elementar da chuva. Esses momentos eram raríssimos; todos os Imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que nunca vi de pé: um pássaro fizera ninho no seu peito."
(do conto "O Imortal", parte IV, in "O Aleph", Jorge Luis Borges, Editorial Estampa)
Registo
Será preciso registar? Será que me vou esquecer? Ontem, na transmissão da cerimónia da Via Sacra, mostraram um papa de costas, sentado de forma estranha, virado para uma televisão que transmitia imagens do Coliseu de Roma. Terei visto mal?
sexta-feira, março 25, 2005
Agradecimentos
Aos blogs Posto de Escuta e Leitura Partilhada, pelo destaque dado, respectivamente, às entradas Blogs com banda sonora e Aos Poetas: obrigada.
Os Imortais (I)
"Tudo me foi esclarecido naquele dia. Os trogloditas eram os Imortais; o riacho de águas arenosas era o rio que o cavaleiro buscava. Quanto à cidade, cujo renome se havia espalhado até ao Ganges, fora assolada pelos Imortais há nove séculos. Com as relíquias da sua ruína ergueram, no mesmo lugar, a desatinada cidade que eu percorri: espécie de paródia ou reverso e também templo dos deuses irracionais que governam o mundo e dos quais nada sabemos, salvo que não se parecem com o homem. Aquela fundação foi o último símbolo a que os Imortais condescenderam; marca uma fase em que, julgando vã qualquer empresa, determinaram viver no pensamento, na pura especulação. Erigiram a obra, esqueceram-na e foram morar nas cavernas. Absortos, quase não percebiam o mundo físico.
"Homero narrou essas coisas como quem fala com uma criança. Também me falou da sua velhice e da derradeira viagem que empreendeu, movido, como Ulisses, pelo propósito de chegar aos homens que não conhecem o mar, não comem carne temperada com sal, nem suspeitam o que seja um remo. Morou um século na Cidade dos Imortais. Quando a derrubaram, aconselhou a fundação de outra. Isto não deve surpreender-nos: diz-se que, depois de cantar a guerra de Ílion, cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criasse o cosmos e em seguida o caos."
(do conto "O Imortal", parte IV, in "O Aleph", Jorge Luis Borges, Editorial Estampa)
"Homero narrou essas coisas como quem fala com uma criança. Também me falou da sua velhice e da derradeira viagem que empreendeu, movido, como Ulisses, pelo propósito de chegar aos homens que não conhecem o mar, não comem carne temperada com sal, nem suspeitam o que seja um remo. Morou um século na Cidade dos Imortais. Quando a derrubaram, aconselhou a fundação de outra. Isto não deve surpreender-nos: diz-se que, depois de cantar a guerra de Ílion, cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criasse o cosmos e em seguida o caos."
(do conto "O Imortal", parte IV, in "O Aleph", Jorge Luis Borges, Editorial Estampa)
quinta-feira, março 24, 2005
Dúvida persistente
Qual é a fórmula para calcular a produtividade de uma empresa ou de um país? Agradece-se antecipadamente a quem a enunciar aqui.
Nova forma de caridade
Aceder a falar com os jovens do telemarketing ou das sondagens, em nome da exploração a que são sujeitos.
Aos Poetas
Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!
E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!
Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!
(Miguel Torga)
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!
E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!
Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!
(Miguel Torga)
A actualidade, os impostos e o Estado-Providência
Entre que pólos se desenvolve o debate político português?
O PS tem o seu programa de governo escrito (baseado, e bem, no seu programa eleitoral). Vago... mas talvez tivesse que o ser, dados os constrangimentos orçamentais impostos pela União Europeia e pelo preço galopante do petróleo.
O que há, no pólo da oposição? Há uma mudança de liderança em curso, pelo que tudo é possível. Vingará a tentação liberal, em contraponto à tradicional social-democracia? Se sim, será mais fácil obter financiamento para as campanhas eleitorais, mas mais difícil cativar votos sem recorrer ao populismo... Se não, vejamos: quantos trabalhadores preferirão um trabalho precário e sem direitos? Quantos jovens preferirão viver indefinidamente "temporários" e a "recibos verdes", sem condições sequer para aceder ao crédito à habitação (porque antes que o arrendamento se torne uma opção racional, muita água terá que passar por baixo da ponte)?
Qual é o problema de algumas pessoas com os impostos? Parece que lhes causa urticária... Não estariam dispostos a pagar mais impostos se isso garantisse serviços públicos de melhor qualidade e uma distribuição mais justa da riqueza?
Querem fazer-nos crer que o Estado-Providência faliu, mas isso não está cabalmente demonstrado. Interessaria que estivesse a quem não beneficia dele. Mais precisamente, a quem fica a perder com ele, e que, não por acaso, é também quem paga campanhas eleitorais, além de garantir os proventos de muitos economistas, jornalistas, politólogos, comentadores...
O PS tem o seu programa de governo escrito (baseado, e bem, no seu programa eleitoral). Vago... mas talvez tivesse que o ser, dados os constrangimentos orçamentais impostos pela União Europeia e pelo preço galopante do petróleo.
O que há, no pólo da oposição? Há uma mudança de liderança em curso, pelo que tudo é possível. Vingará a tentação liberal, em contraponto à tradicional social-democracia? Se sim, será mais fácil obter financiamento para as campanhas eleitorais, mas mais difícil cativar votos sem recorrer ao populismo... Se não, vejamos: quantos trabalhadores preferirão um trabalho precário e sem direitos? Quantos jovens preferirão viver indefinidamente "temporários" e a "recibos verdes", sem condições sequer para aceder ao crédito à habitação (porque antes que o arrendamento se torne uma opção racional, muita água terá que passar por baixo da ponte)?
Qual é o problema de algumas pessoas com os impostos? Parece que lhes causa urticária... Não estariam dispostos a pagar mais impostos se isso garantisse serviços públicos de melhor qualidade e uma distribuição mais justa da riqueza?
Querem fazer-nos crer que o Estado-Providência faliu, mas isso não está cabalmente demonstrado. Interessaria que estivesse a quem não beneficia dele. Mais precisamente, a quem fica a perder com ele, e que, não por acaso, é também quem paga campanhas eleitorais, além de garantir os proventos de muitos economistas, jornalistas, politólogos, comentadores...
quarta-feira, março 23, 2005
Horários diurnos, esse aborrecimento
Gostava imenso de perceber porque é que a televisão pública emite tantos programas que me interessam depois da meia-noite. Será que acreditam que toda a gente tem gravadores de vídeo? Às vezes, como protesto, não gravo nem vejo. Essa televisão que não tem os seus espectadores em consideração não merece ser vista.
Soneto do Amor Total
Amo-te tanto, meu amor...não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amiga e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
Mulher... fêmea... animal
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de amar mais do que pude.
(Vinícius de Moraes)
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amiga e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
Mulher... fêmea... animal
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de amar mais do que pude.
(Vinícius de Moraes)
terça-feira, março 22, 2005
No dia do doutoramento "honoris causa" de Eugénio de Andrade pela Universidade do Porto
Madrigal
Toda a manhã
fui a flor
impaciente
por abrir.
Toda a manhã
fui ardor
do sol
no teu telhado.
Toda a manhã
fui ave
inquieta
no teu jardim.
Toda a manhã
fui ave ou sol ou flor
secretamente
ao pé de ti.
(Eugénio de Andrade)
Toda a manhã
fui a flor
impaciente
por abrir.
Toda a manhã
fui ardor
do sol
no teu telhado.
Toda a manhã
fui ave
inquieta
no teu jardim.
Toda a manhã
fui ave ou sol ou flor
secretamente
ao pé de ti.
(Eugénio de Andrade)
Madrigal triste
I
Que m'importe que tu sois sage?
