sexta-feira, setembro 30, 2005



(Pablo Picasso)

Rimas

Por viver numa castigada Babel, quantas belas rimas, quanta música escrita em palavras, nunca chegarei a conhecer...

The tiger

Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare seize the fire?

And what shoulder and what art
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand and what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? What dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And water'd heaven with their tears,
Did He smile His work to see?
Did He who made the lamb make thee?

Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?


(William Blake)

terça-feira, setembro 27, 2005


(Joan Miró)

Filhos de um deus menor

Há as pessoas extremamente belas. Há as extremamente inteligentes. As extremamente talentosas. Há as que têm uma sorte extraordinária. Há, depois, todas as outras. As que não têm nada disso. E têm de se contentar. Ou, não se contentando, têm de viver frustradas.

A variedade é boa. Mas, se tivesse havido um criador disto tudo, não poderia deixar de ser considerado excessivamente injusto...

sábado, setembro 24, 2005

Urgentemente

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


(Eugénio de Andrade)

terça-feira, setembro 20, 2005


(Salvador Dali)

Comece o dia com energia... com "Joy to the World"

Joy to the World

Jeremiah was a bullfrog
Was a good friend of mine
I never understood a single word he said
But I helped him a-drink his wine
And he always had some mighty fine wine
Singin'...

Joy to the world
All the boys and girls now
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

If I were the king of the world
Tell you what I'd do
I'd throw away the cars and the bars and the war
Make sweet love to you
Sing it now...

Joy to the world
All the boys and girls
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

------ electric piano ------

You know I love the ladies
Love to have my fun
I'm a high life flyer and a rainbow rider
A straight shootin' son-of-a-gun
I said a straight shootin' son-of-a-gun

Joy to the world
All the boys and girls
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

Joy to the world
All the boys and girls
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

Joy to the world
All the boys and girls
Joy to the world
Joy to you and me

Joy to the world
All the boys and girls now
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

Joy to the world
All the boys and girls
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

I wanna tell you
Joy to the world
All the boys and girls
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

Joy to the world
All the boys and girls
Joy to the fishes in the deep blue sea
Joy to you and me

(fading)
Joy to the world
All the boys and girls


(Three Dog Night)

segunda-feira, setembro 19, 2005

Ataraxia

Do grego ataraxia: «impassibilidade». Introduzido por Demócrito, e utilizado sobretudo pelos epicuristas e estóicos, o termo significa tranquilidade da alma — ausência de perturbação.

Os estóicos identificam a ataraxia com a apatia, isto é, a serenidade intelectual, o domínio de si, o estado da alma que se tornou estranha às desordens das paixões e insensível à dor, rejeitando a procura da felicidade; já que as "coisas" não podem ser de outro modo, o mais sensato é acomodarmo-nos.

Os cépticos e os epicuristas procuram o mesmo através da ataraxia, atitude que, sem renunciar à amizade, à compaixão, ao prazer ou à dor, não permite a perda do equilíbrio espiritual. Epicuro entende que se chega à felicidade pelo prazer, mas, porque alguns prazeres se revelam nefastos, é necessário fazer uma "triagem", rejeitando aqueles que não são naturais ou não são necessários à nossa paz: o prazer é, então, ausência de perturbações passionais da alma — a ataraxia. O homem sem paixões é o que é/está em si e para si: "estar fora de si" (o homem colérico, diz-se, é o que está fora de si) é a expressão que traduz o estado contrário à ataraxia.

||| A propósito...: 1) "Uma vida sem festas é uma longa estrada sem hospedagens" (Demócrito); 2) "Sábio é aquele que não se aflige com o que lhe falta e se satisfaz com o que possui" (Demócrito); 3) "Quando nos bastamos a nós mesmos, alcançamos a posse desse bem inestimável que é a liberdade" (Epicuro).

(in Vocabulário de Filosofia, de A.R. Gomes)

domingo, setembro 18, 2005


(Fernando Pessoa)

Está escrito "I know not what tomorrow will bring." A data é a da véspera da morte de Fernando Pessoa.

365 dias no Abrigo de Pastora (IV)

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo: —Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.


(Luís de Camões)

(Jean-François Millet)

365 dias no Abrigo de Pastora (III)

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio....

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, este tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


15 de Outubro de 1929

(Álvaro de Campos)

(Jean-François Millet)

365 dias no Abrigo de Pastora (II)

Pastora da Serra

Pastora da serra
da serra da Estrela,
perco-me por ela.


