domingo, setembro 04, 2005

As Vinhas da Ira

O pequeno regressou ao seu canto; trouxe um cobertor sujo e estendeu-o à mãe.

—Muito obrigada—disse ela.—O que é que aquele senhor tem?

O pequeno respondeu na mesma voz rouca e monótona:

—Primeiro, esteve doente; agora, está a morrer de fome.

—O quê?!

—Está a morrer de fome. Adoeceu na colheita do algodão e há seis dias que não come nada.

A mãe foi até ao canto e debruçou-se sobre o homem, a olhá-lo. Devia ter uns cinquenta anos. Possuia um rosto barbudo e descarnado, e os olhos, muito abertos, fixavam o nada. O rapaz veio postar-se ao lado da mãe.

—Ele é teu pai?—perguntou ela.

—É, sim. Ele dizia que não tinha fome, ou que já tinha comido. Dava-me a comida toda. Agora, está tão fraco que nem se pode mexer.

A chuva amainara outra vez e tamborilava brandamente no tecto do celeiro. O homem escanzelado moveu os lábios. A mãe ajoelhou-se ao lado dele e encostou o ouvido à boca do homem, cujos lábios se tornaram a mover.

—Bem—disse a mãe.—Esteja sossegado. Tudo se arranja. É só esperar que eu tire a roupa molhada à minha filha.

A mãe voltou para junto de de Rosa de Sharon.

—Trata de te despir, anda!

Estendeu o cobertor, fazendo dele uma cortina, para a esconder dos olhos dos outros. E, quando Rosasharn ficou nua, a mãe enrolou-a no cobertor.

O pequeno estava agora de novo ao lado da mãe, explicando:

—Eu não sabia de nada. Ele dizia sempre que já tinha comido ou então que não tinha fome. A noite passada, quebrei a vidraça de uma janela e roubei um pão. Obriguei-o a comer, mas vomitou tudo e ficou ainda mais fraco. Devia comer sopa ou tomar leite. A senhora tem algum dinheiro para comprar leite?

A mãe respondeu, suavemente:

—Chiu! Não te apoquentes. Tudo se há-de arranjar.

De repente, o pequeno deu um grito:

—Está a morrer! Está a morrer, sério! Ele vai morrer de fome. Vai, vai!

—Chiu!—fez a mãe.

Lançou um olhar ao pai e ao tio John, que estavam parados, diante do doente, sem saber o que haviam de fazer. Olhou para Rosa de Sharon, bem enrolada no cobertor. Os seus olhos fugiram dos da filha e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo nas respectivas almas. A respiração da rapariga tornara-se curta e agitada.

—Sim—disse.

A mãe sorriu.

—Eu sabia. Eu sabia que tu eras capaz de o fazer.—Olhou para as mãos apertadas uma na outra, descansando no regaço.

Rosa de Sharon disse baixinho:

—Vocês são capazes de sair todos?

A chuva batia ao de leve no telhado.

A mãe inclinou-se para a filha e, com a palma da mão, afastou as madeixas revoltas que lhe caíam para a testa e deu-lhe um beijo na fronte. A mãe ergueu-se rapidamente:

—Vamos, minha gente, vão para o alpendre das ferramentas.—gritou ela. Vão-se embora, andem!

Pô-los fora da porta. Por fim, levando o rapazito pela mão, saiu também, fechando a porta, que chiou atrás de si.

Por um momento, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no celeiro ressoante de murmúrios. Depois, ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto devastado do desconhecido, de olhos arregalados e cheios de temor. Então, vagarosamente, deitou-se ao lado dele. O homem abanou debilmente a cabeça de um lado para o outro. Rosa de Sharon afastou um dos lados do cobertor, deixando o seio a descoberto.

—Tem de ser—disse, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça para si.—Ora vá! Então!

Apoiou-lhe a cabeça com a mão, e os seus dedos afagaram-lhe suavemente os cabelos. Ergueu os olhos, e deixou-os errar pelo barracão, enquanto os lábios se lhe arqueavam num misterioso sorriso.


(John Steinbeck, in «As Vinhas da Ira», traduzido por Virgínia Motta, Livros do Brasil)

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