terça-feira, fevereiro 28, 2006

Poder

Por maior que seja a superioridade intelectual de um homem, não lhe é possível dominar prática e duravelmente os outros homens sem representar uma espécie de mil comédias. É o que afasta os verdadeiros príncipes do império que Deus lhes preparou nas assembleias do mundo; deixa as mais altas honras para aqueles homens que se tornam famosos, mais devido àquilo que possuem de inferior aos príncipes do que devido às suas qualidades de superioridade sobre as massas. Mas existe um tal poderio nestas pequenas comédias, quando postas ao serviço de certas superstições políticas extremas, que não é raro vermos o mais imbecil assumir o poder. (Herman Melville)

O cachimbo tomahawk


(Eanger Irving Couse)

Nuclear

Espanta-me a forma como foi debatida a opção pela energia nuclear nos últimos dias.

Em primeiro lugar, pela forma como foi desencadeado debate, como se o dinheiro comprasse tempo de antena no nosso pensamento. Mas talvez seja altura de deixar de ser ingénua...

Depois, pela imensa ignorância que não se envergonha de se passear na rua: ouviu-se, por exemplo, falar da "fusão a frio para daqui a quarenta anos", de que "não se sabe muito bem quanto tempo é que os resíduos radioactivos duram" e de que "os resíduos de uma central nuclear são urânio enriquecido" (sic).

Há também uma grande confusão sobre a nossa central nuclear mais próxima, em Espanha: a quantos quilómetros está da nossa fronteira? Representa um risco real para Portugal? Quem acha que sim, preocupou-se em saber se esse risco está coberto por algum tipo de seguro? E alguém foi saber que seguros pagam as centrais nucleares noutros países onde são investimento privado?

Por fim, a confusão entre "energia eléctrica" e as "restantes" formas de energia. O hidrogénio como forma de armazenamento de energia e, portanto, de transferência de energia eléctrica para outras formas de energia, utilizadas por veículos automóveis, bem como o imperativo de desenvolver carros híbridos, são coisas que interessam a muito poucos.

É um país pobre e pequeno, este, mas, ainda assim, e pelo menos por enquanto, relativamente limpo no que toca a riscos radioactivos. E, a avaliar pelos debates que por cá têm lugar, talvez seja mais prudente não arriscar, ou ainda se perde a possibilidade de habitar este rectangulozinho com sol que Afonso Henriques decidiu que existisse.

Vídeo-experiência... 1, 2, 3, fogo.



Já conhecem o YouTube?

sábado, fevereiro 25, 2006

E fecho os olhos quentes



(Maior aqui.)


IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.


(Alberto Caeiro)

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

A mão no arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio

Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tuido isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.

(Ruy Belo)

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


(Al Berto)

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Mulher a ler


(Marianne Stokes)

Do silêncio

1. O contador de histórias perdeu a inspiração. Lembro-me bem do que senti quando li algumas das suas histórias. Espantei-me por ter surgido aquela voz num lugar tão improvável. As críticas snobes põe-no agora ao lado da literatura light. Contar simples histórias, mesmo que depuradas, passou a ser, parece, uma arte menor.

É engraçado, isto da leitura. Se as linhas fossem sangue, tão bem poderíamos conhecer um escritor! E não são? Há os escritores prolíficos e consistentes num estilo de escrita, a que depois há leitores que se apegam, cujos meandros mentais seguem, e esses meandros, por sua vez, ficam esculpidos em sinapses e manifestam-se, talvez, em gestos futuros.

2. O trabalho lá fora revela-se na ausência de entradas. Será que o trabalho enobrece? Ou será que embrutece?

3. Pergunto-me por que há ligações para este blog. Não se procura aqui a popularidade. É um blog cheio de defeitos. Aliás, pouco mais é do que um fraco repositório de poesia e de quadros pouco trendy. Deve ser o hábito e o mercado das ligações. O que dizem? (Seja como for, obrigada!)

