sábado, dezembro 10, 2005

Mulher a ler um romance


(Vincent van Gogh)

Se eu tivesse voz

Se eu tivesse voz, pediria aos editores para publicarem mais livros de bolso. É que não dá jeito nenhum carregar tijolos de um quilo para ler o pão nosso de cada dia espiritual, enquanto se espera pelos transportes públicos. Mesmo quem leva uma pasta, leva-a, provavelmente, já suficientemente recheada.

Que seria dos pobres e cansados sem os livros de bolso da Europa-América ou da Penguin, da Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, das colecções do Público e da Visão e até, um pouco mais distante, da RTP?

Se eu tivesse voz, pediria apenas mais e melhor.

Elitismo?



Seria pedir muito querer séries de divulgação de grande fôlego em horário nobre na televisão pública? E, enquanto isso não acontece, querer uma selecção mais restritiva dos concorrentes aos concursos desse horário nobre, com melhores prémios - uma espécie de superliga dos concursos?

Repararam?

Depois de assistir às prestações dos cinco candidatos presidenciais principais em debates televisivos, notei que há um aspecto em que o candidato Mário Soares bate os adversários aos pontos: a voz. E mesmo quando começou a tossir, tinha na manga um qualquer rebuçado-maravilha que logo aliviou a maleita...

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Haikais de Boticas

O anel do monte
feito de nuvens.
Chove.

A moto-serra ruge,
longe. Perto, cai
uma folha.

Delicada estrada
para pequenos pés de pássaro.
Fios.

Solitária e cristalina
água. Leva-me
para a terra que me pertence.

(Abrupto)

[daqui]

Art, truth and politics

Discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura de 2005, por Harold Pinter. A ler!

sábado, dezembro 03, 2005

DUDH - Art. 3º

Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Sinais

Há dias, o coliseu de Roma esteve iluminado à noite por causa da pena de morte. Há dias também, a execução de um condenado à pena capital, nos Estados Unidos, foi evitada, in extremis. Por cá, apesar do consenso entre forças políticas sobre o assunto, ignoram-se estas execuções estatais bárbaras que ocorrem num país pretensamente civilizado.

Todas as cartas de amor são ridículas

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


(Álvaro de Campos)

Duas camponesas cavando num campo com neve


(Vincent van Gogh)

Para que serve este blog anónimo?

1. Não serve para a denúncia nem para a maledicência. Isso seria cobardia.

2. Não serve como diário. Também aqui se acredita que o que se come ao pequeno almoço não interessa nada ao público. Também não é um "diário sem factos". Os estados de alma são demasiado pessoais.

3. Não serve como depositário de poesia lamechas. Ou, pelo menos, tenta-se que não sirva.

4. Não serve para ter audiências e para tentar mudar o mundo. Por aqui não há ilusões dessas. Quem pode nos blogs (sem fotografias "sugestivas") é quem pode fora dos blogs.

5. Serve para uso pessoal. Para coleccionar pequeninos tesouros. Se alguém quiser vê-los e gostar, tanto melhor.

6. Serve para registar acontecimentos importantes (como a saída do último soldado da Faixa de Gaza ou o início do questionamento do estalinismo pelo líder do PCP). Serve também para ignorar o que não interessa na vidinha pública deste país pequenino.

7. Serve para o que a imaginação e o bom senso permitirem.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

251. Fragmentos de uma autobiografia

«O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer buscava uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei - por que me havia eu de curar disso? E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica, ou mais [], do que a saúde? A ser a saúde preferível, por que era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era, por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?

Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social - talhei dessa matéria de [] a estátua pesada da minha existência.

Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo distante e errado, prolongar mais dentro de mim. Esforcei-me por que todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.

Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos quer para as solicitações [].

Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida, []. Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.»

(Bernardo Soares)