quinta-feira, maio 31, 2007

Canção de primavera

Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores,
Pois que Maio chegou,
Revesti-o de clâmides de cores!
Que eu, dar, flor, já não dou.

Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves,
Acordai desse azul, calado há tanto,
As infinitas naves!
Que eu, cantar, já não canto.

Eu, invernos e outonos recalcados
Regelaram meu ser neste arrepio...
Aquece tu, ó sol, jardins e prados!
Que eu, é de mim o frio.

Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio,
Vem com tua paixão,
Prostrar a terra em cálido desmaio!
Que eu, ter Maio, já não.

Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto;
Ter sol, não tenho; e amar...
Mas, se não amo,
Como é que, Maio em flor, te chamo tanto,
E não por mim assim te chamo?


(José Régio)

segunda-feira, maio 28, 2007

Dia-a-dia

1. Uma das razões por que gosto de Portugal é por as mulheres, no mercado de trabalho, se terem emancipado mais do que noutros países. É um resultado da pobreza, mas o que é certo é que o trabalho se tornou um espaço em que o machismo que exista já tem de se esconder (e, idealmente, diminuirá), e em que ter filhos pequenos e trabalhar ao mesmo tempo não é crime de lesa-majestade. Vivam as mulheres portuguesas!

2. Uma união de facto demora anos de co-habitação: na prática, demora mais tempo a efectivar-se do que um casamento... Depois, os processos que conduzem a divórcios são geralmente muito penosos - penosos de ver, e ainda mais serão de viver - só por sadismo se pode querer que esse suplício se prolongue no tempo. Se é por a "instituição do casamento" ter um qulquer papel social a desempenhar (contribuintes mais previsíveis? educadores mais eficazes?), há que pensar se esse período de limbo que obrigam os casais desavindos a passar não terá, afinal, resultados contrários aos pretendidos.

Song of the Open Road

8

The efflux of the Soul is happiness—here is happiness;
I think it pervades the open air, waiting at all times;
Now it flows unto us—we are rightly charged.

Here rises the fluid and attaching character;
The fluid and attaching character is the freshness and sweetness of man and woman;
(The herbs of the morning sprout no fresher and sweeter every day out of the roots of themselves, than it sprouts fresh and sweet continually out of itself.)

Toward the fluid and attaching character exudes the sweat of the love of young and old;
From it falls distill’d the charm that mocks beauty and attainments;
Toward it heaves the shuddering longing ache of contact.


(Walt Whitman)

domingo, maio 20, 2007

O sangue que se quer dar

1. Portanto... no questionário para dádiva de sangue, entre preconceitos e complexos, é mais provável que um homossexual com comportamentos de risco assuma que tem comportamentos de risco do que é homossexual... É isso?! Mas quem é que, no seu perfeito juízo assume que tem comportamentos de risco em tal situação?! Alguém que não tem mais nada para fazer? (Ou, quem sabe, que quer salvar a mãe submetida a uma cirurgia, correndo o risco de lhe transmitir o HIV?...)


2. Por que há-de a razão actual entre infecções por diferentes vias de transmissão ser o critério para a ter em conta para a definição de grupos de risco nas dádivas de sangue? Se pode haver infeccções de há mais de uma década ainda sem sintomas e não diagnosticadas?

Perplexidades

Como é possível a alguém defender os "direitos dos animais" e ser conivente com as maiores barbaridades que os seres humanos infligem uns aos outros?

Song of the Open Road

7

Here is the efflux of the Soul;
The efflux of the Soul comes from within, through embower’d gates, ever provoking questions:
These yearnings, why are they? These thoughts in the darkness, why are they?
Why are there men and women that while they are nigh me, the sun-light expands my blood?
Why, when they leave me, do my pennants of joy sink flat and lank?
Why are there trees I never walk under, but large and melodious thoughts descend upon me?
(I think they hang there winter and summer on those trees, and always drop fruit as I pass;)
What is it I interchange so suddenly with strangers?
What with some driver, as I ride on the seat by his side?
What with some fisherman, drawing his seine by the shore, as I walk by, and pause?
What gives me to be free to a woman’s or man’s good-will? What gives them to be free to mine?


(Walt Whitman)

sábado, maio 19, 2007

Song of the Open Road

6

Now if a thousand perfect men were to appear, it would not amaze me;
Now if a thousand beautiful forms of women appear’d, it would not astonish me.

