domingo, abril 08, 2007

Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro

I

Conheci o meu mestre Caeiro em circunstâncias excepcionais - como todas as circunstâncias da vida, e sobretudo as que, não sendo nada em si mesmas, hão-de vir a ser tudo nos resultados.

Deixei em quase três-quartos o meu curso escocês de engenharia naval; parti numa viagem ao Oriente; no regresso, desembarcando em Marselha, e sentindo um grande tédio de seguir, vim por terra até Lisboa. Um primo meu levou-me um dia de passeio ao Ribatejo; conhecia um primo de Caeiro, e tinha com ele negócios; encontrei-me com o que havia de ser meu mestre em casa desse seu primo. Não há mais que contar, porque isto é pequeno, como toda a fecundação.

Vejo ainda, com a claridade da alma, que as lágrimas da lembrança não empanam, porque a visão não é externa... Vejo-o diante de mim, e vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não tem medo; depois, os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo - nem alta nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura, que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga. A expressão da boca, a última coisa em que se reparava - como se falar fosse, para este homem, menos que existir - era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam - flores, campos largos, águas com sol -, um sorriso de existir, e não de nos falar.

Meu mestre, meu mestre, perdido tão cedo! Revejo-o na sombra que sou em mim, na memória que conservo do que sou de morto...

Foi durante a nossa primeira conversa... Como foi, não sei, e ele disse: "Está aqui um rapaz Ricardo Reis que há-de gostar de conhecer: ele é muito diferente de si". E depois acrescentou, "tudo é diferente de nós, e por isso é que tudo existe".

Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra, seduziu-me com um abalo, como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. Mas, ao contrário da sedução material, o efeito em mim foi de receber de repente, em todas as minhas sensações, uma virgindade que não tinha tido.


(Álvaro de Campos, in "Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro", Estampa, 1997)

Sem comentários: