sexta-feira, novembro 03, 2006

Últimos dias (1)

Creio que o que me tocou, mesmo antes de discernir o próprio sentido do que ele tinha para me dizer, foi a sua voz. O seu ritmo. Aquele acento repentinamente rouco, tropeçante, cheio de gemidos, de estretores e de silêncios, um pouco como durante as suas crises - só que a crise parecia agora crónica. Em seguida foi o seu timbre, invulgarmente abafado, sufocado, despojado da cor e da música que eram até há pouco o seu encanto. Um tom desiludido. Desesperado. O tom de alguém que durante muito tempo se satisfez com palavras mas que de súbito vê claro e não menos claramente o diz - e que essa lucidez mergulha numa infinita tristeza. Depois, foi sobretudo algo ainda mais estranho, a desordem do seu discurso, uma frase sobrepondo-se a outra, um pensamento expulsando o precedente, tudo isto mais soluçado que enunciado, gemido ou gritado, mais do que falado. Um desregramento de ideias. Uma irrupção de palavras, aliás novamente apaixonantes, onde eu o reconhecia inteiro - mas sem que ele se preocupasse, desta vez, nem em ter nexo, nem em ser convincente, nem em me ajudar a segui-lo e a tomar notas.

Se eu procurar, com certo distanciamento, recompor aquela sequência de ideias, de imprecações, de fulgurâncias, verifico, em primeiro lugar, uma série de reflexões acerca daquilo a que ele chamava o fim da literatura. Os jovens são extravagantes, dizia ele... Vêem uma coisa... À sua frente... Nem por um segundo imaginam que ela nem sempre lá tenha estado, nem que possa lá não estar para sempre... Assim é com a literatura... Acreditam-na eterna... Acreditam que haverá sempre livros e pessoas para os escrever... Que erro!... Que ingenuidade!... Como se os homens não tivessem
vivido sem livros... Como se a ausência de livros não tivesse sido, durante séculos e séculos, o estado normal da humanidade... A literatura, surgida tão tarde... Depois da pintura, da escultura, da música... Depois de todas as artes, sem excepção, a terem precedido e lhe terem dado as suas dimensões... Pois bem, o que foi, será... Essas artes que a precederam vão, muito provavelmente, sobreviver-lhe... E ele estava em condições de me anunciar que aqueles livros pelos quais tínhamos tanto apreço não tardariam a regressar ao nada que foi durante muito tempo o seu destino... Bastava que eu o escutasse... Que olhasse à minha volta... Bastava que observasse o singular descrédito que começava já a abalar o próprio nome do poeta... «Nós somos os últimos, meu amigo... Os últimos... Ou então, o que vem a dar no mesmo: os primeiros na decrepitude da nossa arte.»

"Os últimos dias de Charles Baudelaire", Bernard-Henri Lévy, tradução de António Guerreiro, Círculo de Leitores, 1990

(continua)

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