domingo, abril 30, 2006
Sopa de pedra
Feijão encarnado, ½ l
Orelha e cabeça de porco, 1 kg
Entrecosto de porco, 200 g
Carne de vaca para cozer, 250 g
Toucinho entremeado, 100 g
Chouriço, 1
Morcela, 1
Conve lombarda pequena, 1
Batatas, 400 g
Cenouras, 2
Cebolas, 2
Alhos, 2
Louro, 1 folha
Água e sal, q.b.
Farinheira, hortelã e coentros (facultativo), q.b.
De véspera raspam-se e limpam-se bem a orelha e a cabeça de porco, salgam-se juntamente com o entrecosto e põe-se o feijão de molho. No dia seguinte lavam-se as carnes e os enchidos e põem-se a cozer em água e sal. Separadamente, põe-se também o feijão a cozer em água e sal. À medida que forem cozendo, vai-se retirando as carnes sucessivamente, para não se espapaçarem, visto que a carne de porco, por exemplo, coze muito mais depressa do que a de vaca, o mesmo acontecendo com a morcela em relação ao chouriço. Logo que se retirarem todas as carnes, juntam-se, cortadas em pedaços, a couve, as cenouras, as cebolas, os alhos picados, o louro e, algum tempo depois, as batatas também em pedaços. Entretanto, escorre-se o feijão, do qual se retiram duas conchas, que se passam pelo passe-vite. Quando os legumes estiverem cozidos, juntam-se-lhes os feijões inteiros e os passados. Deixa-se ferver tudo para apurar e rectifica-se de sal. Cortam-se as carnes de porco e de vaca em bocados, os enchidos em rodelas e o toucinho em fatias. Deitam-se as carnes na panela e, logo que levantar fervura, adicionam-se os enchidos e o toucinho, servindo-se imediatamente. Empregando farinheira, deve pôr-se a cozer juntamente com as carnes, tendo em conta que o seu tempo de cozedura é muito rápido. Temperando com coentros, devem deitar-se ao mesmo tempo que os legumes. Se for o caso de se empregar hortelã, basta juntar um ramo ao mesmo tempo que os enchidos. Por gracinha, põe-se em cada prato uma pedra redonda, tipo seixo rolado do dio, mas previamente bem lacada.
(O livro de Pantagruel)
Há quem encontre nesta sopa Deus, colesterol, efeitos afrodisíacos, you name it. Uma coisa é certa: o segredo está na pedra.
Orelha e cabeça de porco, 1 kg
Entrecosto de porco, 200 g
Carne de vaca para cozer, 250 g
Toucinho entremeado, 100 g
Chouriço, 1
Morcela, 1
Conve lombarda pequena, 1
Batatas, 400 g
Cenouras, 2
Cebolas, 2
Alhos, 2
Louro, 1 folha
Água e sal, q.b.
Farinheira, hortelã e coentros (facultativo), q.b.
De véspera raspam-se e limpam-se bem a orelha e a cabeça de porco, salgam-se juntamente com o entrecosto e põe-se o feijão de molho. No dia seguinte lavam-se as carnes e os enchidos e põem-se a cozer em água e sal. Separadamente, põe-se também o feijão a cozer em água e sal. À medida que forem cozendo, vai-se retirando as carnes sucessivamente, para não se espapaçarem, visto que a carne de porco, por exemplo, coze muito mais depressa do que a de vaca, o mesmo acontecendo com a morcela em relação ao chouriço. Logo que se retirarem todas as carnes, juntam-se, cortadas em pedaços, a couve, as cenouras, as cebolas, os alhos picados, o louro e, algum tempo depois, as batatas também em pedaços. Entretanto, escorre-se o feijão, do qual se retiram duas conchas, que se passam pelo passe-vite. Quando os legumes estiverem cozidos, juntam-se-lhes os feijões inteiros e os passados. Deixa-se ferver tudo para apurar e rectifica-se de sal. Cortam-se as carnes de porco e de vaca em bocados, os enchidos em rodelas e o toucinho em fatias. Deitam-se as carnes na panela e, logo que levantar fervura, adicionam-se os enchidos e o toucinho, servindo-se imediatamente. Empregando farinheira, deve pôr-se a cozer juntamente com as carnes, tendo em conta que o seu tempo de cozedura é muito rápido. Temperando com coentros, devem deitar-se ao mesmo tempo que os legumes. Se for o caso de se empregar hortelã, basta juntar um ramo ao mesmo tempo que os enchidos. Por gracinha, põe-se em cada prato uma pedra redonda, tipo seixo rolado do dio, mas previamente bem lacada.