Sois belle! et sois triste! Les pleurs
Ajoutent un charme au visage,
Comme le fleuve au paysage;
L'orage rajeunit les fleurs.
Je t'aime surtout quand la joie
S'enfuit de ton front terrassé;
Quand ton coeur dans l'horreur se noie;
Quand sur ton présent se déploie
Le nuage affreux du passé.
Je t'aime quand ton grand oeil verse
Une eau chaude comme le sang;
Quand, malgré ma main qui te berce,
Ton angoisse, trop lourde, perce
Comme un râle d'agonisant.
J'aspire, volupté divine!
Hymne profond, délicieux!
Tous les sanglots de ta poitrine,
Et crois que ton coeur s'illumine
Des perles que versent tes yeux!
II
Je sais que ton coeur, qui regorge
De vieux amours déracinés,
Flamboie encor comme une forge,
Et que tu couves sous ta gorge
Un peu de l'orgueil des damnés;
Mais tant, ma chère, que tes rêves
N'auront pas reflété l'Enfer,
Et qu'en un cauchemar sans trêves,
Songeant de poisons et de glaives,
Eprise de poudre et de fer,
N'ouvrant à chacun qu'avec crainte,
Déchiffrant le malheur partout,
Te convulsant quand l'heure tinte,
Tu n'auras pas senti l'étreinte
De l'irrésistible Dégoût,
Tu ne pourras, esclave reine
Qui ne m'aimes qu'avec effroi,
Dans l'horreur de la nuit malsaine,
Me dire, l'âme de cris pleine:
"Je suis ton égale, Ô mon Roi!"
(Charles Baudelaire)
Que m'importe que tu sois sage?
Sois belle! et sois triste! Les pleurs
Ajoutent un charme au visage,
Comme le fleuve au paysage;
L'orage rajeunit les fleurs.
Je t'aime surtout quand la joie
S'enfuit de ton front terrassé;
Quand ton coeur dans l'horreur se noie;
Quand sur ton présent se déploie
Le nuage affreux du passé.
Je t'aime quand ton grand oeil verse
Une eau chaude comme le sang;
Quand, malgré ma main qui te berce,
Ton angoisse, trop lourde, perce
Comme un râle d'agonisant.
J'aspire, volupté divine!
Hymne profond, délicieux!
Tous les sanglots de ta poitrine,
Et crois que ton coeur s'illumine
Des perles que versent tes yeux!
II
Je sais que ton coeur, qui regorge
De vieux amours déracinés,
Flamboie encor comme une forge,
Et que tu couves sous ta gorge
Un peu de l'orgueil des damnés;
Mais tant, ma chère, que tes rêves
N'auront pas reflété l'Enfer,
Et qu'en un cauchemar sans trêves,
Songeant de poisons et de glaives,
Eprise de poudre et de fer,
N'ouvrant à chacun qu'avec crainte,
Déchiffrant le malheur partout,
Te convulsant quand l'heure tinte,
Tu n'auras pas senti l'étreinte
De l'irrésistible Dégoût,
Tu ne pourras, esclave reine
Qui ne m'aimes qu'avec effroi,
Dans l'horreur de la nuit malsaine,
Me dire, l'âme de cris pleine:
"Je suis ton égale, Ô mon Roi!"
(Charles Baudelaire)
sábado, março 19, 2005
Pensamento independente
Qual será a melhor estratégia para manter a independência de pensamento? Querer ou não querer saber a opinião de opinadores de carreira? Conseguiremos sempre evitar ser sugestionados pelo seu pensamento e manter uma distância crítica? Teremos sempre a disponibilidade mental para reflectir para lá do que lemos e ouvimos?
Reginaldo
- «Reginaldo, Reginaldo,
Pajem de el-rei tão querido,
Não sei porque, Reginaldo,
Te chamam o atrevido.»
- «Porque me atrevi, senhora,
A querer o defendido.»
- «Não foras tu tão cobarde
Que já dormiras comigo.»
- «Senhora zombais de mim
Porque sou vosso cativo.»
- «Eu não no digo zombando,
Que deveras te lo digo.»
- «Pois quando quereis, infanta,
Que vá pelo prometido?»
- «Entre las dez e las onze
Que el-rei não seja sentido.»
Inda não era sol-posto,
Reginaldo adormecido;
As dez não eram bem dadas,
Reginaldo já erguido.
Calçou sapato de pano,
Que de el-rei não fosse ouvido,
Foi-se à câmara da infanta,
Deu-lhe um ai, deu-lhe um gemido.
- «Quem suspira a essa porta,
Quem será o atrevido?»
- «É Reginaldo, senhora,
Que vem pelo prometido.»
- «Levantai-vos minhas aias,
Que assim Deus vos dê marido!
E ide abrir mansinho a porta
Que el-rei não seja sentido.»
Vela o pajem toda a noite...
Por manhã é adormecido;
Chamava o rei que chamava
Que lhe desse o seu vestido:
- «Reginaldo não responde,
Alguma tem sucedido!
Ou está morto o meu pajem
Ou grande traição há sido.»
Responderam os vassalos
Que tudo tinham sentido:
- «Morto não é Reginaldo,
De sono estará perdido.»
Vestiu-se el-rei muito à pressa,
E leva um punhal consigo.
Vai correndo sala e sala,
Abrindo porta e postigo,
Chega ao camarim da infanta,
Entrou sem fazer ruído.
Dormiam tão sossegados
Como mulher e marido.
De nada do que se passava
De nada davam sentido.
Acudiram os vassalos,
Que viram a el-rei perdido:
- «Nunca Vossa Magestade
Mate um homem adormecido.»
Tira el-rei seu punhal de oiro,
Deixa-o entre os dois metido,
O cabo para a princesa,
Para Reginaldo o bico.
Ia-se a virar o pajem,
Sentiu cortar-se no fio:
- «Acorda já, bela infanta,
Triste sono tens dormido!
Olha o punhal de teu pai
Que entre nós está metido.»
- «Cal'te daí, Reginaldo,
Não sejas tão dolorido;
Vai já deitar-te a seus pés,
Que el-rei é bom e sofrido.
Para o mal que temos feito
Não há senão um castigo;
Mas se el-rei mandar matar-te,
Eu hei-de morrer contigo.»
- «Donde vens, ó Reginaldo?»
- «Senhor, de caçar sou vindo.»
- «Que é da caça que caçaste,
Reginaldo o atrevido?»
- «Senhor rei, da caça venho,
Mas não a trago comigo;
Que o trazer caça real
A vassalo é defendido.
Só vos trago uma cabeça,
A minha: dai-lhe o castigo.»
- «Tua sentença está dada,
Morrerás por atrevido.»
Vedes ora o bom do rei
Dando voltas ao sentido:
- «Se mato a bela infanta,
Fica o meu reino perdido...
Para matar Reginaldo,
Criei-o de pequenino...
Metê-lo-ei numa torre
Por princípio de castigo.
- «Dizei-me vós, meus vassalos,
Pois tudo tendes ouvido,
Que mais justiça faremos
Neste pajem atrevido?»
Respondem os condes todos,
E muito bem respondido:
- «Pajem de rei que tal faz,
Tem a cabeça perdido.»
Já o metem numa torre,
Já o vão encarcerar.
Mas ano e dia é passado,
E a sentença por dar.
Veio a mãe de Reginaldo
O seu filho a visitar:
- «Filho, quando te pari
Com tanta dor e pesar,
Era um dia como este,
Teu pai estava a expirar.
Eu coas lágrimas nos olhos,
Filho, te estava a lavar;
Cabelos desta cabeça
Com eles te fui limpar.
E teu pai já na agonia,
Que me estava a encomendar:
Enquanto fosses pequeno
De bom ensino te dar,
E depois que fosses grande
A bom senhor te entregar.
