sábado, novembro 26, 2005

O rouxinol e a cotovia

JULIET
Wilt thou be gone? it is not yet near day:
It was the nightingale, and not the lark,
That pierced the fearful hollow of thine ear;
Nightly she sings on yon pomegranate-tree:
Believe me, love, it was the nightingale.

ROMEO
It was the lark, the herald of the morn,
No nightingale: look, love, what envious streaks
Do lace the severing clouds in yonder east:
Night's candles are burnt out, and jocund day
Stands tiptoe on the misty mountain tops.
I must be gone and live, or stay and die.

JULIET
Yon light is not day-light, I know it, I:
It is some meteor that the sun exhales,
To be to thee this night a torch-bearer,
And light thee on thy way to Mantua:
Therefore stay yet; thou need'st not to be gone.

ROMEO
Let me be ta'en, let me be put to death;
I am content, so thou wilt have it so.
I'll say yon grey is not the morning's eye,
'Tis but the pale reflex of Cynthia's brow;
Nor that is not the lark, whose notes do beat
The vaulty heaven so high above our heads:
I have more care to stay than will to go:
Come, death, and welcome! Juliet wills it so.
How is't, my soul? let's talk; it is not day.

JULIET
It is, it is: hie hence, be gone, away!
It is the lark that sings so out of tune,
Straining harsh discords and unpleasing sharps.
Some say the lark makes sweet division;
This doth not so, for she divideth us:
Some say the lark and loathed toad change eyes,
O, now I would they had changed voices too!
Since arm from arm that voice doth us affray,
Hunting thee hence with hunt's-up to the day,
O, now be gone; more light and light it grows.

ROMEO
More light and light; more dark and dark our woes!


(William Shakespeare, "Romeo and Juliet")

O repentino canto da cotovia


(Mike Danzenbaker's Nature Photography)


(Bird Forum)


Obrigada ao Divas e Contrabaixos pela referência à pérola que a pastora pediu emprestada!

Canção

Venham ver a maravilha
Do seu corpo juvenil!

O sol encharca-o de luz,
E o mar, de rojo, tem rasgos
De luxúria provocante.

Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto... A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso...

Anda nu - saltando e indo,
E sobre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.

Procuro olhá-lo; - e os seus olhos
Amedrontados, recusam
Fixar os meus... - Entristeço...

Mas nesse olhar fugidio -
Pude ver a eternidade
Do beijo que eu não mereço...


(António Botto)

quarta-feira, novembro 23, 2005

Luas pastoras



As luas de Saturno Pandora e Prometeu são chamadas luas pastoras do anel F de Saturno. E que bem desempenham o seu papel! Digam lá se os borreguinhos não fazem uma fila indiana bem comportada!

Lindo!



Eugénio de Andrade (ele mesmo),
via Almocreve das Petas


O lugar da casa

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

(Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua")



Saúde, fraternidade e um beijinho agradecido, caro blogger bibliófilo!

terça-feira, novembro 22, 2005

Nota existencial

A vida são dois dias.

Terrivelmente romântico

Há cerca de uma semana, cruzei-me com uma senhora na rua, que teria entre 65 e 70 anos, com um olho completamente vermelho, que não parecia nada ter resultado de uma queda. Do outro lado da rua, o que parecia ser um marido pacato arrumava o conteúdo do porta-bagagem de um automóvel.

Eu ainda sou do tempo...

Em que tudo era política, em que o Estado éramos todos nós, em que dizer que alguém "se vende bem" era um insulto.

Foi há muito tempo, não há dúvida...

Desabafo

É difícil dar dois passos neste país sem que surja um motivo para novamente perguntar como se chegou a isto, como foi permitido. Dizem-me que agora é tarde para fazer alguma coisa. Esta fealdade custou dinheiro a construir... No entanto, espanta-me que mesmo quando se trata de escombros de edifícios arrasados, se tenha tanto esmero em deixar as coisas no pior estado possível...

segunda-feira, novembro 21, 2005


(Paul Signac)

Leitor

«(...) Se não sou a única pessoa no mundo que, neste momento, neste talvez derradeiro momento da humanidade, lê o que os outros escrevem, onde estão os meus camaradas de armas? Será possível reunirmo-nos e criar um bastião de resistência, uma organização underground que lute contra a epidemia e, através do estudo, da leitura, da experimentação teórico-prática, encontre uma solução para devolver a saúde aos homens e pôr de novo o mundo a funcionar? Não sei. Confesso que não tenho muita esperança.