(O livro de Pantagruel)
Há quem encontre nesta sopa Deus, colesterol, efeitos afrodisíacos, you name it. Uma coisa é certa: o segredo está na pedra.
sexta-feira, abril 28, 2006
Sapateiro de província
No edifício em frente à casa com a qual cercava um pátio, havia, para além dos currais dos animais, num primeiro andar, uma oficina de sapateiro. As teias de aranha, que se lançavam dos cantos da divisão, filtravam a luz que entrava pela janela virada a sul, conferindo-lhe uma atmosfera mágica. Os moldes de madeira, de vários feitios e tamanhos desde o de pés de crianças, emprestavam-lhe um cheiro de carpintaria. As prateleiras estavam cobertas de utensílios, materiais diversos e umas quantas botas.
Naquela terra, havia um único sapateiro, que era o mais pobre dos homens. Não tinha herdado terras para cultivar, pelo que teve de aprender aquele ofício, cujo aprendizado lhe saiu caro, considerando que a família quase nada tinha de seu. Calcorreava, sempre que o chamavam, serras atrás de serras, para dedicar dias inteiros, numa casa, a consertar e a fazer novos sapatos para todos os membros de uma família, ou pelo menos para os que precisavam deles para a missa ou para o trabalhos mais duros do campo. A remuneração era feita em géneros, na proporção que os patrões do dia achavam justo e podiam pagar, mas sempre escassa para alimentar mulher e filhos que, em casa, esperavam por uma ceia acompanhada, pelo menos, com um pedaço de broa dura. Aprendeu, por isso, a caçar e a pescar, e por vezes tinha de pisar o risco da lei para que não passassem fome.
Foi esta modelação do temperamento e as histórias vividas que contava que o tornaram um companheiro admirável de roda de fogueira.
Naquela terra, havia um único sapateiro, que era o mais pobre dos homens. Não tinha herdado terras para cultivar, pelo que teve de aprender aquele ofício, cujo aprendizado lhe saiu caro, considerando que a família quase nada tinha de seu. Calcorreava, sempre que o chamavam, serras atrás de serras, para dedicar dias inteiros, numa casa, a consertar e a fazer novos sapatos para todos os membros de uma família, ou pelo menos para os que precisavam deles para a missa ou para o trabalhos mais duros do campo. A remuneração era feita em géneros, na proporção que os patrões do dia achavam justo e podiam pagar, mas sempre escassa para alimentar mulher e filhos que, em casa, esperavam por uma ceia acompanhada, pelo menos, com um pedaço de broa dura. Aprendeu, por isso, a caçar e a pescar, e por vezes tinha de pisar o risco da lei para que não passassem fome.
Foi esta modelação do temperamento e as histórias vividas que contava que o tornaram um companheiro admirável de roda de fogueira.
quinta-feira, abril 27, 2006
quarta-feira, abril 26, 2006
Registo: idiomas na Wikipédia
Artigos da Wikipédia em Abril de 2006:
Inglês: mais de 1 095 000
Alemão: mais de 388 000
Francês: mais de 274 000
Polaco: mais de 230 000
Japonês: mais de 204 000
Holandês: mais de 176 000
Sueco: mais de 154 000
Italiano: mais de 152 000
Português: mais de 129 000
Castelhano: mais de 111 000
Seguem-se o russo, o chinês, o finlandês, o norueguês e o esperanto.
Estão representados na Wikipédia caracteres muitos diversos, como por exemplo em: japonês, chinês, hebraico, coreano, árabe, persa, tailandês, grego, língua macedónia, língua georgiana, marata (da Índia), língua telugu (também da Índia), curdo, tamil, iídiche, língua kannada (Índia), osseto, hindi (Índia), bengali, arménio...
Inglês: mais de 1 095 000
Alemão: mais de 388 000
Francês: mais de 274 000
Polaco: mais de 230 000
Japonês: mais de 204 000
Holandês: mais de 176 000
Sueco: mais de 154 000
Italiano: mais de 152 000
Português: mais de 129 000
Castelhano: mais de 111 000
Seguem-se o russo, o chinês, o finlandês, o norueguês e o esperanto.
Estão representados na Wikipédia caracteres muitos diversos, como por exemplo em: japonês, chinês, hebraico, coreano, árabe, persa, tailandês, grego, língua macedónia, língua georgiana, marata (da Índia), língua telugu (também da Índia), curdo, tamil, iídiche, língua kannada (Índia), osseto, hindi (Índia), bengali, arménio...
