Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Há momentos em que o caixão que passa às costas de um galego, me chama à realidade, ao espanto. Desvio logo o olhar, reentro à pressa na vida comezinha. Finjo que sorrio e esqueço. Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e no silêncio, teias de escuridão e de silêncio. Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o hábito é que me faz suportar a vida. Às vezes acordo com este grito: - A morte! A morte! E debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh! Como a vida pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas. Não há anos, há séculos que dura esta bisca-de-três - e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma mesa de jogo. O jogo banal é a bisca - o jogo é o da morte... O candeeiro ilumina e a sombra rói as fisionomias, a majestosa Teodora, a Adélia, a Eleutéria das Eleutérias, o padre. Retraem-se no escuro outras figuras indecisas e atentas sobre o jogo paciente. Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece à luz do inferno. Mas nenhuma arrisca um passo definitivo. O relento sabe bem, e o tempo passa, o tempo gasta-se como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero aumenta não se traduz em palavras. A vila cria o mesmo bolor... Pouco e pouco também a Teles esqueceu o solho e esfrega, sem os ver, os móveis reluzentes. A D. Procópia odeia a D. Biblioteca, mas nem ela sabe o que está por detrás daquele ódio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua à vida. Matar matava-a eu, mas várias palavras me detêm. Detém-me também um nada... As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressão, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debruçadas sobre a mesa, as figuras não bolem. Não bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras do padre - Jogo - nem o que a Adélia diz baixinho à Eleutéria, para que a velha temerosa ouça: - A nossa Teodora está cada vez mais moça!... - o que me interessa são as figuras invisíveis: é a dor dessas figuras imóveis, e sobre elas outra figura maior, curva e atenta, que há séculos espera o desenlace.
(Raul Brandão)
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