Eu sou um leitor. Sei o que sou: leio o que os outros escrevem. Faço-o até compulsivamente. De manhã, ao pequeno-almoço, mesmo que não tenha um jornal pela frente, as páginas com a tinta ainda fresca aflorando a chávena de café, os meus olhor percorrem instintivamente a mesa, à procura de palavras, letras, frases para ler: "Corn Flakes", "rico em vitaminas e minerais", "Loja 18 - Rua Camilo Castelo Branco, 15-A", "Planta - margarina vegetal, 250 gramas"... Depois, à medida que o dia avança, vou lendo tudo: todos os jornais, todos os anúncios, todos os números de todas as portas, todos os nomes de todos os médicos na placa da policlínica que fica na rua pela qual perpasso todos os dias. Leio todos os romances que me passam pela frente, leio todos os ensaios que consigo ler, todos os poemas que me passam para a mão quando, à hora do almoço, vou comer um mini-prato ao balcão da pastelaria do bairro onde fica o meu emprego, no qual tenho por função ler todos os documentos que colocam em cima da minha secretária para esse mesmo devido efeito, que é eu lê-los.

É verdade, não sei por que milagre fiquei imune ao vírus. E o engraçado é que nem sempre fui assim. Em jovem, eu próprio tentei escrever. Pode-se lá viver sem ter tentado escrever! Embora nessa altura, devo dizê-lo, houvesse muito menos gente a escrever. Eram outros tempos, havia muito analfabetismo, era uma vida de trabalho. Depois, descobri que preferia ler. Mas antes, confesso, eu próprio tinha a mania de escrever. Nada especial, acho: uns poemetos, um ou outro conto, dois ou três esboços de diálogos para teatro. Mas não vale a pena escondê-lo, eu tinha a mania de que sabia escrever.

Talvez por isso eu tenha ficado imune, se calhar o meu pecadilho da juventude - queria ser escritor! - funcionou como vacina. Isso protegeu-me, até à data, admito, mas não sei até que ponto isto é uma benção ou uma maldição. Sou um leitor num mundo de escritores, e isso faz-me sentir muito sozinho. Porque todos escrevem - mas ninguém lê o que os outros escrevem. Ninguém senão eu. Não têm tempo. Estão tão absortos a contar a sua história, a conceber o seu monumento de imaginação e arte, que não têm tempo para ler. Não é uma questão de ter tempo, é que, simplesmente, já não conseguem. Não conseguem ler. E, qualquer dia, já não sabem ler. As línguas assim vão acabar, ainda antes mesmo do mundo, porque cada um vai cada vez mais e mais escrever na sua própria língua, no seu código muito pessoal, esquecendo-se de que a comunicação tem dois sentidos e que, para se ser compreendido, é preciso partilhar os elementos para essa compreensão. Não lêem. Só escrevem. Morrem. Tal é a potência, a perversão demente do vírus.

E você? Não sei se existe, caro/a colega de sobrevivência neste mundo em colapso. Se ler isto, é porque ainda existe, e então fica a saber que, algures no planeta, talvez mesmo na sua cidade, há alguém que partilha os seus medos, angústias, mas também as suas esperanças. E talvez possamos encontrar-nos, era mesmo bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, para unir esforços, e procurar outros como nós: leitores imunes ao bicho da escrita. Bem sei que a sua primeira reacção talvez seja pensar: "Este tipo está a tentar enrolar-me. Ele próprio é um escritor, não um leitor de verdade. Ele próprio foi contaminado e está a tentar fazer-me crer que não, provavelmente com algum fim pouco honesto."

Está no seu inteiro direito de pensar isso, eu também o pensaria se me aparecesse pela frente uma história assim. Nós não somos desconfiados por natureza, mas por cultura - e nunca ninguém perdeu em desconfiar do vizinho. Peço-lhe apenas o benefício da dúvida. Peço-lhe? Imploro-lhe. Aqui onde me vê, estou de joelhos, implorando-lhe que acredite em mim. Isto não é uma história, isto não é ficção. Estou apenas, genuinamente, a tentar estabelecer contacto com alguém que exista do outro lado da página.

Estou a estender-lhe a mão. Por favor, considere a possibilidade de me estender a sua.

Só mais uma palavra. Não escreva a responder. Bem sei que se calhar está imune, mas nunca se sabe. Apareça, apenas. Eu saberei reconhecê-lo/a, e você também me reconhecerá com facilidade. Seremos os únicos - na praça, no jardim, na rua, no café, onde quer que nos encontremos - sentados pacatamente, com um sorriso nos lábios e um livro, aberto, na mão.»