Pequena Cantiga à Mulher
Onde uma tem
O cetim
A outra tem a rudeza
Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
Nos ombros
O suor pela
Barriga
Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga
Tapa a nudez
Com as mãos
Procura o pão
Na gaveta
Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca
Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na
Enxada
Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa
(Maria Teresa Horta)
O cetim
A outra tem a rudeza
Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
Nos ombros
O suor pela
Barriga
Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga
Tapa a nudez
Com as mãos
Procura o pão
Na gaveta
Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca
Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na
Enxada
Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa
(Maria Teresa Horta)
terça-feira, abril 25, 2006
Canto Moço
Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo
Navegamos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praias do mar nos vamos
À procura da manhã clara
Lá do cimo duma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noita inteira
Mensageira pomba chamada
Companheira da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo duma montanha
Onde o vento cortou amarras
Largaremos pela noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca
(José Afonso)
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo
Navegamos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praias do mar nos vamos
À procura da manhã clara
Lá do cimo duma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noita inteira
Mensageira pomba chamada
Companheira da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo duma montanha
Onde o vento cortou amarras
Largaremos pela noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca
(José Afonso)
segunda-feira, abril 24, 2006
domingo, abril 23, 2006
Money
Money, get away.
Get a good job with good pay and you’re okay.
Money, it’s a gas.
Grab that cash with both hands and make a stash.
New car, caviar, four star daydream,
Think I’ll buy me a football team.
Money, get back.
I’m all right jack keep your hands off of my stack.
Money, it’s a hit.
Don’t give me that do goody good bullshit.
I’m in the high-fidelity first class traveling set
And I think I need a lear jet.
Money, it’s a crime.
Share it fairly but don’t take a slice of my pie.
Money, so they say
Is the root of all evil today.
But if you ask for a raise it’s no surprise that they’re
Giving none away.
Huhuh! I was in the right!
Yes, absolutely in the right!
I certainly was in the right!
You was definitely in the right. that geezer was cruising for a
Bruising!
Yeah!
Why does anyone do anything?
I don’t know, I was really drunk at the time!
I was just telling him, he couldn’t get into number 2. he was asking
Why he wasn’t coming up on freely, after I was yelling and
Screaming and telling him why he wasn’t coming up on freely.
It came as a heavy blow, but we sorted the matter out
(Pink Floyd)
Get a good job with good pay and you’re okay.
Money, it’s a gas.
Grab that cash with both hands and make a stash.
New car, caviar, four star daydream,
Think I’ll buy me a football team.
Money, get back.
I’m all right jack keep your hands off of my stack.
Money, it’s a hit.
Don’t give me that do goody good bullshit.
I’m in the high-fidelity first class traveling set
And I think I need a lear jet.
Money, it’s a crime.
Share it fairly but don’t take a slice of my pie.
Money, so they say
Is the root of all evil today.
But if you ask for a raise it’s no surprise that they’re
Giving none away.
Huhuh! I was in the right!
Yes, absolutely in the right!
I certainly was in the right!
You was definitely in the right. that geezer was cruising for a
Bruising!
Yeah!
Why does anyone do anything?
I don’t know, I was really drunk at the time!
I was just telling him, he couldn’t get into number 2. he was asking
Why he wasn’t coming up on freely, after I was yelling and
Screaming and telling him why he wasn’t coming up on freely.
It came as a heavy blow, but we sorted the matter out
(Pink Floyd)
sexta-feira, abril 21, 2006
Direito comparado: direito à vida
Artigo 3.º
Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
(Declaração Universal dos Direitos do Homem)
*
Artigo 24.º
(Direito à vida)
1. A vida humana é inviolável.
2. Em caso algum haverá pena de morte.
(Constituição da República Portuguesa)
*
Article (15): Every individual has the right to life and security and freedom and cannot be deprived of these rights or have them restricted except in accordance to the law and based on a ruling by the appropriate judicial body.
(Text of the Draft Iraqi Constitution)
Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
(Declaração Universal dos Direitos do Homem)
*
Artigo 24.º
(Direito à vida)
1. A vida humana é inviolável.
2. Em caso algum haverá pena de morte.
(Constituição da República Portuguesa)
*
Article (15): Every individual has the right to life and security and freedom and cannot be deprived of these rights or have them restricted except in accordance to the law and based on a ruling by the appropriate judicial body.
(Text of the Draft Iraqi Constitution)
How many deaths will it take 'til...?
