terça-feira, maio 31, 2005


(Vincent van Gogh)

Subterrâneo

Às vezes perguntava-se se viveria num mundo subterrâneo como o encontrado no futuro pela personagem de H. G. Wells em "A Máquina do Tempo". Parecia-lhe haver um sol de que conhecia a existência mas que, lamentavelmente, não podia desfrutar. Então, lembrava-se do globo terrestre da Mafaldinha, de Quino, e de como havia gente (pelo menos, uma menina rabina...) que vivia, aparentemente, "de pernas para o ar". Talvez houvesse, portanto, algum valor comparável ao do mundo solar e fácil e simples do outro lado, aí, desse lado mais escuro do mundo.

segunda-feira, maio 30, 2005

La Marseillaise

1er COUPLET
Allons enfants de la Patrie,
Le jour de gloire est arrivé!
Contre nous de la tyrannie,
L'étendard sanglant est levé, (bis)
Entendez-vous dans les campagnes
Mugir ces féroces soldats?
Ils viennent jusque dans vos bras
Egorger vos fils et vos compagnes!

REFRAIN
Aux armes, citoyens,
Formez vos bataillons,
Marchons, marchons!
Qu'un sang impur
Abreuve nos sillons!

2er COUPLET
Que veut cette horde d'esclaves,
De traîtres, de rois conjurés?
Pour qui ces ignobles entraves,
Ces fers dès longtemps préparés? (bis)
Français, pour nous, ah! quel outrage
Quels transports il doit exciter!
C'est nous qu'on ose méditer
De rendre à l'antique esclavage!

REFRAIN

3er COUPLET
Quoi! des cohortes étrangères
Feraient la loi dans nos foyers!
Quoi! ces phalanges mercenaires
Terrasseraient nos fiers guerriers! (bis)
Grand Dieu! par des mains enchaînées
Nos fronts sous le joug se ploieraient
De vils despotes deviendraient
Les maîtres de nos destinées!

REFRAIN

4er COUPLET
Tremblez, tyrans et vous perfides
L'opprobre de tous les partis,
Tremblez! vos projets parricides
Vont enfin recevoir leurs prix! (bis)
Tout est soldat pour vous combattre,
S'ils tombent, nos jeunes héros,
La terre en produit de nouveaux,
Contre vous tout prêts à se battre!

REFRAIN

5er COUPLET
Français, en guerriers magnanimes,
Portez ou retenez vos coups!
Epargnez ces tristes victimes,
A regret s'armant contre nous. (bis)
Mais ces despotes sanguinaires,
Mais ces complices de Bouillé,
Tous ces tigres qui, sans pitié,
Déchirent le sein de leur mère!

REFRAIN

6er COUPLET
Amour sacré de la Patrie,
Conduis, soutiens nos bras vengeurs.
Liberté, Liberté chérie,
Combats avec tes défenseurs! (bis)
Sous nos drapeaux que la victoire
Accoure à tes mâles accents,
Que tes ennemis expirants
Voient ton triomphe et notre gloire!

REFRAIN

7er COUPLET
Nous entrerons dans la carrière
Quand nos aînés n'y seront plus,
Nous y trouverons leur poussière
Et la trace de leurs vertus. (bis)
Bien moins jaloux de leur survivre
Que de partager leur cercueil,
Nous aurons le sublime orgueil
De les venger ou de les suivre.

(Claude Joseph Rouget de Lisle, 1792 )

domingo, maio 29, 2005

Choosing to Think of It

Today, ten thousand people will die
and their small replacements will bring joy
and this will make sense to someone
removed from any sense of loss.
I, too, will die a little and carry on,
doing some paperwork, driving myself
home. The sky is simply overcast,
nothing is any less than it was
yesterday or the day before. In short,
there's no reason or every reason
why I'm choosing to think of this now.
The short-lived holiness
true lovers know, making them unaccountable
except to spirit and themselves--suddenly
I want to be that insufferable and selfish,
that sharpened and tuned.
I'm going to think of what it means
to be an animal crossing a highway,
to be a human without a useful prayer
setting off on one of those journeys
we humans take. I don't expect anything
to change. I just want to be filled up
a little more with what exists,
tipped toward the laughter which understands
I'm nothing and all there is.
By evening, the promised storm
will arrive. A few in small boats
will be taken by surprise.
There will be survivors, and even they will die.