(Rui Zink, "O Bicho da Escrita")

domingo, novembro 20, 2005

Coisas do Outono


(daqui)

Receitas:

Há-de flutuar uma cidade

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

(Al Berto)

quinta-feira, novembro 17, 2005



O vento

O amor sacode
meu coração, tal
o vento caindo
sobre os robles
da montanha.


(Safo, traduzida por Pedro Alvim)

Um blog e quê...?



Muito obrigada, estimados leitores, pelas vossas visitas, comentários e mimo imerecido!

A imagem é de um catálogo norte-americano, da pêra Pillsbury, que, em 1894, era produzida em New Hampshire. (Bem parecida com a nossa pêra rocha, não?)

quarta-feira, novembro 16, 2005

Na senda das pequenas histórias

Uma rapariga pergunta a um rapaz:
- Queres casar comigo?
O rapaz vira-se para o lado e pergunta:
- Jarbas, pode trazer o meu coração?
- Está num cofre de abertura retardada, Senhor.
E morreram enquanto esperavam.

Galo

Pode sentir-se saudades de um galo a cantar pela manhã? Depois de muito tempo na cidade, e se ainda há alguma ligação com a natureza... sente-se mesmo.

domingo, novembro 13, 2005

Mulher a ler


Marilyn Monroe

Adenda/pin-up service: para os apreciadores de Marilyn, uma sugestão de fundo para o ambiente de trabalho. (Aposto que conseguem esquecer o pequeno-almoço indegesto...)

Crucificada

Amiga... noiva... irmã... o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las
Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!
- Hei-de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei-de poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém,

E depois... Ah! Depois de dores tamanhas
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!


(Florbela Espanca)

A Divina Pastora

Em lugar da Imaculada Conceição, venera-se, no Estado de Lara, na Venezuela, uma "Divina Pastora":

«El comienzo de la veneración por la Divina Pastora se remonta al año de 1736, fecha en que el párroco de Santa Rosa encargó a un famoso escultor que le hiciera una estatua de la Inmaculada Concepción. No obstante, por una extraña equivocación, en lugar de la Inmaculada, llegó al pueblo la imagen de la Divina Pastora. De inmediato el párroco quiso devolverla, pero por mucho que lo intentaron, no pudieron levantar el cajón donde habían colocado la imagen. A partir de este momento la población interpretó este raro acontecimiento como señal de que la Divina Pastora quería quedarse entre ellos. Posteriormente, durante los sucesos del terremoto de 1812, el templo donde se veneraba la Divina Pastora fue destruido, pero su imagen quedó milagrosamente intacta, hecho que reforzó la creencia de los fieles de Santa Rosa de que la Virgen quería quedarse siempre entre ellos para protegerlos.» (Mais aqui.)

Adenda: a figura da Divina Pastora, propriamente dita, foi sonhada, com pormenores da indumentária, por um padre capuchinho de nome Frei Isidoro de Sevilha, em 1705. (Ler mais.)

sábado, novembro 12, 2005

Leve arrepio

Na televisão, em directo, uma procissão de velas com uma Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa. A mesma religião e a mesma cidade dos autos-de-fé.

Edelweiss


(daqui)

Médicos

"Quanto às esperas por consultas. Como quer que não as haja? O que seria da medicina privada se não houvesse espera? Já tinha pensado nisso? Acha que este problema alguma vez vai ter solução? É o mesmo das operações. Como sobreviveriam as clínicas?"

(Cecília Costa, numa caixa de comentários do Abrigo de Pastora)

A minha solução é esta: dez vezes mais médicos. Ou o necessário para existirem em excesso no mercado. A dúvida é: estarão o Estado ou as universidades privadas dispostos a fazer esse investimento, contra o poderoso lóbi dos médicos?

Para um primeiro-ministro, a educação já foi uma paixão; para este agora, a formação é um desígnio... mas talvez sejam mesmo as universidades espanholas a alterarem o nosso estado de coisas.

sexta-feira, novembro 11, 2005

A flor da solidão

Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos


(Ruy Belo)

quinta-feira, novembro 10, 2005

Reminiscência (III)

«Cada um de nós é, por isso, como um símbolo, pois foi cortado em dois, como o linguado e, de um só, ficaram duas metades. Assim, cada uma procura a metade que lhe corresponde. (...)

Quando qualquer homem encontra a sua metade é possuído por transportes de ternura, de simpatia e de amor. Não quer separar-se mais, nem que seja por um instante! Eis as pessoas que passam uma vida inteira juntas, sem poderem dizer o que esperam uma da outra, pois não me parece que seja o prazer dos sentidos que os faz encontrar tanto prazer na companhia um do outro! (...)