Com poderes de ditador, a primeira medida de Sérgio Vieira de Mello ao chegar a Timor Leste foi abolir a pena de morte, para todos os crimes. Hoje foi anunciada a condenação à morte do responsável pelo atentado em que Vieira de Mello faleceu. Dupla derrota.
quinta-feira, abril 20, 2006
Se te queres matar
Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
(Álvaro de Campos)
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
(Álvaro de Campos)
quarta-feira, abril 19, 2006
Pela memória
No "pogrom" de Lisboa de 19 de Abril de 1506, durante o reinado do Rei Manuel I, um "cristão-novo" (judeu obrigado a converter-se ao catolicismo sob pena de morte) expressa as suas dúvidas sobre as visões milagrosas na Igreja de S. Domingos em Lisboa. Como consequência, cerca de 4000 judeus, homens, mulheres e crianças, foram massacrados pela população católica, incitados por frades dominicanos. Os judeus foram acusados, entre outros "males", de deicídio e de serem a causa da profunda seca que assolava o país. A matança durou três dias.
No seguimento deste massacre, do clima de crescente anti-semitismo em Portugal e do estabelecimento da Inquisição, (o tribunal da Inquisição entrou em funcionamento em 1540 e perdurou até 1821) muitas famílias judaicas fugiram do país.
(Wikipedia)
terça-feira, abril 18, 2006
Meninas
A macieira estava florida como uma princesa. Mas as estevas venceram pelo número e pela convicção.
Relógio
O médico tinha-lhe dado um ano de vida. À sua frente, várias pilhas de livros para ler. Nunca tinha aprendido a calendarizar a leitura. Alteravam-lhe qualquer tentativa de sequência planeada os livros oferecidos, emprestados, aparecidos em livrarias em dias de chuva, ou simplesmente concordantes com o fim de livros anteriores. O tempo para ler um livro, isso nem valia a pena tentar antever. Os mais finos e de versos curtos podiam ser os mais demorados, as epopeias podiam ler-se de uma vez sem perder o fôlego, e os contratempos fora do papel podiam sempre trocar-lhe as voltas. Como agora. Como fazer?
El Infante Arnaldos
¡Quien hubiera tal ventura sobre las aguas del mar
como hubo el infante Arnaldos la mañana de San Juan!
Andando a buscar la caza para su falcón cebar,
vio venir una galera que a tierra quiere llegar;
las velas trae de sedas, la ejarcia de oro terzal,
áncoras tiene de plata, tablas de fino coral.
Marinero que la guía, diciendo viene un cantar,
que la mar ponía en calma, los vientos hace amainar;
los peces que andan al hondo, arriba los hace andar;
las aves que van volando, al mástil vienen posar.
Allí hablo el infante Arnaldos, bien oiréis lo que dirá:
— Por tu vida, el marinero, dígasme ora ese cantar.
Respondióle el marinero, tal respuesta le fue a dar:
— Yo no canto mi canción sino a quién conmigo va.
(Romancero)
como hubo el infante Arnaldos la mañana de San Juan!
Andando a buscar la caza para su falcón cebar,
vio venir una galera que a tierra quiere llegar;
las velas trae de sedas, la ejarcia de oro terzal,
áncoras tiene de plata, tablas de fino coral.
Marinero que la guía, diciendo viene un cantar,
que la mar ponía en calma, los vientos hace amainar;
los peces que andan al hondo, arriba los hace andar;
las aves que van volando, al mástil vienen posar.
Allí hablo el infante Arnaldos, bien oiréis lo que dirá:
— Por tu vida, el marinero, dígasme ora ese cantar.
Respondióle el marinero, tal respuesta le fue a dar:
— Yo no canto mi canción sino a quién conmigo va.
(Romancero)
quinta-feira, abril 13, 2006
Laca?
"Me confesso / o dono das minhas horas"
Livro de Horas
Aqui diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
(Miguel Torga)
Aqui diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
(Miguel Torga)
Splash!
Dispara-se para chegar com as mãos ao fundo da piscina. Depois, ensaia a posição fetal, para regressar ao cimo como um ovo. Abandona-se por fim à superfície. Mil búzios ecoam na ondulação em volta, abafando a música ambiente e as vozes distantes. A luz do sol vem filtrada como uma carícia. A tecnologia permite dispensar o cloro, mas usa os óculos para que a água não atrapalhe a visão. Fecha os olhos e goza.
quarta-feira, abril 12, 2006
Eli, Eli...
Hesito, por vezes, em transcrever aqui alguns dos meus textos preferidos: não quero ser desmancha-prazeres para quem vá ainda ler a obra em causa. Por isso, hoje evoco apenas, do livro "Contacto", de Carl Sagan, os extraordinários registos sobre fé e revelação. Quem leu há-de saber ao que me refiro (mas não quem apenas viu o filme).
terça-feira, abril 11, 2006
O segundo sexo
"O tema é irritante, principalmente para as mulheres. E não é novo. A querela do feminismo fez correr rios de tinta e está agora mais ou menos encerrada. Não toquemos mais nisso... No entanto, ainda se fala dela. E não parece que as volumosas tolices lançadas neste último século tenham realmente esclarecido a questão.