Ai de mim, triste viúva,
Que te não soube criar!
A el-rei te dei por amo,
Que melhor não pude achar:
Tu vais dormir coa infanta
De teu senhor natural!
Perdeste a cabeça, filho,
Que el-rei ta manda cortar!...
Ai! meu filho, antes que morras,
Quero ouvir o teu cantar.»
- «Como hei-de cantar, mi madre,
Se me sinto já finar?»
- «Canta, meu filhinho canta,
Para haver minha bênção,
Que me estou lembrando agora
De teu pai nesta prisão.
Canta-me o que ele cantava
Na noite de São João;
Que tantas vezes mo ouviste
Cantar co meu coração.»
- «Um dia antes do dia
Que é dia de São João,
Me encerraram nestas grades
Para fazer penação.
E aqui estou, pobre coitado,
Metido nesta prisão,
Que não sei onde o Sol nasce,
Quando a Lua faz serão.»
De suas varandas altas
El-rei andava a escutar;
Já se vai onde a princesa,
Pela mão a foi buscar:
- «Anda ouvir, ó minha filha,
Este tão lindo cantar,
Que ou são os anjos no Céu,
Ou as sereias no mar.»
- «Não são os anjos no Céu,
Nem as sereias no mar,
Mas o triste sem-ventura
A quem mandais degolar.»
- «Pois já revogo a sentença,
E já o mando soltar;
Prende-o tu, infanta, agora,
Pois contigo há-de casar.»
(in "Romanceiro", Almeida Garrett, Círculo de Leitores, 1997)
Pajem de el-rei tão querido,
Não sei porque, Reginaldo,
Te chamam o atrevido.»
- «Porque me atrevi, senhora,
A querer o defendido.»
- «Não foras tu tão cobarde
Que já dormiras comigo.»
- «Senhora zombais de mim
Porque sou vosso cativo.»
- «Eu não no digo zombando,
Que deveras te lo digo.»
- «Pois quando quereis, infanta,
Que vá pelo prometido?»
- «Entre las dez e las onze
Que el-rei não seja sentido.»
Inda não era sol-posto,
Reginaldo adormecido;
As dez não eram bem dadas,
Reginaldo já erguido.
Calçou sapato de pano,
Que de el-rei não fosse ouvido,
Foi-se à câmara da infanta,
Deu-lhe um ai, deu-lhe um gemido.
- «Quem suspira a essa porta,
Quem será o atrevido?»
- «É Reginaldo, senhora,
Que vem pelo prometido.»
- «Levantai-vos minhas aias,
Que assim Deus vos dê marido!
E ide abrir mansinho a porta
Que el-rei não seja sentido.»
Vela o pajem toda a noite...
Por manhã é adormecido;
Chamava o rei que chamava
Que lhe desse o seu vestido:
- «Reginaldo não responde,
Alguma tem sucedido!
Ou está morto o meu pajem
Ou grande traição há sido.»
Responderam os vassalos
Que tudo tinham sentido:
- «Morto não é Reginaldo,
De sono estará perdido.»
Vestiu-se el-rei muito à pressa,
E leva um punhal consigo.
Vai correndo sala e sala,
Abrindo porta e postigo,
Chega ao camarim da infanta,
Entrou sem fazer ruído.
Dormiam tão sossegados
Como mulher e marido.
De nada do que se passava
De nada davam sentido.
Acudiram os vassalos,
Que viram a el-rei perdido:
- «Nunca Vossa Magestade
Mate um homem adormecido.»
Tira el-rei seu punhal de oiro,
Deixa-o entre os dois metido,
O cabo para a princesa,
Para Reginaldo o bico.
Ia-se a virar o pajem,
Sentiu cortar-se no fio:
- «Acorda já, bela infanta,
Triste sono tens dormido!
Olha o punhal de teu pai
Que entre nós está metido.»
- «Cal'te daí, Reginaldo,
Não sejas tão dolorido;
Vai já deitar-te a seus pés,
Que el-rei é bom e sofrido.
Para o mal que temos feito
Não há senão um castigo;
Mas se el-rei mandar matar-te,
Eu hei-de morrer contigo.»
- «Donde vens, ó Reginaldo?»
- «Senhor, de caçar sou vindo.»
- «Que é da caça que caçaste,
Reginaldo o atrevido?»
- «Senhor rei, da caça venho,
Mas não a trago comigo;
Que o trazer caça real
A vassalo é defendido.
Só vos trago uma cabeça,
A minha: dai-lhe o castigo.»
- «Tua sentença está dada,
Morrerás por atrevido.»
Vedes ora o bom do rei
Dando voltas ao sentido:
- «Se mato a bela infanta,
Fica o meu reino perdido...
Para matar Reginaldo,
Criei-o de pequenino...
Metê-lo-ei numa torre
Por princípio de castigo.
- «Dizei-me vós, meus vassalos,
Pois tudo tendes ouvido,
Que mais justiça faremos
Neste pajem atrevido?»
Respondem os condes todos,
E muito bem respondido:
- «Pajem de rei que tal faz,
Tem a cabeça perdido.»
Já o metem numa torre,
Já o vão encarcerar.
Mas ano e dia é passado,
E a sentença por dar.
Veio a mãe de Reginaldo
O seu filho a visitar:
- «Filho, quando te pari
Com tanta dor e pesar,
Era um dia como este,
Teu pai estava a expirar.
Eu coas lágrimas nos olhos,
Filho, te estava a lavar;
Cabelos desta cabeça
Com eles te fui limpar.
E teu pai já na agonia,
Que me estava a encomendar:
Enquanto fosses pequeno
De bom ensino te dar,
E depois que fosses grande
A bom senhor te entregar.
Ai de mim, triste viúva,
Que te não soube criar!
A el-rei te dei por amo,
Que melhor não pude achar:
Tu vais dormir coa infanta
De teu senhor natural!
Perdeste a cabeça, filho,
Que el-rei ta manda cortar!...
Ai! meu filho, antes que morras,
Quero ouvir o teu cantar.»
- «Como hei-de cantar, mi madre,
Se me sinto já finar?»
- «Canta, meu filhinho canta,
Para haver minha bênção,
Que me estou lembrando agora
De teu pai nesta prisão.
Canta-me o que ele cantava
Na noite de São João;
Que tantas vezes mo ouviste
Cantar co meu coração.»
- «Um dia antes do dia
Que é dia de São João,
Me encerraram nestas grades
Para fazer penação.
E aqui estou, pobre coitado,
Metido nesta prisão,
Que não sei onde o Sol nasce,
Quando a Lua faz serão.»
De suas varandas altas
El-rei andava a escutar;
Já se vai onde a princesa,
Pela mão a foi buscar:
- «Anda ouvir, ó minha filha,
Este tão lindo cantar,
Que ou são os anjos no Céu,
Ou as sereias no mar.»
- «Não são os anjos no Céu,
Nem as sereias no mar,
Mas o triste sem-ventura
A quem mandais degolar.»
- «Pois já revogo a sentença,
E já o mando soltar;
Prende-o tu, infanta, agora,
Pois contigo há-de casar.»
(in "Romanceiro", Almeida Garrett, Círculo de Leitores, 1997)
sexta-feira, março 18, 2005
Chuva ácida
Não há chuva. O que nos salvará, sem chuva? Mas... e se a chuva fosse ácida, tão ácida quanto a merecemos? Precisamos mesmo de tantos carros?
As leis
"As leis mais não fazem do que espelhar a fraqueza dos homens que as fizeram. Tal como estes, elas são variáveis.