VOLTAS

Nos seus olhos belos
tanto Amor se atreve,
que abrasa entre a neve
quantos ousam vê-los.
Não solta os cabelos
Aurora mais bela:
perco-me por ela.

Não teve esta serra
no meio da altura
mais que a fermosura
que nela se encerra.
Bem céu fica a terra
que tem tal estrela:
perco-me por ela.

Sendo entre pastores
causa de mil males,
não se ouvem nos vales
senão seus louvores.
Eu só por amores
não sei falar dela:
sei morrer por ela.

De alguns que, sentindo,
seu mal vão mostrando,
se rim, não cuidando
que inda paga, rindo.
Eu, triste, encobrindo
só meus males dela,
perco-me por ela.

Se flores deseja
por ventura, belas,
das que colhe, delas,
mil morrem de enveja.
Não há quem não veja
todo o milhor nela:
perco-me por ela.

Se na água corrente
seus olhos inclina,
faz luz cristalina
para a corrente.
Tal se vê, que sente,
por ver-se, água nela:
perco-me por ela.


(Luís de Camões)

(Egon Schiele)

365 dias no Abrigo de Pastora (I)

Os treze anos
Cantilena


Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro,
já bailo ao Domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho co’as patas
Ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

dizendo-lhe: "Toma
gibão domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

"A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas co’as outras
e eu danço em terreiro."

Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho;
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que viva por festas,
que brilhe em terreiro;

Que em ele assomando
co’o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
ai, céu verdadeiro!
ai, Páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.


(António Feliciano de Castilho)

Melancolia


(Albrecht Dürer)

sábado, setembro 17, 2005

Casamento de homossexuais ou a incoerência da legislação portuguesa

Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

(Constituição da República Portuguesa)

*

ARTIGO 1577º
(Noção de casamento)

Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir familía mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código.

(Código Civil, Redacção do Dec.-Lei 496/77, de 25-11)

Pedido encarecido

A RTP1 não podia substituir aqueles três minutos antes do telejornal por publicidade, por misericórdia? (É que até aos sábados...)

sexta-feira, setembro 16, 2005

Romance do terceiro oficial de finanças

Ah! as coisas incríveis que eu te contava
assim misturadas com luas e estrelas
e a voz vagarosa como o andar da noite!

As coisas incríveis que eu te contava
e me deixavam hirto de surpresa
na solidão da vila quieta!...
Que eu vinha alta noite
como quem vem de longe
e sabe o segredo dos grandes silêncios
- os meus braços no jeito de pedir
e os meus olhos pedindo
o corpo que tu mal debruçavas da varanda!...

(As coisas incríveis eu só as contava
depois de as ouvir do teu corpo, da noite
e da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos
quando eu ia namorar-te...)

Mas tudo isso, que era tudo para nós,
não era nada da vida!...
Da vida é isto que a vida faz.
Ah! sim, isto que a vida faz!...
- isto de tu seres a esposa séria e triste
de um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!...


(Manuel da Fonseca)

quarta-feira, setembro 14, 2005

Estudos

O estado paga milhões a escritórios de advogados para fazerem estudos (por vezes, apenas "estudos prévios"...) em áreas em que não são especialistas. Por outro lado, quando há estudos de especialistas, que assim empenham a sua credibilidade científica, as decisões políticas ignoram esses estudos, e seguem critérios demagógicos. Como evitar que isto aconteça?

Os professores andam com a casa às costas, e têm-nas... largas.

1. Num dia, os professores portugueses são os mais bem pagos da Europa. Noutro, estão em décimo sétimo lugar entre os países da OCDE. Uma das duas afirmações não pode ser verdadeira, não é?

2. E se, com os mesmos professores, estes estivessem mais horas nas escolas, diminuindo o número de alunos por turma? Se houvesse locais nas escolas para os professores trabalharem, fora das aulas? Não haveria menos abandono escolar?

domingo, setembro 11, 2005

Yo no digo esta canción
sino a quien comigo va.


Romance del Conde Arnaldos

*

Nocturno a duas vozes

—Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

—Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.

—Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

—Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.

—Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.

—Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

—Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.


(Eugénio de Andrade)

sexta-feira, setembro 09, 2005

O tocador de flauta


(Pablo Picasso)

A manhã

A manhã estática parada
Entre o Tejo azul e a Torre branca
Que branca e barroca sobe das águas
Manhã acesa de silêncio e louvor
Na breve primavera violenta
Assim a minha vida que era calma
De repente se tornou ânsia e saudade
Mas a brisa da varanda é doce e suave
Um pássaro canta porque alguém regou.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quinta-feira, setembro 08, 2005


(Pablo Picasso)

Sigmóide?