(...)
"A propósito de uma obra, de resto assaz irritante, intitulada Modern Woman, a Lost Sex, Dorothy Parker escreveu: «Não posso ser justa em relação aos livros que tratam da mulher como mulher... A minha ideia é que todos, homens e mulheres, o que quer que sejamos, devemos ser considerados seres humamos.» Mas o nominalismo é uma doutrina um tanto limitada; e os anti-feministas não têm dificuldade em demonstrar que as mulheres não são homens. (...) Em verdade, basta andar de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses e ocupações são manifestamente diferentes: talvez essas diferenças sejam superficiais, talvez se destinem a desaparecer. O certo é que por enquanto elas existem com uma evidência gritante.
(...)
"A fim de provar a inferioridade da mulher, os anti-feministas apelaram não só para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental, etc. Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo «a igualdade dentro da diferença». Essa fórmula, que conheceu grande êxito, é muito significativa: é exactamente a que utilizam, em relação aos negros dos E.U.A., as leis Jim Crow; ora, essa segregação, pretensamente igualitária, só serviu para introduzir as mais extremas discriminações."
(Simone de Beauvoir, O segundo sexo, primeira edição francesa em 1949)
segunda-feira, abril 10, 2006
Sempre a Razão vencida foi de Amor
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!
Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.
Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.
Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.
(Luís de Camões)
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!
Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.
Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.
Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.
(Luís de Camões)
domingo, abril 09, 2006
Carta(s) a Jorge de Sena
I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem -
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
- Grandioso vencedor e tão amargo vencido -
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem -
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
- Grandioso vencedor e tão amargo vencido -
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
sábado, abril 08, 2006
sexta-feira, abril 07, 2006
Evangelhos apócrifos
2ª Epístola de Clemente de Roma 5, 2-4 e 8, 5
O Senhor diz: «Vós sereis como cordeiros no meio de lobos.» Pedro responde-lhe: «E se os lobos despedaçarem os cordeiros?» Jesus diz a Pedro: «Os cordeiros, após a sua morte, já não têm porque recear os lobos. E não tenhais medo de pessoas que vos matam, pois em seguida já não vos podem fazer mal. Receai antes aquele que, após a vossa morte, tem poder para vos lançar, alma e corpo, no martírio do corpo.»[1]
[1] Mateus 10, 16; Lucas 10, 3.
*
Papiro 654
Jesus diz: «Que aquele que procura não cesse de procurar, até que encontre, e quando tiver encontrado ficará cheio de espanto. Espantado, ele reinará, e reinando, conhecerá o repouso.»
*
Pseudo-Clementinas, Homilia 11, 35
Também aquele que nos[2] enviou disse: «Muitos virão a mim, vestidos de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes». Será pelos seus frutos que vós os reconhecereis.»
[2] Neste evangelho, os doze apóstolos apresentam-se como os narradores, e Mateus como o redactor.
*
Clemente de Alexandria, Stromata 3, 6, 9, 13
A Salomé, que lhe perguntava «Até quando a morte nos tomará sob o seu poder?», o Senhor respondeu: «Até que vós, todas as mulheres, cesseis de conceber.» Não que a vida seja má e perversa a criação, mas tal é a ordem da natureza: geração e corrupção encadeiam-se inelutavelmente.»
Alguns, movidos por uma piedosa continência, opõem-se à criação de Deus e citam estas palavras de Jesus a Salomé, que eu acabo de recordar. Encontram-se, salvo erro, no evangelho segundo os Egípcios. Eles afirmam que o próprio Senhor declarou: «Eu vim destruir as obras da mulher.» Por mulher, entendam as paixões; pelas suas obras, o nascimento e a morte.
Como a conversa se debruçava sobre a consumação dos tempos, Salomé, muito a propósito, perguntou: «Até quando é que os homens morrerão?» (A Escritura dá à palavra homem um duplo sentido, designando a pessoa visível e a alma, ou ainda o que está salvo e o que não está. E o pecado é chamado a morte da alma.) E o Senhor deu-lhe esta sagaz resposta: «Enquanto as mulheres conceberem.»
Disse-lhe ela: «Fiz bem em não ter gerado, pensando que a geração era um mal»; ora o Senhor respondeu-lhe: «Come qualquer erva, mas evita aquelas que são amargas.»[3]
Como Salomé lhe perguntasse quando se realizariam os acontecimentos de que ele falara, o Senhor disse: «Quando vocês espezinharem o vestido da vergonha e quando o dois for um, o masculino se unir ao feminino e não houver mais homem nem mulher.»