"Algumas foram impostas nas grandes nações pelos poderosos para esmagar os fracos. Eram de tal forma equívocas que precisavam do esforço de mil intérpretes para comentá-las; e, como a maior parte destes apenas fez a sua glosa tal como se faz um qualquer trabalho para ganhar algum dinheiro, os comentários tornaram-se ainda mais obscuros do que o texto. A lei transformou-se numa faca de dois gumes, que degola tanto o inocente como o culpado. Desta forma, aquilo que deveria ser a salvaguarda das nações tornou-se tantas vezes no seu flagelo que nos perguntamos se a melhor das legislações não seria antes não ter nenhuma.
"Com efeito, se fossem alvo de um processo do qual dependesse a vossa vida, colocando-se, de um lado, as compilações dos Barthole, dos Cujas, etc., e, do outro, vos fossem apresentados vinte juízes pouco sábios, mas anciãos isentos das paixões que corrompem o coração, que estivessem acima da necessidade que o degrada, e acostumados aos negócios, cujo hábito torna quase sempre o juízo recto, digam-me, por quem é que escolheriam ser julgados, por aquele chorrilho de palavreados presunçosos, tão interesseiros quanto ininteligíveis, ou pelos vinte ignorantes respeitáveis?
"Depois de ter experienciado bem a dificuldade quase intransponível de compor um bom código criminal, igualmente longe do rigor e da indulgência, digo àqueles que empreendam esta tarefa penosa: Suplico-vos, senhores, que me esclareçam acerca dos delitos aos quais a miserável natureza humana está mais sujeita. Um Estado bem policiado não deve preveni-los tanto quanto possível, antes de pensar em puni-los?
"Propor-vos-ia recompensar as virtudes no povo, segundo a lei instituída no mais antigo império e mais bem policiada da Terra, se não estivéssemos obrigados pelo nosso tema a nos limitarmos aos castigos dos crimes."
(in "Prémio da Justiça e da Humanidade", Voltaire, Vega)
"Algumas foram impostas nas grandes nações pelos poderosos para esmagar os fracos. Eram de tal forma equívocas que precisavam do esforço de mil intérpretes para comentá-las; e, como a maior parte destes apenas fez a sua glosa tal como se faz um qualquer trabalho para ganhar algum dinheiro, os comentários tornaram-se ainda mais obscuros do que o texto. A lei transformou-se numa faca de dois gumes, que degola tanto o inocente como o culpado. Desta forma, aquilo que deveria ser a salvaguarda das nações tornou-se tantas vezes no seu flagelo que nos perguntamos se a melhor das legislações não seria antes não ter nenhuma.
"Com efeito, se fossem alvo de um processo do qual dependesse a vossa vida, colocando-se, de um lado, as compilações dos Barthole, dos Cujas, etc., e, do outro, vos fossem apresentados vinte juízes pouco sábios, mas anciãos isentos das paixões que corrompem o coração, que estivessem acima da necessidade que o degrada, e acostumados aos negócios, cujo hábito torna quase sempre o juízo recto, digam-me, por quem é que escolheriam ser julgados, por aquele chorrilho de palavreados presunçosos, tão interesseiros quanto ininteligíveis, ou pelos vinte ignorantes respeitáveis?
"Depois de ter experienciado bem a dificuldade quase intransponível de compor um bom código criminal, igualmente longe do rigor e da indulgência, digo àqueles que empreendam esta tarefa penosa: Suplico-vos, senhores, que me esclareçam acerca dos delitos aos quais a miserável natureza humana está mais sujeita. Um Estado bem policiado não deve preveni-los tanto quanto possível, antes de pensar em puni-los?
"Propor-vos-ia recompensar as virtudes no povo, segundo a lei instituída no mais antigo império e mais bem policiada da Terra, se não estivéssemos obrigados pelo nosso tema a nos limitarmos aos castigos dos crimes."
(in "Prémio da Justiça e da Humanidade", Voltaire, Vega)
quinta-feira, março 17, 2005
Marciana ou marcianos?
Por vezes, sinto-me de um planeta diferente do de certas pessoas. Por exemplo, quando ouço jovens adultos dizer que "não gostam de política" ou que "começaram a ler no ano passado, com o Harry Potter".
Amor
Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!
Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.
Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!
Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.
Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?
(Irene Lisboa)
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!
Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.
Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!
Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.
Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?
(Irene Lisboa)
quarta-feira, março 16, 2005
Judeus
Por que é que sabemos tão pouco sobre a história dos judeus em Portugal? Por que é que um povo se fecha sobre si próprio?
terça-feira, março 15, 2005
segunda-feira, março 14, 2005
O Captain! My Captain!
O Captain! my Captain! our fearful trip is done;
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up—for you the flag is flung—for you the bugle trills;
For you bouquets and ribbon’d wreaths—for you the shores a-crowding;
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head;
It is some dream that on the deck,
You’ve fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchor’d safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;
Exult, O shores, and ring, O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
(Walt Whitman)
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up—for you the flag is flung—for you the bugle trills;
For you bouquets and ribbon’d wreaths—for you the shores a-crowding;
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head;
It is some dream that on the deck,
You’ve fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchor’d safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;
Exult, O shores, and ring, O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
(Walt Whitman)
Agradecimentos
Ao blog Atmosfera pela imerecida distinção e ao blog Posto de Escuta pelo destaque dado à entrada The Library and the Loneliness: muito obrigada!
domingo, março 13, 2005
A ilha
Chegava-se à ilha, pousava-se os pés no cais e caminhava-se para dentro da pequena floresta até encontrar o lugar para pernoitar. Depois, durante dias e dias, ia-se à praia, de uma areia branca e fina. Entre as ondas de areia, quase junto ao mar, corpos nus rendiam-se ao sol. Uma costa longa, tão longa que parecia não ter fim. A ilha parecia o mundo inteiro.
Blogs com banda sonora
Já não se pode pôr música a tocar no computador e ler blogs ao mesmo tempo. Os blogs com banda sonora não original multiplicam-se. Tem graça, porque quando aprendi a pôr música em páginas web, também fui alertada para não dar música sem expresso consentimento do interlocutor. Para não "dar barraca" nos empregos, dizia-se... O meu argumento é outro: para não interromper Beethoven, SFF.
sábado, março 12, 2005
Trabalho
O que é o "direito ao trabalho"? Uma ficção? O trabalho "dignifica"? Ou será que o homem não nasceu para trabalhar, como dizia o Prof. Agostinho da Silva?
Conde Yanno
Chorava a infanta, chorava,
Chorava e razão havia,
Vivendo tão descontente;
Seu pai por casar a tinha.
Acordou el-rei da cama
Com o pranto que fazia:
- «Que tens tu, querida Infanta,
Que tens tu, ó filha minha?»
- «Senhor pai, o que hei-de eu ter
Senão que me pesa a vida?
De três irmãs que nós éramos,
Solteira eu só ficaria.»
- «Que queres tu que eu te faça?
Mas a culpa não é minha.
Cá vieram embaixadas
De Guitaina e Normandia;
Nem ouvi-las não quiseste,
Nem fazer-lhes cortesia...
Na minha corte não vejo
Marido que te daria...
Só se fosse o conde Yanno,
E esse já mulher havia.»
- «Ai! rico pai da minha alma,
Pois esse é que eu queria.
Se ele tem mulher e filhos,
A mim muito mais devia.
Que me não soube guardar
A fé que me prometia.»
Manda el-rei chamar o conde,
Sem saber o que faria:
Que lhe viesse falar...
Sem saber que lhe diria.
- «Inda agora vim do paço,
Já el-rei lá me queria!
Ai! será para meu bem?
Ai! para meu mal seria?»
Conde Yanno que chegava,
El-rei que a buscar o vinha:
- «Beijo a mão a Vossa Alteza;
Que quer Vossa Senhoria?»
Responde-lhe agora o rei
Com grande merencoria:
- «Beijai, que mercê vos faço;
Casareis com minha filha.»