A razão deste facto consiste em que a nossa antiga natureza era tal, que constituíamos um todo uno. O amor é a ânsia desta plenitude! (...)

Também nós devemos recear, no caso de faltarmos aos nossos deveres para com os deuses, sermos divididos mais uma vez e tornarmo-nos como as figuras de perfil, talhadas em baixo-relevo nas colunas, com o nariz cortado em dois, ou semelhantes a tésseras. É necessário que nos exortemos uns aos outros a honrar os deuses, a fim de escaparmos a este castigo e obtermos os bens provenientes de Eros, nosso guia e nosso chefe.

Que ninguém declare inimizade por Eros; declará-la significa expor-se à fúria dos deuses. Se conseguirmos a amizade e o favor do deus, descobriremos e reencontraremos aqueles a quem amamos, as nossas próprias metades, o que representa uma felicidade hoje reservada somente a poucos entre os vivos!»

Platão, "O Banquete (O Simpósio ou Do Amor)", Guimarães Editores, tradução de Pinharanda Gomes

Reminiscência (II)

«Ora, depois de assim ter dividido o corpo, cada uma das partes, lamentando a outra metade, foi à procura dela e, abraçando-se e enlaçando-se umas às outras, no desejo de se fundirem numa só, iam morrendo de fome, por inacção, pois nada queriam fazer, umas sem as outras. Quando morria uma metade e a outra sobrevivia, esta procurava logo outra e enlaçava-se nela, quer fosse metade-mulher (o que hoje se chama uma mulher), quer fosse metade-homem e, deste modo, a raça ia extinguindo-se.

Zeus, tocado de misericórdia, imaginou um outro expediente: transpôs os órgãos da geração para o lado da frente, pois, antes disso, estavam implantados atrás e os homens geravam, não uns nos outros, mas sobre a terra, como as cigarras. Colocou estes órgãos à frente, e fez com que os homens procriassem uns nos outros, isto é, o macho com a fêmea. Esta disposição tinha dois fins:

Se o amplexo tivesse lugar entre um homem e uma mulher, estes conceberiam para perpetuar a raça e, se tivesse lugar entre dois homens, sobrevinha a saciedade e, depois disso, entregar-se-iam ao trabalho e proveriam às necessidades da existência. A partir deste momento aparece o amor inato que os seres têm uns pelos outros. O amor tende a reencontrar a antiga natureza, esforça-se por se fundir numa só, e por sarar a natureza humana.»

Platão, "O Banquete (O Simpósio ou Do Amor)", Guimarães Editores, tradução de Pinharanda Gomes

Reminiscência (I)

«Apenas nos resta a designação, pois a espécie desapareceu. Era a espécie andrógina, que tinha a forma e o nome das outras duas, masculina e feminina, das quais era formada: hoje já não existe e não passa de uma designação pejorativa. Cada homem, no seu todo, era de forma arredondada, tinha dorso e flancos arredondados, quatro mãos, outras tantas pernas, duas faces exactamente iguais sobre um pescoço redondo e, nestas duas faces opostas, uma só cabeça, quatro orelhas, dois órgãos sexuais, e tudo o resto na mesma proporção. Caminhava erecto, tal como o homem actual, na direcção que lhe convinha. Quando corria, fazia como os acrobatas, que dão voltas no ar. Lançando as pernas para cima e apoiando-se nos membros, em número de oito, rodava rapidamente sobre ele mesmo. Estas três espécies eram assim conformadas, porque o masculino tinha origem no Sol, o feminino na Terra, e a espécie mista provinha da Lua que, como se sabe, participa de ambos. Eram esféricos, e a sua locomoção também, porque se assemelhavam aos progenitores; possuíam igualmente uma força e um vigor extraordinários e, como eram corajosos, decidiram escalar o céu e guerrear os deuses, à semelhança de Efialto e de Oto, o que Homero conta.