[3] Os encratitas consideravam o casamento como uma «erva amarga».
("Evangelhos Apócrifos", Editorial Estampa)
O Senhor diz: «Vós sereis como cordeiros no meio de lobos.» Pedro responde-lhe: «E se os lobos despedaçarem os cordeiros?» Jesus diz a Pedro: «Os cordeiros, após a sua morte, já não têm porque recear os lobos. E não tenhais medo de pessoas que vos matam, pois em seguida já não vos podem fazer mal. Receai antes aquele que, após a vossa morte, tem poder para vos lançar, alma e corpo, no martírio do corpo.»[1]
[1] Mateus 10, 16; Lucas 10, 3.
*
Papiro 654
Jesus diz: «Que aquele que procura não cesse de procurar, até que encontre, e quando tiver encontrado ficará cheio de espanto. Espantado, ele reinará, e reinando, conhecerá o repouso.»
*
Pseudo-Clementinas, Homilia 11, 35
Também aquele que nos[2] enviou disse: «Muitos virão a mim, vestidos de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes». Será pelos seus frutos que vós os reconhecereis.»
[2] Neste evangelho, os doze apóstolos apresentam-se como os narradores, e Mateus como o redactor.
*
Clemente de Alexandria, Stromata 3, 6, 9, 13
A Salomé, que lhe perguntava «Até quando a morte nos tomará sob o seu poder?», o Senhor respondeu: «Até que vós, todas as mulheres, cesseis de conceber.» Não que a vida seja má e perversa a criação, mas tal é a ordem da natureza: geração e corrupção encadeiam-se inelutavelmente.»
Alguns, movidos por uma piedosa continência, opõem-se à criação de Deus e citam estas palavras de Jesus a Salomé, que eu acabo de recordar. Encontram-se, salvo erro, no evangelho segundo os Egípcios. Eles afirmam que o próprio Senhor declarou: «Eu vim destruir as obras da mulher.» Por mulher, entendam as paixões; pelas suas obras, o nascimento e a morte.
Como a conversa se debruçava sobre a consumação dos tempos, Salomé, muito a propósito, perguntou: «Até quando é que os homens morrerão?» (A Escritura dá à palavra homem um duplo sentido, designando a pessoa visível e a alma, ou ainda o que está salvo e o que não está. E o pecado é chamado a morte da alma.) E o Senhor deu-lhe esta sagaz resposta: «Enquanto as mulheres conceberem.»
Disse-lhe ela: «Fiz bem em não ter gerado, pensando que a geração era um mal»; ora o Senhor respondeu-lhe: «Come qualquer erva, mas evita aquelas que são amargas.»[3]
Como Salomé lhe perguntasse quando se realizariam os acontecimentos de que ele falara, o Senhor disse: «Quando vocês espezinharem o vestido da vergonha e quando o dois for um, o masculino se unir ao feminino e não houver mais homem nem mulher.»
[3] Os encratitas consideravam o casamento como uma «erva amarga».
("Evangelhos Apócrifos", Editorial Estampa)
quinta-feira, abril 06, 2006
Aos vinte e três ou vinte e quatro anos
Tinha estado desde as dez e meia no café,
à espera de que o outro viesse.
A meia-noite passou - e ainda esperava.
E passava agora de uma e meia; o café
quase por completo se esvaziara.
Fartara-se já de ler os jornais
maquinalmente. Dos seus três solitários xelins
apenas um restava: tanto tempo à espera,
e os outros gastara em cafés e brândi.
Fumara todos os cigarros.
Tão longa espera acabava-o. Porque,
assim sòzinho horas, começara
a ser tomado por inquietos juízos
da vida dissoluta que levava.
Mas então viu o seu amigo entrar - num instante
cansaço e tédio, e pensamentos sérios foram-se.
O amigo trazia grandes novidades:
ganhara ao jogo sessenta libras.
E os rostos belos deles, a juventude explêndida,
o sensual amor que havia entre ambos,
renovaram-se, reanimaram-se, ganharam novas forças,
com as sessenta libras da casa de jogo.
Radiantes de alegria, transbordando vida,
os dois saíram - não para casa de suas respeitáveis famílias
(onde aliás não eram desejados),
mas para uma casa conhecida, casa
de má nota. Foram e pediram
um quarto, bebidas caras, e beberam.
E quando as bebidas caras se acabaram
lá pelas quatro horas da manhã,
alegremente entregam-se ao desejo.