Cuidou de cair por morto
O conde que tal ouvia:
- «Senhor rei, que sou casado
Já passa mais de ano e dia!»
- «Matareis vossa mulher,
Casareis com minha filha.»
- «Senhor, como hei-de matá-la
Se a morte me não mer'cia?»
- «Calai-vos, conde, calai-vos,
Não vos quero demasia;
Filhas de reis não se enganam
Como uma mulher cativa.»
- «Senhor, que é muita razão,
Mais razão que ser devia,
Para me matar a mim
Que tanto vos ofendia;
Mas matar uma inocente
Com tamanha aleivosia!
Nesta vida nem na outra
Deus mo não perdoaria.»
- «A condessa há-de morrer
Pelo mal que cá fazia.
Quero ver sua cabeça
Nesta doirada bacia.»
Foi-se embora o conde Yanno,
Muito triste que ele ia.
Adiante um pajem de el-rei
Levava a negra bacia.
O pajem ia de luto,
De luto o conde vestia:
Mais dó levava no peito
Cos apertos da agonia.
A condessa, que o esperava,
De muito longe que o via,
Com o filhinho nos braços
Para abraçá-lo corria.
- «Bem-vindo sejais, meu conde,
Bem-vinda minha alegria!»
Ele sem dizer palavra
Pelas escadas subia.
Mandou fechar seu palácio,
Coisa que nunca fazia;
Mandou logo pôr a ceia
Como quem lhe apetecia.
Sentaram-se ambos à mesa,
Nem um nem outro comia;
As lágrimas eram um rio
Que pela mesa corria.
Foi a beijar o filhinho
Que a mãe aos peitos trazia,
Largou o seio o inocente,
Como um anjo lhe sorria.
Quando tal viu a condessa,
O coração lhe partia;
Desata em tamanho choro
Que em toda a casa se ouvia;
- «Que tens tu, querido conde,
Que tens tu, ó vida minha?
Tira-me já destas ânsias,
El-rei o que te queria?»
Ele afogava em soluços,
Responder-lhe não podia;
Ela, apertando-o nos braços,
Com muito amor lhe dizia:
- «Abre-me o teu coração,
Desafoga essa agonia,
Dá-me da tua tristeza,
Dar-te-ei da minha alegria.»
Levantou-se o conde Yanno,
A condessa que o seguia.
Deitaram-se ambos no leito;
Nem um nem outro dormia.
Ouvireis a desgraçada,
Ouvide ora o que dizia:
- «Peço-te por Deus do Céu
E pela Virgem Maria,
Antes me mates, meu conde,
Que eu ver-te nessa agonia.»
- «Morto seja quem tal manda,
Mais a sua tirania!»
- «Ai! não te entendo, meu conde,
Dize-me, por tua vida,
Que negra ventura é esta,
Que entre nós está metida?»
- «Ventura da sem-ventura,
Grande foi a tua mofina!
Manda-me el-rei que te mate,
Que case com sua filha.»
Palavras não eram ditas,
Inda mal lhas ouviria,
A desgraçada condessa
Por morta no chão caía.
Não quis Deus que ali morresse...
Triste que ali não morria!
Maior dor do que a da morte
A torna a chamar à vida.
- «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio haveria;
Ai! não me mates, meu conde,
E um alvitre te daria:
A meu pai me mandarás,
Pai que tanto me queria!
Ter-me-ão por filha donzela
E eu a fé te guardaria.
Criarei este inocente
Que a outra não criaria;
Manter-te-ei castidade
Como sempre ta mantia.»
- «Ai como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
- «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio teria,
Meter-me-ás num convento
Da ordem da freiraria;
Dar-me-ão o pão por onça
E a água por medida:
Eu lá morrerei de pena,
E a infanta o não saberia.»
- «Ai! como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se quer ver tua cabeça
Nesta maldita bacia?»
- «Fecharas-me numa torre,
Nem Sol, nem Lua veria,
As horas da minha vida
Por meus ais as contaria.»
- «Ai! como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
Palavras não eram ditas,
El-rei que à porta batia:
Se a condessa não é morta,
Que então ele a mataria.
- «A condessa não é morta
Mas está na agonia.»
- «Deixa-me dizer, meu conde,
Uma oração que eu sabia.»
- «Dizei depressa, condessa,
Antes que amanheça o dia.»
- «Ai! quem poderá rezar,
Ó virgem Santa Maria!
Que eu não me pesa da morte,
Pesa-me da aleivosia:
Mais me pesa de ti, conde,
E da tua cobardia.
Matas-me por tuas mãos.
Só porque el-rei o queria!
Ai! Deus te perdoe, conde,
Lá na hora da contia.
Deixar-me dizer adeus
A tudo o que eu mais queria;
Às flores deste jardim,
Às águas da fonte fria.
Adeus cravos, adeus rosas,
Adeus flor da Alexandria!
Guardai-me vós meus amores
Que outrem me não guardaria.
Dêem-me cá esse menino,
Entranhas da minha vida;
Deste sangue de meu peito
Mamará por despedida.
Mama, meu filhinho, mama
Desse leite da agonia;
Que até'gora tinhas mãe,
Mãe que tanto te queria,
Amanhã terás madrasta
De mais alta senhoria...»
Tocam nos sinos na Sé...
Ai Jesus! quem morreria?
Responde o filhinho ao peito,
Respondeu - que maravilha!
- «Morreu, foi a nossa Infanta
Pelos males que fazia;
Descasar os bem casados:
Coisa que Deus não queria.»
(in "Romanceiro", Almeida Garrett, Círculo de Leitores, 1997)
Chorava e razão havia,
Vivendo tão descontente;
Seu pai por casar a tinha.
Acordou el-rei da cama
Com o pranto que fazia:
- «Que tens tu, querida Infanta,
Que tens tu, ó filha minha?»
- «Senhor pai, o que hei-de eu ter
Senão que me pesa a vida?
De três irmãs que nós éramos,
Solteira eu só ficaria.»
- «Que queres tu que eu te faça?
Mas a culpa não é minha.
Cá vieram embaixadas
De Guitaina e Normandia;
Nem ouvi-las não quiseste,
Nem fazer-lhes cortesia...
Na minha corte não vejo
Marido que te daria...
Só se fosse o conde Yanno,
E esse já mulher havia.»
- «Ai! rico pai da minha alma,
Pois esse é que eu queria.
Se ele tem mulher e filhos,
A mim muito mais devia.
Que me não soube guardar
A fé que me prometia.»
Manda el-rei chamar o conde,
Sem saber o que faria:
Que lhe viesse falar...
Sem saber que lhe diria.
- «Inda agora vim do paço,
Já el-rei lá me queria!
Ai! será para meu bem?
Ai! para meu mal seria?»
Conde Yanno que chegava,
El-rei que a buscar o vinha:
- «Beijo a mão a Vossa Alteza;
Que quer Vossa Senhoria?»
Responde-lhe agora o rei
Com grande merencoria:
- «Beijai, que mercê vos faço;
Casareis com minha filha.»
Cuidou de cair por morto
O conde que tal ouvia:
- «Senhor rei, que sou casado
Já passa mais de ano e dia!»
- «Matareis vossa mulher,
Casareis com minha filha.»
- «Senhor, como hei-de matá-la
Se a morte me não mer'cia?»
- «Calai-vos, conde, calai-vos,
Não vos quero demasia;
Filhas de reis não se enganam
Como uma mulher cativa.»
- «Senhor, que é muita razão,
Mais razão que ser devia,
Para me matar a mim
Que tanto vos ofendia;
Mas matar uma inocente
Com tamanha aleivosia!
Nesta vida nem na outra
Deus mo não perdoaria.»