Em face desta invasão, Zeus e os restantes deuses deliberaram sobre a posição a assumir. O caso apresentava-se de solução difícil: não se podiam decidir a exterminar os homens e a destruir a raça humana a golpes de raio, como tinham feito aos Titãs, porque isso significava o fim das homenagens e do culto que os homens prestavam aos deuses; mas não podiam suportar este acto de insolência. Por fim, Zeus, tendo encontrado, não sem alguma dificuldade, uma solução, tomou a palavra e disse: «- Creio ter encontrado a maneira de conservar os homens e de cercear a sua liberdade: torná-los-ei mais fracos. Dividi-los-ei em duas partes. Obteremos, assim, a dupla vantagem de os tornar mais fracos e de continuar a tirar deles algum proveito, pois passarão a ser mais numerosos. Caminharão erectos sobre duas pernas. Se continuarem a mostrar-se insolentes e não sossegarem, voltarei a dividi-los, e caminharão sobre uma só perna!»

Tendo pronunciado esta lei, Zeus cortou todos os homens em dois, tal como se cortam os frutos, ou um ovo com um cabelo. De cada vez que cortava um, ordenava a Apolo para lhe voltar a face e o pescoço para o lado do golpe, a fim de que, vendo-o, o homem se tornasse mais humilde; mandava-lhe, além disso, curar as feridas. Apolo assim fazia e, ligando toda a pele na parte que se chama ventre, deixava apenas uma cavidade, que se chama umbigo. Depois, alisava as costuras e arranjava o peito com um instrumento semelhante ao que utilizam os correeiros para polir, na fôrma, as rugas do cabedal, mas deixava ficar algumas rugas, como as do ventre e as do umbigo, como recordação deste castigo.»

Platão, "O Banquete (O Simpósio ou Do Amor)", Guimarães Editores, tradução de Pinharanda Gomes

quarta-feira, novembro 09, 2005

Fogo

Uma pastora chega ao seu abrigo, depois de um longo dia de trabalho e de cansaços. Está frio. Encontra uma fogueira acesa. Aproxima-se, deixa o calor atingir-lhe e ruborizar-lhe a face, e o crepitar embalar-lhe o repouso. Sorri. (Haverá um certo tipo de liberdade que surge do despojamento?)

segunda-feira, novembro 07, 2005

Broa


Encontrada na Polónia.

As regalias e os salários

A retribuição por um determinado trabalho pode fazer-se por via dos salários, mas também por via das regalias complementares. As regalias têm um valor monetário preciso, em cada momento. Salários e regalias são, aliás, negociados lado a lado.

Por que será, então, que, nunca se pondo a hipótese (por enquanto...) de diminuir os salários - num "momento de crise" que, por acaso, não se nota na compra de bens de luxo - se proponha e aceite tão facilmente a redução, ou mesmo a eliminação, das regalias anteriormente negociadas?

Sociedade de castas?

Por que é que os funcionários públicos têm ADSE? Por que é que, como descobrimos agora, há imensos subgrupos de funcionários públicos que têm regimes especiais?

Será que os funcionários públicos devem ganhar bem e ter regalias (para lá do emprego vitalício), para termos alguma garantia de que não são corruptíveis?

Não ganhariam os serviços públicos, nomeadamente os serviços de saúde, se pessoas de todas as condições os tivessem de utilizar? Não haveria então menos incompetência gritante, como ainda se vê nos balcões de atendimento dos centros de saúde? Menos meses de espera por uma consulta de um médico especialista?

quarta-feira, novembro 02, 2005

Apelo

1. Uma área em que Portugal é rico: poesia.

2. Há quem divulgue a poesia portuguesa, traduzida na língua franca internacional: aqui.

3. Há coisas que se perdem nas traduções... E há coisas quase impossíveis de reencontrar, quer em lojas, quer via p2p. Como Eugénio de Andrade a dizer a sua própria poesia ou Carlos do Carmo a cantar o genérico da série "Retalhos da Vida de um Médico" - algumas das melhores coisas que se podem ouvir em português.

E se houvesse um leitor do Abrigo de Pastora que tivesse os ficheiros audio e os que quisesse partilhar?...

Lisbon revisited (1926)

Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...

(Álvaro de Campos)

terça-feira, novembro 01, 2005

Feed-back

Feed-back de realimentação positiva
Dos ácidos, aminoácidos, proteínas
Fechados em células, ou à deriva
A regularem para que não cresça a mais
A regularem para que não cresça a menos
A regularem para que seja assim.

E eu, assisto impotente a este frenesim...

He lá açúcares, compostos de carbono, adrenalina
Guiados por algoritmo incorpóreo, cego, oculto
Deixem de regular a minha sorte
Em tropel, falsa desordem, tumulto...
E de gerir minhas dores, meus amores, meus ais

Se isto é a vida, eu quero a morte!

Ao menos, os ácidos neutralizam as bases; dão sais... ha ha ha ...


(Manolo, leitor do Abrigo de Pastora, numa janela de comentários)