[1927]
Constantino Cavafy
(tradução de Jorge de Sena)
à espera de que o outro viesse.
A meia-noite passou - e ainda esperava.
E passava agora de uma e meia; o café
quase por completo se esvaziara.
Fartara-se já de ler os jornais
maquinalmente. Dos seus três solitários xelins
apenas um restava: tanto tempo à espera,
e os outros gastara em cafés e brândi.
Fumara todos os cigarros.
Tão longa espera acabava-o. Porque,
assim sòzinho horas, começara
a ser tomado por inquietos juízos
da vida dissoluta que levava.
Mas então viu o seu amigo entrar - num instante
cansaço e tédio, e pensamentos sérios foram-se.
O amigo trazia grandes novidades:
ganhara ao jogo sessenta libras.
E os rostos belos deles, a juventude explêndida,
o sensual amor que havia entre ambos,
renovaram-se, reanimaram-se, ganharam novas forças,
com as sessenta libras da casa de jogo.
Radiantes de alegria, transbordando vida,
os dois saíram - não para casa de suas respeitáveis famílias
(onde aliás não eram desejados),
mas para uma casa conhecida, casa
de má nota. Foram e pediram
um quarto, bebidas caras, e beberam.
E quando as bebidas caras se acabaram
lá pelas quatro horas da manhã,
alegremente entregam-se ao desejo.
[1927]
Constantino Cavafy
(tradução de Jorge de Sena)
quarta-feira, abril 05, 2006
Tortura
Pergunta retórica: o que aconteceria se em Portugal alguém confessasse em público um crime contra a humanidade, desses que nunca prescrevem?
segunda-feira, abril 03, 2006
O mistério do auto-plágio
É engraçado como situações com algumas semelhanças evoluem de forma tão diferente. Há algum tempo, um caso de plágio deu origem a uma dispensa de colaboração, opróbrio público e explicação esfarrapada. Agora, um caso de auto-plágio merece mil reacções mas, que eu tivesse reparado, nenhuma tentativa de explicação razoável. Quero dizer, acham mesmo que alguém vai a um livro que já publicou copiar uns parágrafos? Eu, não! Parecer-me-ia mais verosímil que a autora tivesse uma colecção de fragmentos preparados que ia utilizando conforme a necessidade. Só que, sendo esse o caso, sem registar que já os tinha usado. A prazo, com o avolumar da "obra", accidents (did) happen. E pronto, já dei mais uma contribuiçãozinha para o peditório de marketing.
Divisão primária
Por que é que o governo francês quer separar os maiores e os menores de vinte e seis anos? Por quê um ou dois anos com menos direitos? Por que não se terão lembrado de escalões etários, progressivamente com mais direitos? Não se usam escalões para os impostos e, agora, cada vez mais, para todos os serviços públicos, segundo o princípio do utilizador-pagador? Por que não se faz ao contrário e não se põe nos recém-nascidos a marca dos escravos e se dá aos cadáveres a carta de alforria?
Dúvida
Como é que se vai multar quem faz downloads de obras protegidas pelo direito de autor? Não há aqui um conflito entre propriedade intelectual e direito à privacidade?
[Adenda]
Também não percebi muito bem porque é que a música é mais importante do que a imagem ou a palavra escrita (que não em livro). (Ou será que percebi?) E esses malfeitores que andam por aí em blogs a usar quadros, fotografias, músicas e poemas protegidas pelas quais não pagaram e dos quais nem indicam a fonte, o que será deles? E as intertextualidades (que palavrão feio!) não devidamente assinaladas?
[Adenda]
Também não percebi muito bem porque é que a música é mais importante do que a imagem ou a palavra escrita (que não em livro). (Ou será que percebi?) E esses malfeitores que andam por aí em blogs a usar quadros, fotografias, músicas e poemas protegidas pelas quais não pagaram e dos quais nem indicam a fonte, o que será deles? E as intertextualidades (que palavrão feio!) não devidamente assinaladas?
Apesar das ruínas e da morte
Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia (1944)
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia (1944)
domingo, abril 02, 2006
The Having to Love Something Else
There was a man who would marry his mother, and asked his
father for his mother's hand in marriage, and was told he could
not marry his mother's hand because it was attached to all
the rest of mother, which was all married to his father; that
he'd have to love something else....
And so he went into the world to love something else, and
fell in love with a dining room.
He asked someone standing there, may I have this dining
room's hand in marriage?
You may not, its hand is attached to all the rest of it,
which has all been promised to me in connubial alliance, said
someone standing there.
Just because the dining room lives in your house doesn't
necessarily give you claim to its affections....