- «A condessa há-de morrer
Pelo mal que cá fazia.
Quero ver sua cabeça
Nesta doirada bacia.»
Foi-se embora o conde Yanno,
Muito triste que ele ia.
Adiante um pajem de el-rei
Levava a negra bacia.
O pajem ia de luto,
De luto o conde vestia:
Mais dó levava no peito
Cos apertos da agonia.
A condessa, que o esperava,
De muito longe que o via,
Com o filhinho nos braços
Para abraçá-lo corria.
- «Bem-vindo sejais, meu conde,
Bem-vinda minha alegria!»
Ele sem dizer palavra
Pelas escadas subia.
Mandou fechar seu palácio,
Coisa que nunca fazia;
Mandou logo pôr a ceia
Como quem lhe apetecia.
Sentaram-se ambos à mesa,
Nem um nem outro comia;
As lágrimas eram um rio
Que pela mesa corria.
Foi a beijar o filhinho
Que a mãe aos peitos trazia,
Largou o seio o inocente,
Como um anjo lhe sorria.
Quando tal viu a condessa,
O coração lhe partia;
Desata em tamanho choro
Que em toda a casa se ouvia;
- «Que tens tu, querido conde,
Que tens tu, ó vida minha?
Tira-me já destas ânsias,
El-rei o que te queria?»
Ele afogava em soluços,
Responder-lhe não podia;
Ela, apertando-o nos braços,
Com muito amor lhe dizia:
- «Abre-me o teu coração,
Desafoga essa agonia,
Dá-me da tua tristeza,
Dar-te-ei da minha alegria.»
Levantou-se o conde Yanno,
A condessa que o seguia.
Deitaram-se ambos no leito;
Nem um nem outro dormia.
Ouvireis a desgraçada,
Ouvide ora o que dizia:
- «Peço-te por Deus do Céu
E pela Virgem Maria,
Antes me mates, meu conde,
Que eu ver-te nessa agonia.»
- «Morto seja quem tal manda,
Mais a sua tirania!»
- «Ai! não te entendo, meu conde,
Dize-me, por tua vida,
Que negra ventura é esta,
Que entre nós está metida?»
- «Ventura da sem-ventura,
Grande foi a tua mofina!
Manda-me el-rei que te mate,
Que case com sua filha.»
Palavras não eram ditas,
Inda mal lhas ouviria,
A desgraçada condessa
Por morta no chão caía.
Não quis Deus que ali morresse...
Triste que ali não morria!
Maior dor do que a da morte
A torna a chamar à vida.
- «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio haveria;
Ai! não me mates, meu conde,
E um alvitre te daria:
A meu pai me mandarás,
Pai que tanto me queria!
Ter-me-ão por filha donzela
E eu a fé te guardaria.
Criarei este inocente
Que a outra não criaria;
Manter-te-ei castidade
Como sempre ta mantia.»
- «Ai como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
- «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio teria,
Meter-me-ás num convento
Da ordem da freiraria;
Dar-me-ão o pão por onça
E a água por medida:
Eu lá morrerei de pena,
E a infanta o não saberia.»
- «Ai! como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se quer ver tua cabeça
Nesta maldita bacia?»
- «Fecharas-me numa torre,
Nem Sol, nem Lua veria,
As horas da minha vida
Por meus ais as contaria.»
- «Ai! como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
Palavras não eram ditas,
El-rei que à porta batia:
Se a condessa não é morta,
Que então ele a mataria.
- «A condessa não é morta
Mas está na agonia.»
- «Deixa-me dizer, meu conde,
Uma oração que eu sabia.»
- «Dizei depressa, condessa,
Antes que amanheça o dia.»
- «Ai! quem poderá rezar,
Ó virgem Santa Maria!
Que eu não me pesa da morte,
Pesa-me da aleivosia:
Mais me pesa de ti, conde,
E da tua cobardia.
Matas-me por tuas mãos.
Só porque el-rei o queria!
Ai! Deus te perdoe, conde,
Lá na hora da contia.
Deixar-me dizer adeus
A tudo o que eu mais queria;
Às flores deste jardim,
Às águas da fonte fria.
Adeus cravos, adeus rosas,
Adeus flor da Alexandria!
Guardai-me vós meus amores
Que outrem me não guardaria.
Dêem-me cá esse menino,
Entranhas da minha vida;
Deste sangue de meu peito
Mamará por despedida.
Mama, meu filhinho, mama
Desse leite da agonia;
Que até'gora tinhas mãe,
Mãe que tanto te queria,
Amanhã terás madrasta
De mais alta senhoria...»
Tocam nos sinos na Sé...
Ai Jesus! quem morreria?
Responde o filhinho ao peito,
Respondeu - que maravilha!
- «Morreu, foi a nossa Infanta
Pelos males que fazia;
Descasar os bem casados:
Coisa que Deus não queria.»
(in "Romanceiro", Almeida Garrett, Círculo de Leitores, 1997)
quinta-feira, março 10, 2005
A escrita
Para quê o esforço de aperfeiçoar as técnicas difíceis da escrita? Houve tempos em que a escrita produzia obras primas e mudava o curso da História. Hoje, quase tudo é pastiche de ideias já pensadas e já escritas, e perde-se na imensidade da produção literária.
E, no entanto, há coisas intemporais. Como, por exemplo, a rebeldia dos adolescentes. Que pode ser expressa em palavras escritas. Como a necessidade de dar sentido ao mundo em que vivemos. Que pode usar as regras formais da escrita para se apoiar. Como a necessidade de comunicar, tão própria destes seres sociais que são os seres humanos. Que pode escrever-se de uma forma sempre pessoal...
E, no entanto, há coisas intemporais. Como, por exemplo, a rebeldia dos adolescentes. Que pode ser expressa em palavras escritas. Como a necessidade de dar sentido ao mundo em que vivemos. Que pode usar as regras formais da escrita para se apoiar. Como a necessidade de comunicar, tão própria destes seres sociais que são os seres humanos. Que pode escrever-se de uma forma sempre pessoal...
Bela Infanta
Estava a bela Infanta
No seu jardim assentada
Com o pente de oiro fino
Seus cabelos penteava.
Deitou os olhos ao mar
Viu uma nobre armada;
Capitão que nela vinha,
Muito bem que a governava.
- «Dize-me, ó capitão
Dessa tua nobre armada,
Se encontraste meu marido
Na terra que Deus pisava.»
- «Anda tanto cavaleiro
Naquela terra sagrada...
Diz-me tu, ó senhora,
As senhas que ele levava.»
- «Levava cavalo branco,
Selim de prata doirada;
Na ponta da sua lança
A cruz de Cristo levava.
- «Pelos sinais que me deste
Lá o vi numa estacada
Morrer morte de valente:
Eu sua morte vingava.»
Ai triste de mim viúva,
Ai triste de mim coitada!
De três filhinhas que tenho,
Sem nenhuma ser casada!...»
- Que darias tu, senhora,
A quem no trouxera aqui?»
- «Dera-lhe oiro e prata fina,
Quanta riqueza há por i.»
- «Nâo quero oiro nem prata,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui?»
- «De três moinhos que tenho,
Todos três tos dera a ti;
Um mói o cravo e a canela,
Outro mói do gerzeli:
Rica farinha que fazem!
Tomara-os el-rei para si.»
- «Os teus moinhos não quero,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem to trouxera aqui?»
- «As telhas do meu telhado
Que são de oiro e marfim.»
- «As telhas do teu telhado
Não nas quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui?»
- «De três filhas que tenho,
Todas três te dera a ti:
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais formosa de todas
Para contigo dormir.»
- «As tuas filhas, infanta,
Não são damas para mi:
Dá-me outra coisa, senhora,
Se queres que o traga aqui.»
- «Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.»