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Floriram por engano as rosas bravas

Floriram por engano as rosas bravas
No inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze - quanta flor! - do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?


(Camilo Pessanha)

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Memória curta

Há um putativo candidato a secretário geral da ONU que defendeu, há anos, a pena de morte. Não tive notícia de que tenha mudado de opinião. Será que isso não interessa nada?

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Mulher a ler


(Carl Vilhelm Holsoe)

Há quem se vista para a possibilidade de estar a viver o seu último dia. Pergunto-me sobre como gostaria que fosse a correspondente última-entrada-temporária deste blog. Para o caso de alguma coisa acontecer...

domingo, fevereiro 05, 2006

Blue


(Doc White/Seapics.com)


The Whale in the Blue Washing Machine

There are depths even in a household
where a whale can live. . . .

His warm bulk swims from room
to room, floating by on the stairway,
searching the drafts, the cold
currents of water and liberation

He comes to the surface hungry,
sniffs at the table,
and sinks, his wake rocking the chairs.

His pulsebeat sounds at night
when the washer spins and the dryer
clanks on stray buttons. . . .

Alone in the kitchen darkness,
looking through steamy windows
at the streets draining away in fog;

watching and listening
for the wail of an unchained buoy,
the steep fall of his wave.


(John Haines)

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Liberdade



Face a manifestações da rua muçulmana, teríamos, por acaso, de esconder os cabelos das mulheres? De deixar de praticar a usura? Que mais quereriam os fundamentalistas islâmicos impor-nos?

Os preceitos religiosos obrigam os seus praticantes, não os infiéis.

Memórias de tolerância e intolerância

Parecer do censor do Santo Ofício na edição de 1572 de "Os Lusíadas"

Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa, e não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fé & bõs custumes, somente me pareceo que era necessario aduertir os Lectores que o Autor pera encarecer a difficuldade da navegação & entrada do Portugueses na India, usa de hua fição dos Deoses dos Gentios. E ainda que sancto Augustinho nas sas Retractações se retracte de ter chamado nos liuros que compos de Ordine, aas Musas Deosas. Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo Poetico não tiuemos por inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal, & ficando sempre salua a verdade de nossa sancta fe, de todos os Deoses dos Gentios sam Demonios. E por isso me pareceo o liuro digno de se imprimir, & o Autor mostra nelle muito engenho & muita erudição nas sciencias humanas. Em fe do qual assiney aqui.

Frey Bertholameu Ferreira.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Pela liberdade de expressão


Parem! Parem! Acabaram-se-nos as virgens!

Os restantes cartoons da polémica podem ser vistos, por exemplo, aqui, no final da página.

O tempo dos híbridos

Temos, hoje, movimentos de cidadania que querem substituir partidos, uniões de facto que querem ser casamentos. A natureza mostra, no entanto, que muitos híbridos são estéreis.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Mulher a ler


(Henri Fantin Latour, A leitora)

Método

(...) E, como a multidão das leis fornecem muitas vezes desculpas aos vícios, de sorte que um Estado é muito melhor governado quando, possuindo muito poucas, elas são rigorosamente observadas, assim, em vez do grande número de preceitos que compõem a lógica, cuidei bastarem-me os quatro seguintes, desde que eu tomasse a firme e constante resolução de nem uma só vez deixar de os observar.

O primeiro era o de jamais receber por verdadeira coisa alguma que eu não conhecesse evidentemente como tal: isto é, o de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; de não compreender nada mais nos meus juízos senão o que se apresentasse tão claramente e tão distintamente ao meu espírito que não teria qualquer ocasião de o pôr em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quanto fosse possível e requerido para melhor as resolver.

O terceiro, o de conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como que por degraus, até ao conhecimento dos mais complexos, e supondo a existência de ordem entre aqueles que não se sucedem naturalmente uns aos outros.

E o último, o de fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que fique seguro de nada omitir.


(René Descartes)