Now I see the secret of the making of the best persons,
It is to grow in the open air, and to eat and sleep with the earth.

Here a great personal deed has room;
A great deed seizes upon the hearts of the whole race of men,
Its effusion of strength and will overwhelms law, and mocks all authority and all argument against it.

Here is the test of wisdom;
Wisdom is not finally tested in schools;
Wisdom cannot be pass’d from one having it, to another not having it;
Wisdom is of the Soul, is not susceptible of proof, is its own proof,
Applies to all stages and objects and qualities, and is content,
Is the certainty of the reality and immortality of things, and the excellence of things;
Something there is in the float of the sight of things that provokes it out of the Soul.

Now I reëxamine philosophies and religions,
They may prove well in lecture-rooms, yet not prove at all under the spacious clouds, and along the landscape and flowing currents.

Here is realization;
Here is a man tallied—he realizes here what he has in him;
The past, the future, majesty, love—if they are vacant of you, you are vacant of them.

Only the kernel of every object nourishes;
Where is he who tears off the husks for you and me?
Where is he that undoes stratagems and envelopes for you and me?

Here is adhesiveness—it is not previously fashion’d—it is apropos;
Do you know what it is, as you pass, to be loved by strangers?
Do you know the talk of those turning eye-balls?


(Walt Whitman)

Relógios de dentes de leão...


(daylysofts.com)

Clipping

Rachel

"A woman can´t suffer twice." Daphne du Maurier

A certa altura no My Cousin Rachel surge este aforismo de fino recorte. Philip é reduzido à sua insignificância pela voz de Rachel: "A woman can´t suffer twice." A questão não é que ela não o ame -- que não ama -- a questão é que ela, uma mulher mais velha, já passou por lá -- e lá não volta.

Se é verdade que à partida uma mulher está mais vulnerável a ser violentada pelo desamor (um mito cultural que não interessa aqui desconstruir) também é verdade que, fazendo das fraquezas defesas, não mais torna às profundezas -- uma mulher sofre logo tudo, diz-nos Rachel. No caso dela, já sofreu. Temos pois que Philip já não podia aspirar a fazer sofrer Rachel, uma mulher irremediavelmente endurecida. Ora, sadismo à parte, não há tampa mais requintada do que essa: "desculpa, mas acho que não me ias conseguir fazer sofrer o suficiente."

(Bruno Sena Martins, avatares de um desejo)

Agradecimento

Ao blog Cantares de Amigo pela referência simpática: obrigada!

domingo, maio 13, 2007

Flores para Walt Whitman

Whitman

Um blog pôs junto à ligação a este Abrigo uma imagem de Walt Whitman: gosto disso! Será esta uma boa altura para falar de Whitman, depois de um poema tão extraordinário que não precisa de quaisquer comentários?

As "Folhas de Erva" são, seguramente, um dos melhores livros que já encontrei.

Fixo a imagem do homem publicada numa das primeiras páginas da sua obra-prima. Nunca tinha visto tal coisa, mas se calhar sou eu que não conheço as modas dos livros antigos.

Na gravura e nas fotografias, reconhece-se em Whitman um homem bonito (serão claros ou cegos, os olhos de uma fotografia?). Mas é como se fosse uma montanha imponente, que guarda no seu interior os seus maiores tesouros, galerias incrustadas de cristais de todas as cores.

Tinha da obra dele a ideia dada por Pessoa dos poemas marítimos, dos sons dos barcos e dos marinheiros, escritos em registo épico, um pouco como Melville. Aliás, viveram os dois praticamente os mesmos anos. Mas Whitman é muito mais do que imaginava. Conseguiu captar a alma da "América", nas suas paisagens grandiosas, no seu projecto democrático, na sua humanidade fraternal. De facto, se a república já tinha sido experimentada na Grécia e na Roma antigas ou nas repúblicas italianas ou helvéticas, foi na América que a utopia democrática foi recriada e posta em prática. Whitman vai na carruagem do entusiasmo.

Mas o que mais me comove nos seus poemas é a constante declaração de amor, não tanto por um povo abstracto, mas por pessoas que conheceu, que tanto poderiam ser a mãe ou o pai, irmãos, amigos ou amantes. Como se ele tivesse sido o escolhido, com o seu imenso talento, para cristalizar uma época, e tivesse querido que aqueles que amou estivessem também no retrato. Justamente, como um cristal que adquire a sua cor devido às impurezas na sua estrutura cristalina.

sábado, maio 12, 2007

Song of the Open Road

5

From this hour, freedom!
From this hour I ordain myself loos’d of limits and imaginary lines,
Going where I list, my own master, total and absolute,
Listening to others, and considering well what they say,
Pausing, searching, receiving, contemplating,
Gently, but with undeniable will, divesting myself of the holds that would hold me.

I inhale great draughts of space;
The east and the west are mine, and the north and the south are mine.

I am larger, better than I thought;
I did not know I held so much goodness.

All seems beautiful to me;
I can repeat over to men and women, You have done such good to me, I would do the same to you.

I will recruit for myself and you as I go;
I will scatter myself among men and women as I go;
I will toss the new gladness and roughness among them;
Whoever denies me, it shall not trouble me;
Whoever accepts me, he or she shall be blessed, and shall bless me.


(Walt Whitman)

Cabelo castanho, ondulado, escadeado

Será um preconceito? Parece-me que os lenços das mulheres muçulmanas me interpelam.

Querendo fazer-me acreditar que poderiam andar de calças de ganga, mini-saia ou top com barriga à mostra sem nenhum problema, e que o lenço é o resultado de uma escolha livre, símbolo da identificação a uma tradição, desacredito. Que tradição é essa, afinal? Estética, ou apenas moral? Não estarão a dizer que todas as outras mulheres que não usam lenço são umas perdidas (to say the least)?

Haverá alguma dessas mulheres com verdadeira liberdade para escolher tirar o lenço? Se sim, por que não tirá-lo? Como é possível preferir ostentar a submissão em espaço público?

domingo, maio 06, 2007

Dancemos no mundo

Isto é como tudo
não há-de ser nada
a minha namorada
é tudo que eu queira
mas vive para lá da fronteira

Separam-nos cordas
separam-nos credos e
creio que medos e
creio que leis nos colam
à pele papéis

Tratados,
acordos são pântanos, lodos
Pisemos a pista é bom
que se insista dancemos no mundo

Eu só queria dançar contigo
sem corpo visível
dançar como amigo
se fosse possível
dois pares de sapatos
levantando o pó
dançar como amigo só

Por ódio passado (que seja maldito)
amor favorito não tem importância
se for é de circunstância

Separam-nos crimes
separam-nos cores
a noite é de horrores
quem disse que é lindo o sol-posto
de um dia findo

Sozinho adormeço
E em teu corpo apareço
Pisemos a pista é bom que se insista
dancemos no mundo

Eu só queria dançar contigo
sem corpo visível
dançar como amigo
se fosse possível
dois pares de sapatos levantando o pó
dançar como amigo só

Em passos tão simples
trocar endereços
num mundo de acessos
ar onde sufocas
lugar de supostas trocas

Separam-nos facas
separam-nos fatas
pai-nossos e datas
e excomunhões
acondicionando paixões

Acenda-se a tua luz na minha rua
Pisemos a pista
é bom que se insista
dancemos no mundo


(Sérgio Godinho)

sábado, maio 05, 2007

Madame ou mademoiselle?

Eis a questão, para as feministas francesas. E eu até as compreendo (está tudo no artigo). Felizmente, em português, a "Menina" tornou-se arcaica e a "Senhorita" só se ouve a empregados brasileiros como sinal de deferência associado à idade - ou seja, tem graça e soa sempre bem. Mas, ainda assim, prefiro uma ouvida "Senhora", universal, dita em tom respeitoso com pronúncia eslava.

sexta-feira, maio 04, 2007

Song of the Open Road

4

The earth expanding right hand and left hand,
The picture alive, every part in its best light,
The music falling in where it is wanted, and stopping where it is not wanted,
The cheerful voice of the public road—the gay fresh sentiment of the road.

O highway I travel! O public road! do you say to me,
Do not leave me?
Do you say, Venture not? If you leave me, you are lost?
Do you say, I am already prepared—I am well-beaten and undenied—adhere to me?

O public road! I say back, I am not afraid to leave you—yet I love you;
You express me better than I can express myself;
You shall be more to me than my poem.

I think heroic deeds were all conceiv’d in the open air, and all great poems also;
I think I could stop here myself, and do miracles;
(My judgments, thoughts, I henceforth try by the open air, the road;)
I think whatever I shall meet on the road I shall like, and whoever beholds me shall like me;
I think whoever I see must be happy.


(Walt Whitman)