- «Tudo, não, senhora minha,
Que inda não te deste a ti.»
- «Cavaleiro que tal pede,
Que tão vilão é de si,
Por meus vilões arrastado
O farei andar aí
Ao rabo do meu cavalo,
À volta do meu jardim.
Vassalos, os meus vassalos,
Acudi-me agora aqui!»
- «Este anel de sete pedras
Que eu contigo reparti...
Que é dela a outra metade?
Pois a minha, vê-la aí!»
- «Tantos anos que chorei,
Tantos sustos que tremi!...
Deus te perdoe, marido,
Que me ias matando aqui.»
(in "Romanceiro", Almeida Garrett, Círculo de Leitores, 1997)
No seu jardim assentada
Com o pente de oiro fino
Seus cabelos penteava.
Deitou os olhos ao mar
Viu uma nobre armada;
Capitão que nela vinha,
Muito bem que a governava.
- «Dize-me, ó capitão
Dessa tua nobre armada,
Se encontraste meu marido
Na terra que Deus pisava.»
- «Anda tanto cavaleiro
Naquela terra sagrada...
Diz-me tu, ó senhora,
As senhas que ele levava.»
- «Levava cavalo branco,
Selim de prata doirada;
Na ponta da sua lança
A cruz de Cristo levava.
- «Pelos sinais que me deste
Lá o vi numa estacada
Morrer morte de valente:
Eu sua morte vingava.»
Ai triste de mim viúva,
Ai triste de mim coitada!
De três filhinhas que tenho,
Sem nenhuma ser casada!...»
- Que darias tu, senhora,
A quem no trouxera aqui?»
- «Dera-lhe oiro e prata fina,
Quanta riqueza há por i.»
- «Nâo quero oiro nem prata,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui?»
- «De três moinhos que tenho,
Todos três tos dera a ti;
Um mói o cravo e a canela,
Outro mói do gerzeli:
Rica farinha que fazem!
Tomara-os el-rei para si.»
- «Os teus moinhos não quero,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem to trouxera aqui?»
- «As telhas do meu telhado
Que são de oiro e marfim.»
- «As telhas do teu telhado
Não nas quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui?»
- «De três filhas que tenho,
Todas três te dera a ti:
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais formosa de todas
Para contigo dormir.»
- «As tuas filhas, infanta,
Não são damas para mi:
Dá-me outra coisa, senhora,
Se queres que o traga aqui.»
- «Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.»
- «Tudo, não, senhora minha,
Que inda não te deste a ti.»
- «Cavaleiro que tal pede,
Que tão vilão é de si,
Por meus vilões arrastado
O farei andar aí
Ao rabo do meu cavalo,
À volta do meu jardim.
Vassalos, os meus vassalos,
Acudi-me agora aqui!»
- «Este anel de sete pedras
Que eu contigo reparti...
Que é dela a outra metade?
Pois a minha, vê-la aí!»
- «Tantos anos que chorei,
Tantos sustos que tremi!...
Deus te perdoe, marido,
Que me ias matando aqui.»
(in "Romanceiro", Almeida Garrett, Círculo de Leitores, 1997)
quarta-feira, março 09, 2005
Since I emerged that day from the labyrinth
Since I emerged that day from the labyrinth,
Dazed with the tall and echoing passages,
The swift recoils, so many I almost feared
I’d meet myself returning at some smooth corner,
Myself or my ghost, for all there was unreal
After the straw ceased rustling and the bull
Lay dead upon the straw and I remained…
I could not live if this were not illusion.
It is a world, perhaps; but there’s another.
For once in a dream or trance I saw the gods
Each sitting on the top of his mountain-isle,
While down below the little ships sailed by…
That was the real world; I have touched it once,
And now shall know it always. But the lie,
The maze, the wild-wood waste of falsehood, roads
That run and run and never reach an end,
Embowered in error – I’d be prisoned there
But that my soul has birdwings to fly free.
Oh these deceits are strong almost as life.
Last night I dreamt I was in the labyrinth,
And woke far on. I did not know the place.
(Edwin Muir)
Dazed with the tall and echoing passages,
The swift recoils, so many I almost feared
I’d meet myself returning at some smooth corner,
Myself or my ghost, for all there was unreal
After the straw ceased rustling and the bull
Lay dead upon the straw and I remained…
I could not live if this were not illusion.
It is a world, perhaps; but there’s another.
For once in a dream or trance I saw the gods
Each sitting on the top of his mountain-isle,
While down below the little ships sailed by…
That was the real world; I have touched it once,
And now shall know it always. But the lie,
The maze, the wild-wood waste of falsehood, roads
That run and run and never reach an end,
Embowered in error – I’d be prisoned there
But that my soul has birdwings to fly free.
Oh these deceits are strong almost as life.
Last night I dreamt I was in the labyrinth,
And woke far on. I did not know the place.
(Edwin Muir)
A esmagadora realidade dos aflitos
"Já não há esperança. Não sei para que me levanto de manhã. Não sei para que me esforço até ao limite das minhas forças, se não há terra nem céu que paguem este esforço. Não é por auto-realização. Os sonhos de sempre ficaram irremediavelmente vedados. Viveremos nos ramos das árvores, de migalhas e sementes, como os pássaros. De sementes..."
terça-feira, março 08, 2005
Dia da mulher
Vivemos num tempo de uma grande explosão tecnológica e de enormes avanços na compreensão do funcionamento dos genes, dos cérebros e das hormonas femininas e masculinas. Ou seja, existe hoje uma base inédita para a compreensão e comunicação entre sexos. Por isso, espanta-me que ainda haja homens e mulheres que escolham deliberadamente a "guetização" dos sexos, em vez da comunicação. Homens que não abdicam do clube dos machos latinos e mulheres que não prescindem do comércio "cor-de-rosa" estupidificante. Ainda há revoluções de mentalidades por fazer.
segunda-feira, março 07, 2005
A celle qui est trop gaie
Ta tête, ton geste, ton air
Sont beaux comme un beau paysage;
Le rire joue en ton visage
Comme un vent frais dans un ciel clair.
Le passant chagrin que tu frôles
Est ébloui par la santé
Qui jaillit comme une clarté
De tes bras et de tes épaules.
Les retentissantes couleurs
Dont tu parsèmes tes toilettes
Jettent dans l'esprit des poètes
L'image d'un ballet de fleurs.
Ces robes folles sont l'emblème
De ton esprit bariolé;
Folle dont je suis affolé,
Je te hais autant que je t'aime!
Quelquefois dans un beau jardin
Où je traînais mon atonie,
J'ai senti, comme une ironie,
Le soleil déchirer mon sein;
Et le printemps et la verdure
Ont tant humilié mon coeur,
Que j'ai puni sur une fleur
L'insolence de la Nature.
Ainsi je voudrais, une nuit,
Quand l'heure des voluptés sonne,
Vers les trésors de ta personne,
Comme un lâche, ramper sans bruit,
Pour châtier ta chair joyeuse,
Pour meurtrir ton sein pardonné,
Et faire à ton flanc étonné
Une blessure large et creuse,
Et, vertigineuse douceur!
A travers ces lèvres nouvelles,
Plus éclatantes et plus belles,
T'infuser mon venin, ma soeur!
(Charles Baudelaire)
Sont beaux comme un beau paysage;
Le rire joue en ton visage
Comme un vent frais dans un ciel clair.
Le passant chagrin que tu frôles
Est ébloui par la santé
Qui jaillit comme une clarté
De tes bras et de tes épaules.
Les retentissantes couleurs
Dont tu parsèmes tes toilettes
Jettent dans l'esprit des poètes
L'image d'un ballet de fleurs.
Ces robes folles sont l'emblème
De ton esprit bariolé;
Folle dont je suis affolé,
Je te hais autant que je t'aime!
