Charles Baudelaire morreu numa pensão belga, vítima da sífilis. Bernard-Henri Lévy retrata-o através dos olhos de um admirador que o acompanha nos seus últimos dias.
Que teria eu feito para merecer tal desagrado? Seria o meu crime assim tão grande? A minha credulidade assim tão censurável? Aquele momento de ingenuidade, afinal tão anódino, que se devia, ele sabia-o muito bem, à confiança cega que eu tinha nele, seria suficiente para aniquilar toda a nossa maravilhosa cumplicidade? Tal ideia parecia-me inacreditável. Pior, ela escandalizava-me. Sim, eu começava a achar inacreditável e escandaloso o capricho - não encontrava outra palavra - de um homem a quem tinha servido durante cinco dias com tanta devoção e que me agradecia tratando-me como um lacaio ou um foliculário. Decepção. Amargura. Cólera, também. Humilhação. Por muito grande que fosse, ninguém tinha o direito de se conduzir daquele modo. Por muito Baudelaire que se acreditasse ser, não tinha o direito de tratar com aquela leviandade o autor do Rêve d'Aristote e das Dix Petites gloses pour servir à l'idée de modernité; podia fazer-me tudo, dizer tudo, eu estava pronto a ouvir as censuras mais veementes, o despedimento mais brutal - mas não aquela indiferença, aquele mutismo, para os quais nada nem ninguém me tinha preparado.
Estava no auge das minhas ruminações. Estava à beira de rebentar, de me insurgir. Tinha aversão àquele velho ingrato, entrevado, que de repente se comportava mal. Dizia a mim próprio que aquela maldade gratuita era talvez, no fundo, o sinal anunciador de uma senilidade próxima. Cúmulo da blasfémia, surpreendi-me mesmo a pensar que era essa a fonte de todos os seus males, de todas as suas infelicidades diversas e variadas que ele me contava desde há cinco dias... ele tinha-a procurado, afinal... não se lhe tinha furtado... Quem sabe se todas aquelas histórias vis que circulavam a seu respeito não tinham aqui o seu fundamento, a sua verdade?... Tais eram, pois, os meus sacrílegos pensamentos. Estava eu prestes a guardar as minhas canetas, a fechar o caderno e a fazer as minhas despedidas quando ele quebrou finalmente o seu silêncio. Era meio-dia. Eu iria compreender que todo aquele azedume, todo aquele ódio, não me eram tão destinados quanto o havia imaginado.
"Os últimos dias de Charles Baudelaire", Bernard-Henri Lévy, tradução de António Guerreiro, Círculo de Leitores, 1990
(continua)
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