(Stephen Dunn)

sexta-feira, maio 27, 2005

Melro


(World Wild Web - Aves)

Pedido de ajuda

Há por aí alguém que tenha gravações de cantos de aves portuguesas em formato digital, ou conheça algum sítio da rede onde as possa encontrar, ou saiba de algum CD com gravações do género? Agradecem-se quaisquer informações.

Versões

Nos poemas como nos quadros, encontram-se várias versões de reproduções a partir de um original. Como decidir quais as cores correctas, se mesmo o original é diferente a uma luz diferente? Como saber qual a versão que um autor preferiria se escrevesse hoje?

Falta de qualidade de vida

É, por exemplo, não ter tempo para ler. Ler aquilo de que se gosta, bem entendido.

À reguada*

A memória de um professor da escola primário mais severo pode atravessar gerações numa família... Pergunto-me muitas vezes o que pensaria essa personagem que trago comigo ao ver a proliferação da palavra inexistente na língua portuguesa "á"...

* Nota: Claro que esta pastora não defende as reguadas! (E acha que deve haver explicações psicanalítica para a sua defesa...)

terça-feira, maio 24, 2005

Registo

Sentou-se ao meu lado uma cega. Depois, uma aleijada. Mais tarde, vi um condutor de uma mota estirado no asfalto de uma via rápida.

Canção

Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.

Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.

Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.

Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.

(Eugénio de Andrade)

(Jean-François Millet)

segunda-feira, maio 23, 2005

Ave-Marias

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E alguns, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

(Cesário Verde)

sábado, maio 21, 2005

De, do, da, dos, das

São palavras que, por uma misteriosa razão, desapareceram das legendas dos noticiários televisivos. Lemos, desde então, coisas como:

Fulano X
Advogado Y (na segunda linha)

Sicrano Z
Presidente Câmara W

Presidente Guiné-Bissau


Por onde andará o bom português no serviço público televisivo?

domingo, maio 15, 2005

Cucurrucucú Paloma


Dicen que por las noches
no más se le iba en puro llorar;
dicen que no comía,
no más se le iba en puro tomar.
Juran que el mismo cielo
se estremecía al oír su llanto,
cómo sufrió por ella,
y hasta en su muerte la fue llamando:
Ay, ay, ay, ay, ay cantaba,
ay, ay, ay, ay, ay gemía,
Ay, ay, ay, ay, ay cantaba,
de pasión mortal moría.
Que una paloma triste
muy de mañana le va a cantar
a la casita sola
con sus puertitas de par en par;
juran que esa paloma
no es otra cosa más que su alma,
que todavía espera
a que regrese la desdichada.
Cucurrucucú paloma, cucurrucucú no llores.
Las piedras jamás, paloma,
¿qué van a saber de amores?
Cucurrucucú, cucurrucucú,
cucurrucucú, cucurrucucú,
cucurrucucú, paloma, ya no le llores


(Caetano Veloso)

quarta-feira, maio 11, 2005


(Pablo Picasso)

Blowin' in the wind

How many roads must a man walk down,
Before you call him a man?
Yes and how many seas must a white dove sail,
Before she sleeps in the sand?

Yes and how many times must cannonballs fly,
Before they're forever banned?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind

How many times must a man look up,
Before he can see the sky?
How many ears must one man have,
Before he can hear people cry?

How many deaths will it take till he knows
That too many people have died?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind

How many years can a mountain exist,
Before it's washed to the sea
How many years can some people exist,
Before they're allowed to be free?

How many times can a man turn his head,
Pretend that he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind.


(Bob Dylan)

terça-feira, maio 10, 2005

Interrogação

O que é preciso para que um ser humano o seja integralmente?

Pergunta/sondagem

O que fariam os leitores do Abrigo de Pastora se tivessem uma máquina do tempo que os levasse até 1939, até uma sala fechada com Adolf Hitler, e levando uma arma e instrumentos de tortura, e podendo voltar para a actualidade a seguir?

segunda-feira, maio 09, 2005


(Jean-François Millet)

O Último Sortilégio

Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.

Outrora meu condão fadava as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.

Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.

Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus,
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.