Quelquefois dans un beau jardin
Où je traînais mon atonie,
J'ai senti, comme une ironie,
Le soleil déchirer mon sein;
Et le printemps et la verdure
Ont tant humilié mon coeur,
Que j'ai puni sur une fleur
L'insolence de la Nature.
Ainsi je voudrais, une nuit,
Quand l'heure des voluptés sonne,
Vers les trésors de ta personne,
Comme un lâche, ramper sans bruit,
Pour châtier ta chair joyeuse,
Pour meurtrir ton sein pardonné,
Et faire à ton flanc étonné
Une blessure large et creuse,
Et, vertigineuse douceur!
A travers ces lèvres nouvelles,
Plus éclatantes et plus belles,
T'infuser mon venin, ma soeur!
(Charles Baudelaire)
domingo, março 06, 2005
Discussão
Da discussão nasce a luz, diz-se. Não gosto de discutir com quem faz por baixar o nível da conversa, com quem explora os equívocos, com quem é incapaz de ouvir e de tentar colocar-se na posição do outro. Gosto de discutir cordialmente com quem tem ideias próximas das minhas, para limar arestas e explorar detalhes ainda insuficientemente analisados.
My life closed twice
My life closed twice before its close;
It yet remains to see
If Immortality unveil
A third event to me,
So huge, so hopeless to conceive,
As these that twice befell.
Parting is all we know of heaven,
And all we need of hell.
(Emily Dickinson)
It yet remains to see
If Immortality unveil
A third event to me,
So huge, so hopeless to conceive,
As these that twice befell.
Parting is all we know of heaven,
And all we need of hell.
(Emily Dickinson)
sábado, março 05, 2005
The Library and the Loneliness
Nunca se fica só numa biblioteca. Se é nossa, tem sempre os amigos que voluntariamente escolhemos, ou que rejeitámos depois de termos escolhido, ou que nos foram apresentados por amigos, com os quais aprendemos, que nos surpreenderam. Se é alheia, tem as sugestões de alguém que fez a selecção ou a colecção por nós.
Os mestres falam-nos a partir de um passado intemporal e dialogam entre si na nossa mente. Projectaram-se no futuro, e projectam-nos a nós também no futuro, dando-nos boleia no seu movimento do pensamento.
Na biblioteca infinita imaginada por Borges, cabem os livros que escreveríamos se tivéssemos o engenho e a arte, os que nos salvariam de qualquer desespero, os que nos tornariam melhores. Só temos que procurá-los entre todas as possibilidades.
Viaja-se a todos os países, a todos os recantos, a todas as galáxias, a todos os instantes e a todas as suspensões do decurso do tempo, a todas as possibilidades da imaginação humana. Ri-se e chora-se, é-se cúmplice, cai-se nas teias da paixão e é-se solidário com o sofrimento e a esperança do mundo.
O livro, esse objecto feito de mil formas, mas sempre uma arma da comunicação, é, definitivamente, uma das maiores invenções do espírito humano.
Os mestres falam-nos a partir de um passado intemporal e dialogam entre si na nossa mente. Projectaram-se no futuro, e projectam-nos a nós também no futuro, dando-nos boleia no seu movimento do pensamento.
Na biblioteca infinita imaginada por Borges, cabem os livros que escreveríamos se tivéssemos o engenho e a arte, os que nos salvariam de qualquer desespero, os que nos tornariam melhores. Só temos que procurá-los entre todas as possibilidades.
Viaja-se a todos os países, a todos os recantos, a todas as galáxias, a todos os instantes e a todas as suspensões do decurso do tempo, a todas as possibilidades da imaginação humana. Ri-se e chora-se, é-se cúmplice, cai-se nas teias da paixão e é-se solidário com o sofrimento e a esperança do mundo.
O livro, esse objecto feito de mil formas, mas sempre uma arma da comunicação, é, definitivamente, uma das maiores invenções do espírito humano.
quinta-feira, março 03, 2005
Os versos que te fiz
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
(Florbela Espanca)
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
(Florbela Espanca)
Desejo
"Meter-me numa máquina do tempo e falar contigo, meu filósofo preferido. Consigo até preparar o espírito para aprender e falar a tua língua arcaica. Como és ideal, é seguro que haverá comunicação. Como és ideal, é certo que haverá surpresas."
K
Um agrimensor sem trabalho é vítima de um processo incompreensível, transformando-se, de um dia para o outro, num insecto gigante. Et cætera, et cætera, et cætera...
quarta-feira, março 02, 2005
Pastora da Serra
Pastora da serra
da serra da Estrela,
perco-me por ela.
VOLTAS
Nos seus olhos belos
tanto Amor se atreve,
que abrasa entre a neve
quantos ousam vê-los.
Não solta os cabelos
Aurora mais bela:
perco-me por ela.
Não teve esta serra
no meio da altura
mais que a fermosura
que nela se encerra.
Bem céu fica a terra
que tem tal estrela:
perco-me por ela.
Sendo entre pastores
causa de mil males,
não se ouvem nos vales
senão seus louvores.
Eu só por amores
não sei falar dela:
sei morrer por ela.
De alguns que, sentindo,
seu mal vão mostrando,
se rim, não cuidando
que inda paga, rindo.
Eu, triste, encobrindo
só meus males dela,
perco-me por ela.
Se flores deseja
por ventura, belas,
das que colhe, delas,
mil morrem de enveja.
Não há quem não veja
todo o milhor nela:
perco-me por ela.
Se na água corrente
seus olhos inclina,
faz luz cristalina
para a corrente.
Tal se vê, que sente,
por ver-se, água nela:
perco-me por ela.
(Luís Vaz de Camões)
da serra da Estrela,
perco-me por ela.
VOLTAS
Nos seus olhos belos
tanto Amor se atreve,
que abrasa entre a neve
quantos ousam vê-los.
Não solta os cabelos
Aurora mais bela:
perco-me por ela.
Não teve esta serra
no meio da altura
mais que a fermosura
que nela se encerra.
Bem céu fica a terra
que tem tal estrela:
perco-me por ela.
Sendo entre pastores
causa de mil males,
não se ouvem nos vales
senão seus louvores.
Eu só por amores
não sei falar dela:
sei morrer por ela.
De alguns que, sentindo,
seu mal vão mostrando,
se rim, não cuidando
que inda paga, rindo.
Eu, triste, encobrindo
só meus males dela,
perco-me por ela.
Se flores deseja
por ventura, belas,
das que colhe, delas,
mil morrem de enveja.
Não há quem não veja
todo o milhor nela:
perco-me por ela.
Se na água corrente
seus olhos inclina,
faz luz cristalina
para a corrente.
Tal se vê, que sente,
por ver-se, água nela:
perco-me por ela.
(Luís Vaz de Camões)
terça-feira, março 01, 2005
Macacos nus numa prisão espacio-temporal
Somos seis mil milhões, e sempre a crescer. Uma praga no planeta. As espécies mais próximas contam algumas dezenas de milhares de indivíduos, sempre a diminuir...
Somos senhores dos nossos destinos, homens e mulheres livres? Ou descobrimos a cada dia, se nos permitirmos isso, a máxima oriental que nos diz que a vida não é mais que sofrimento?
Até onde foi a ciência, para lá das estratégias de sobrevivência?
Até onde foi a arte, para lá dos rituais de acasalamento ou das penas dos pavões?
Somos senhores dos nossos destinos, homens e mulheres livres? Ou descobrimos a cada dia, se nos permitirmos isso, a máxima oriental que nos diz que a vida não é mais que sofrimento?
Até onde foi a ciência, para lá das estratégias de sobrevivência?
Até onde foi a arte, para lá dos rituais de acasalamento ou das penas dos pavões?
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