domingo, fevereiro 27, 2005

No silêncio

Onde estaria agora a sua adolescência? Onde estaria a alma que se afastara outrora do seu destino para examinar, sozinha, a vergonha das suas chagas e para, no seu asilo de sordidez e de subterfúgios, se revestir realmente com velhas colgaduras desbotadas, com grinaldas que murchavam ao menor contacto? Ou, onde estava ele?

Estava só. Estava esquecido de todos, feliz, rente ao coração selvagem da vida. Estava só e jovem, cheio de vontade, e selvagem, só num deserto de ar livre, de águas salgadas, entre a colheita marinha de conchas e de algas, entre a claridade opaca do sol velado, entre as silhuetas alegres e claras de crianças e de raparigas, entre as vozes infantis e virginais que enchiam o ar.

Uma rapariga apareceu diante dele, de pé no meio da corrente - sozinha e tranquila, contemplando o largo. Era como se magicamente tivesse sido transformada numa ave marinha, estranha e bela. As suas pernas nuas, longas e esguias, eram delicadas como as de uma grua, e imaculadas, excepto no lugar onde uma fita de alga cor de esmeralda se incrustara como se fosse um sinal sobre a carne. As suas coxas, mais cheias, de uma coloração suave como a do marfim, estavam cobertas quase até às ancas, onde as alvas franjas das calças eram como a penugem de uma plumagem alva e macia. A sua saia azul-ardósia, arrojadamente arregaçada até à cintura, caía atrás como cauda de pombo; o peito era semelhante ao de um pássaro, macio e leve, leve e macio como o pescoço de uma rola de plumagem escura; mas os seus longos cabelos loiros eram de menina, e virginal, tocada pelo deslumbramento de uma beleza mortal, era a sua face.

Estava sozinha e tranquila, contemplando o mar; e, quando lhe sentiu a presença e o olhar maravilhado, volveu até ele os olhos numa calma aceitação, sem pejo nem luxúria. Muito, muito tempo sustentou ela aquela contemplação e depois, calma, virou-os para a corrente, enrugando a água para cá e para lá, graciosamente, com a ponta do pé. O primeiro rumor leve da água assim agitada rompeu o silêncio, suave e leve, e sussurrante, leve como os sinos do sono; para cá e para lá, para lá e para cá; um leve rubor tremulava na face da rapariga.

- Deus do Céu! - exclamou a alma de Stephen numa explosão de alegria profana.

Afastou-se bruscamente e começou a correr através da praia. O seu rosto estava afogueado; o seu corpo era um braseiro, tremiam-lhe os membros. Caminhou, caminhou, a passos largos, para lá das dunas, cantando um hino selvagem ao mar, gritando para saudar o advento da vida cujo apelo acabara de o atingir.

A imagem da rapariga entrara na sua alma para sempre, e contudo palavra alguma quebrara o silêncio sagrado do seu arroubo. Os olhos dela tinham-no chamado e a sua alma saltara a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida com a vida! Um anjo selvagem lhe aparecera, anjo da mocidade e da beleza mortal, mensageiro das cortes esplêndidas da vida, escancarando diante dele, num instante de êxtase, os portões de todos os caminhos do erro e da glória. Seguir, seguir, sempre para diante! Para diante!

Parou de repente e ouviu o coração bater no silêncio. Até onde se aventurara? Que horas seriam?

(in "Retrato do Artista quando Jovem", James Joyce, Difel)

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