Desenvolvimento humano

No Relatório da ONU sobre o Desenvolvimento Humano, divulgado ontem, aparecem, nas páginas 219 e 220, os 57 estados considerados como tendo um elevado desenvolvimento humano. A última coluna da tabela dá a diferença entre as posições no ranking do PIB per capita e no ranking do índice de desenvolvimento humano. Uma questão de políticas.

Com diferenças com módulo igual ou superior a 10, surgem:

- com políticas mais eficazes no que ao desenvolvimento humano diz respeito:

Suécia (14)
Argentina (12)
Polónia (12)
Chile (17)
Uruguai (16)
Costa Rica (10)
Cuba (40)
Tonga (17)
Bulgária (10)
Panamá (17)

- com políticas menos eficazes no que ao desenvolvimento humano diz respeito:
Qatar (-13)
Emirados Árabes Unidos (-18)
Kuwait (-11)
Bahamas (-13)

Comentários?

Concursos de televisão

Mais misteriosa do que a razão pela qual alguém se sujeita a ver as suas limitações exploradas num concurso de televisão, só mesmo aquela que leva as pessoas a expor a sua imensa ignorância frente a milhões de pessoas.

quarta-feira, setembro 07, 2005

True colors?

Num quadro apresentado na internet, duvidem das cores. Por exemplo, numa obra de Turner, quais são as verdadeiras: estas ou estas?

(Egon Schiele)

Remédios

Apesar de o coronel Aureliano Buendía continuar a acreditar e a repetir que Remédios, a bela, era, de facto, o ser mais lúcido que jamais conhecera e que o demonstrava a todo o momento com a sua assombrosa habilidade para fazer pouco de toda a gente, abandonaram-na ao deus-dará. Remédios, a bela, ficou a vaguear pelo deserto da solidão, sem cruzes às costas, amadurecendo nos seus sonhos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem recordações, até uma tarde de Março em que Fernanda quis dobrar no jardim os seus lençóis de barbante e pediu a ajuda das mulheres da casa. Mal tinham começado quando Amaranta reparou que Remédios, a bela, estava transparente, com uma palidez intensa.

—Sentes-te mal?—perguntou-lhe.

Remédios, a bela, que segurava o lençol pela outra ponta, fez um sorriso magoado.

—Pelo contrário—disse—, nunca me senti tão bem.

Palavras não eram ditas e Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancou os lençóis das mãos e desdobrou-os em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas dos seus saiotes e tentou agarrar-se ao lençol para não cair, no momento em que Remédios, a bela, começava a elevar-se. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve a serenidade para identificar a natureza daquele vento irreparável e deixou os lençóis à mercê da luz ao ver Remédios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante adejo dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias, e passavam com ela através do ar onde acabavam as quatro da tarde e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde não podiam alcançá-la nem os mais altos pássaros da memória.


(Gabriel García Márquez, in «Cem Anos de Solidão», traduzido por Margarida Santiago)

domingo, setembro 04, 2005

Dúvida

Qual será a sensação de carregar no botão "Delete This Blog"?

Blue nude


(Pablo Picasso)

As Vinhas da Ira

O pequeno regressou ao seu canto; trouxe um cobertor sujo e estendeu-o à mãe.

—Muito obrigada—disse ela.—O que é que aquele senhor tem?

O pequeno respondeu na mesma voz rouca e monótona:

—Primeiro, esteve doente; agora, está a morrer de fome.

—O quê?!

—Está a morrer de fome. Adoeceu na colheita do algodão e há seis dias que não come nada.

A mãe foi até ao canto e debruçou-se sobre o homem, a olhá-lo. Devia ter uns cinquenta anos. Possuia um rosto barbudo e descarnado, e os olhos, muito abertos, fixavam o nada. O rapaz veio postar-se ao lado da mãe.

—Ele é teu pai?—perguntou ela.

—É, sim. Ele dizia que não tinha fome, ou que já tinha comido. Dava-me a comida toda. Agora, está tão fraco que nem se pode mexer.

A chuva amainara outra vez e tamborilava brandamente no tecto do celeiro. O homem escanzelado moveu os lábios. A mãe ajoelhou-se ao lado dele e encostou o ouvido à boca do homem, cujos lábios se tornaram a mover.

—Bem—disse a mãe.—Esteja sossegado. Tudo se arranja. É só esperar que eu tire a roupa molhada à minha filha.

A mãe voltou para junto de de Rosa de Sharon.

—Trata de te despir, anda!