Yes it does, for a dining room is always to be married to
the heir apparent in the line of succession; after father it's
my turn; and only if all mankind were destroyed could you
succeed any other to the hand of this dining room. You'll have
to love something else....
And so the man who would marry his mother was again in the
world looking for something to love that was not already
loved...
(Russell Edson)
father for his mother's hand in marriage, and was told he could
not marry his mother's hand because it was attached to all
the rest of mother, which was all married to his father; that
he'd have to love something else....
And so he went into the world to love something else, and
fell in love with a dining room.
He asked someone standing there, may I have this dining
room's hand in marriage?
You may not, its hand is attached to all the rest of it,
which has all been promised to me in connubial alliance, said
someone standing there.
Just because the dining room lives in your house doesn't
necessarily give you claim to its affections....
Yes it does, for a dining room is always to be married to
the heir apparent in the line of succession; after father it's
my turn; and only if all mankind were destroyed could you
succeed any other to the hand of this dining room. You'll have
to love something else....
And so the man who would marry his mother was again in the
world looking for something to love that was not already
loved...
(Russell Edson)
sábado, abril 01, 2006
Com os joelhos submersos
Embora completamente submersa, a baleeira estava quase intacta. Nadando em volta, recuperámos os remos e, transpondo a borda, retomámos os nossos lugares. Ficámos ali sentados, com os joelhos submersos, pois a água cobria toda a embarcação, de tal modo que esta parecia, aos nossos olhos arregalados, um banco de coral que subia do fundo do oceano para nos recolher.
O vento agora uivava e as vagas começavam a entrechocar-se; a borrasca rugia, saltava e estalava à nossa volta como um incêndio na pradaria, um incêndio em que ardíamos sem nos consumirmos, imortais nas próprias fauces da morte! Em vão gritávamos para as outras embarcações. Mas de nada servia gritar no meio daquele temporal. Entretanto, as nuvens à desfilada, a espuma e o nevoeiro tornavam-se ainda mais negros com a noite que caía; não se avistava o menor sinal do navio. O mar frustrava todas as tentativas que fazíamos para baldear a nossa baleeira. Os remos inúteis eram agora meros meios de salvação. Starbuck, cortando o fio do saco impermeável onde se encontravam os fósforos, conseguiu acender a lâmpada da lanterna; depois, colocando-a na ponta do mastro partido, estendeu-o a Queequeg que se tornou o porta-bandeira da nossa derradeira esperança erguendo aquele farol insensato no cerne do nosso desespero. E ali ficou ele, como o símbolo de um homem sem fé, erguendo uma esperança desesperada no seio do desespero.
(Herman Melville)
O vento agora uivava e as vagas começavam a entrechocar-se; a borrasca rugia, saltava e estalava à nossa volta como um incêndio na pradaria, um incêndio em que ardíamos sem nos consumirmos, imortais nas próprias fauces da morte! Em vão gritávamos para as outras embarcações. Mas de nada servia gritar no meio daquele temporal. Entretanto, as nuvens à desfilada, a espuma e o nevoeiro tornavam-se ainda mais negros com a noite que caía; não se avistava o menor sinal do navio. O mar frustrava todas as tentativas que fazíamos para baldear a nossa baleeira. Os remos inúteis eram agora meros meios de salvação. Starbuck, cortando o fio do saco impermeável onde se encontravam os fósforos, conseguiu acender a lâmpada da lanterna; depois, colocando-a na ponta do mastro partido, estendeu-o a Queequeg que se tornou o porta-bandeira da nossa derradeira esperança erguendo aquele farol insensato no cerne do nosso desespero. E ali ficou ele, como o símbolo de um homem sem fé, erguendo uma esperança desesperada no seio do desespero.
(Herman Melville)
Actualidade
Este blog não é um diário nem pretende ter um tom intimista, apesar de assim ser por vezes rotulado. Mas também não tenciona ceder à tirania da "actualidade", a ter de comentar os assuntos que os media nos servem em cada dia. Ainda assim, talvez possa dizer que sinto orgulho por tantas mulheres terem chegado onde chegaram sem pertencerem a nenhuma quota. Que, no caminho de volta para a escravatura, em algum lado tem de se parar. E que os plágios em best sellers não devem estar isentos de ser desmascarados.
Virtude
A virtude não se pode ensinar; nem mesmo Péricles conseguiu fazer dos seus filhos homens de estirpe.
(Platão, Protágoras)
(Platão, Protágoras)
E se...?
E se o tempo dedicado pelas televisões ao futebol fosse substituído por programas educativos, por mais notícias internacionais, por espaços de reflexão não histriónicos?
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