E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
Inevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

Tu , porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti
Se já não podeis dar-me esta beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi -
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anónima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!

(Fernando Pessoa)

domingo, maio 08, 2005

DUDH

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é um dos maiores feitos da Humanidade.

Foi escrita num momento muito particular da História, o período do pós-2.ª Guerra Mundial, em que tinham morrido milhões de seres humanos, e que tinha terminado com a utilização de uma arma de destruição em massa. Foi, como não podia deixar de ser, uma declaração esboçada pelos vencedores da guerra, embora também assinada pelos restantes membros da ONU.

Por que será então que, justamente entre esses países vencedores da guerra, se reconhecem as maiores surpresas nas violações de direitos humanos, a começar pelo desrespeito pela vida humana, o direito primordial?

(Isaac Levitan)

O amor em visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

(Herberto Helder)

sábado, maio 07, 2005

Raptos no Iraque

No Iraque, um grupo rapta um cidadão de um determinado país. Pede um resgate. Será um grupo político ou um bando de malfeitores? Deve-se pagar e salvar uma vida humana, ou recusar a chantagem, desencentivando raptos futuros?

terça-feira, maio 03, 2005


(Edgar Degas)

Solidão

Por que haverá, actualmente, tamanho desprezo pela solidão e pelo silêncio do recolhimento? Por que terá tudo de ser frenético, como os carros numa via rápida? De que se foge?

Amizade (II)

1. O que é a amizade? Não estará mais romantizada do que o próprio amor?

2. Defendemos um amigo de forma irracional, ou isso só acontece no amor?

3. Somos, ou não, preferencialmente amigos de quem é mais parecido connosco? Se sim, isso não é uma forma de egocentrismo?

4. Somos, ou não, mais amigos de quem é nosso amigo? Se sim, isso não é uma forma de discriminação?

5. Até que ponto somos amigos de quem é útil sermos amigos?

6. Até que ponto somos amigos de quem nos protege da solidão?

Interrogação

Darwinianamente ou freudianamente, o que me fará ficar contente com a felicidade de quem gosto?

A.

Audrey Hepburn

To the Muses

Whether on Ida's shady brow,
Or in the chambers of the East,
The chambers of the sun, that now
From ancient melody have ceas'd;

Whether in Heav'n ye wander fair,
Or the green corners of the earth,
Or the blue regions of the air,
Where the melodious winds have birth;

Whether on crystal rocks ye rove,
Beneath the bosom of the sea
Wand'ring in many a coral grove,
Fair Nine, forsaking Poetry!

How have you left the ancient love
That bards of old enjoy'd in you!
The languid strings do scarcely move!
The sound is forc'd, the notes are few!


(William Blake)

segunda-feira, maio 02, 2005

Referendo sobre o aborto

O Presidente da República decidiu não convocar o referendo sobre o aborto, por julgar não estarem reunidas as condições para uma participação significativas da população. Resta saber se, mantendo-se essa falta de condições, ficaremos eternamente vinculados à decisão tomada por uma percentagem não vinculativa de portugueses...

(Frederick Carl Frieseke)

Maio, maduro Maio

Maio maduro Maio
quem te pintou
quem te quebrou o encanto
nunca te amou
raiava o Sol já no Sul
e uma falua vinha
lá de Istambul

Sempre depois da sesta
chamando as flores
era o dia da festa
Maio de amores
era o dia de cantar
e uma falua andava
ao longe a varar

Maio com meu amigo
quem dera já
sempre depois do trigo
se cantará
qu'importa a fúria do mar
que a voz não te esmoreça
vamos lutar

Numa rua comprida
el-rei pastor
vende o soro da vida
que mata a dor
venham ver, Maio nasceu
que a voz não te esmoreça
a turba rompeu

(Zeca Afonso)

domingo, maio 01, 2005

Toilette matinal


(Jean-François Millet)

Às mães e aos trabalhadores.

Que força é essa

Vi-te a trabalhar o dia inteiro
construir as cidades pr'ós outros
carregar pedras, desperdiçar
muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro

Que força é essa
Que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo

Não me digas que não me compr'endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr'endes

(Que força...)

(Vi-te a trabalhar...)

Que força é essa
Que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo

(Sérgio Godinho)