Estendeu o cobertor, fazendo dele uma cortina, para a esconder dos olhos dos outros. E, quando Rosasharn ficou nua, a mãe enrolou-a no cobertor.

O pequeno estava agora de novo ao lado da mãe, explicando:

—Eu não sabia de nada. Ele dizia sempre que já tinha comido ou então que não tinha fome. A noite passada, quebrei a vidraça de uma janela e roubei um pão. Obriguei-o a comer, mas vomitou tudo e ficou ainda mais fraco. Devia comer sopa ou tomar leite. A senhora tem algum dinheiro para comprar leite?

A mãe respondeu, suavemente:

—Chiu! Não te apoquentes. Tudo se há-de arranjar.

De repente, o pequeno deu um grito:

—Está a morrer! Está a morrer, sério! Ele vai morrer de fome. Vai, vai!

—Chiu!—fez a mãe.

Lançou um olhar ao pai e ao tio John, que estavam parados, diante do doente, sem saber o que haviam de fazer. Olhou para Rosa de Sharon, bem enrolada no cobertor. Os seus olhos fugiram dos da filha e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo nas respectivas almas. A respiração da rapariga tornara-se curta e agitada.

—Sim—disse.

A mãe sorriu.

—Eu sabia. Eu sabia que tu eras capaz de o fazer.—Olhou para as mãos apertadas uma na outra, descansando no regaço.

Rosa de Sharon disse baixinho:

—Vocês são capazes de sair todos?

A chuva batia ao de leve no telhado.

A mãe inclinou-se para a filha e, com a palma da mão, afastou as madeixas revoltas que lhe caíam para a testa e deu-lhe um beijo na fronte. A mãe ergueu-se rapidamente:

—Vamos, minha gente, vão para o alpendre das ferramentas.—gritou ela. Vão-se embora, andem!

Pô-los fora da porta. Por fim, levando o rapazito pela mão, saiu também, fechando a porta, que chiou atrás de si.

Por um momento, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no celeiro ressoante de murmúrios. Depois, ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto devastado do desconhecido, de olhos arregalados e cheios de temor. Então, vagarosamente, deitou-se ao lado dele. O homem abanou debilmente a cabeça de um lado para o outro. Rosa de Sharon afastou um dos lados do cobertor, deixando o seio a descoberto.

—Tem de ser—disse, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça para si.—Ora vá! Então!

Apoiou-lhe a cabeça com a mão, e os seus dedos afagaram-lhe suavemente os cabelos. Ergueu os olhos, e deixou-os errar pelo barracão, enquanto os lábios se lhe arqueavam num misterioso sorriso.


(John Steinbeck, in «As Vinhas da Ira», traduzido por Virgínia Motta, Livros do Brasil)

Nova Orleães

Imagino-me ali, sentada no passeio de uma rua coberta de escombros, com a cor de pele "errada" (embora a dos meus antepassados), sem poupança no banco, sem casa, sem carro para sair dali, sem comida, sem água, com a roupa de há seis dias sem tomar banho, uma multidão à volta, mortos encontrados pelos cantos. Não, não me apetece rezar.

sábado, setembro 03, 2005

Outro

Summer night—
even the stars
are whispering to each other.


(Kobayashi Issa, traduzido por Robert Hass)

Kobayashi Issa

Kinu-ginu ya                            Till your clothes can barely
   Kasumu made miru             be seen in the distance, my love,
      Imo ga ie.                                       I keep looking back at your house.

(tradução de Robert Hass)

sexta-feira, setembro 02, 2005

Broa de milho


(ensaio)

Obrigatória num alforge de pastora.

Sinais

Numa situação de catástrofe, a primeira preocupação das autoridades norte-americanas é com a propriedade, não com a sobrevivência dos seus concidadãos.

Lady Lazarus

I have done it again.
One year in every ten
I manage it—

A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot

A paperweight,
My face a featureless, fine
Jew linen.

Peel off the napkin
0 my enemy.
Do I terrify?—

The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.

What a million filaments.
The peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot
The big strip tease.
Gentlemen, ladies

These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.

The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut

As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.

Dying
Is an art, like everything else,
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.

It's easy enough to do it in a cell.
It's easy enough to do it and stay put.
It's the theatrical

Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:

'A miracle!'
That knocks me out.
There is a charge

For the eyeing of my scars, there is a charge
For the hearing of my heart—
It really goes.

And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood

Or a piece of my hair or my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.

I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby

That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.

Ash, ash—
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there—

A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.

Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.

Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.


(Sylvia Plath)