sexta-feira, novembro 03, 2006

Últimos dias (2)

Lembro-me ainda de uma teoria, bastante difusa, que girava à volta da própria ideia de posteridade. Para acreditar na posteridade, para esperar e conceber que uma obra pudesse sobreviver-nos, era preciso apostar, segundo ele, numa eternidade da arte, das suas formas, dos seus valores... apostar numa independência das obras em relação à época em que nasceram e cresceram... Este livro não é deste tempo, dizem essas pessoas... Não pertence a este lugar... Só aparentemente está ligado a este momento da nossa história onde um vulgar acidente quis que ele surgisse... E nada, verdadeiramente nada, o retém e o amarra a este quadro de acaso do qual só procura escapar-se... Crer nas teorias da arte pela arte. Ora ele tinha passado a vida a combater essas teorias. Tinha dito e repetido que a mais pura, a mais acabada das obras, continha também a sua parcela de contingência. Tinha até sido ele quem primeiro baptizou de «modernidade» o gosto de ancorar os livros no fugidio, no transitório. O que implicava, muito logicamente, que ele não podia, no momento em que falávamos, reinvindicar, nem o direito nem o poder, de se deixar embalar na ilusão de um possível destino póstumo...

Falou-me ainda - mesmo se todos estes assuntos se emaranhavam, mais do que se sucediam - da sua própria obra. Ares familiares... Temas clássicos... Todas aquelas imperfeições, inacabamentos, recomeços, recusas, de que oito dias antes me traçara o catálogo, quando ainda estava só face à sua memória e à sua doença. Só que desta vez a evocação do futuro da sua obra era feita num tom de raiva e ressentimento que, com toda a evidência, já não visava apenas a cegueira dos seus pares... Há escritores a quem a simples perspectiva de um livro que lhes sobrevive tranquiliza e enche de alegria. Ora bem, ele achava-a absurda. Até mesmo desagradável, aparentemente. Considerava a imagem dessas páginas que teimavam em crescer, germinar, florir, nas cabeças alheias, quase tão repugnante como a das unhas e dos cabelos que continuam a crescer, segundo se diz, nos cadáveres. Ele recusava essa ideia. Expulsava-a do espírito. E não era preciso grande esforço para detectar nessa recusa uma parcela não só de ódio mas de ressentimento - como se estivesse invejoso, simples e loucamente invejoso, daquelas insuportáveis
Fleurs du Mal que tinham a pretensão de sobreviver, enquanto ele... ele ia morrer. Juntando uma coisa à outra, esta singular rivalidade às suas dúvidas e perplexidades antigas, o seu ódio redobrou. Mas agora contra si próprio. Contra os seus versos e o seu talento. Contra essa parcela «belga» que havia nele - como nos outros, mais que nos outros.

"Os últimos dias de Charles Baudelaire", Bernard-Henri Lévy, tradução de António Guerreiro, Círculo de Leitores, 1990

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