Terminei há dias a leitura de um terceiro livro em pouco tempo de estrangeiros sobre as suas impressões no seu novo país. Depois de um retrato do Reino Unido por um português ("Bifes mal passados", de João Magueijo) e outro da Suíça por um inglês ("Swiss Watching", de Diccon Bewes), ambos muito interessantes e hilariantes, o humor inglês infiltrou-se num retrato de Portugal visto por uma inglesa ("Como não morrer de fome em Portugal", de Lucy Pepper).
Todos estes livros sofrem de um problema básico, que é serem demasiado pessoais, e não se conseguir distinguir o que é geral ou, pelo menos, comum, da reação de um nacional de um país A num outro país B.
No entanto, o livro de Lucy Pepper não deixa de ter mérito, porque é um caso raro de alguém que se integrou bastante na vida portuguesa, e que levanta questões que não podem deixar de nos interpelar.
Por exemplo, tal como há o preconceito internacional de que os ingleses cozinham mal, há entre os portugueses o preconceito de que a nossa cozinha não está nada mal. É apetitosa, ainda que simples. (Isso vê-se naqueles programas de televisão pimba ao fim de semana, em que o cozinheiro mais popular explica que o segredo é "só pôr sal" na carne que vai grelhar, para que se distinga bem o sabor da carne. Simplicidade, sim. Elaboração e sofisticação, confessamente nenhuma)
Quando temos a experiência de tentar mostrar as mil maneiras de comer bacalhau a algum amigo estrangeiro é que nos apercebemos que o bacalhau tem um sabor intenso e que nos levou décadas de habituação até que o apreciássemos devidamente. E que os doces portugueses têm todos imenso açúcar e, sim, ovos.
Mas a sério, Lucy Pepper, as sopas portuguesas mais saborosas são o caldo verde, a sopa de feijão e a canja, além das outras de que fala, com caldo cor de laranja e entulho a boiar, que costumam chamar-se sopas de legumes. Como denegrir assim a sopa portuguesa, ainda por cima enquanto se fazem elogios à horrível bata das donas de casa mais populares?
Todo o livro é inverosímil na parte em que se diz mal da sogra e da prestimosa vizinha, que faziam sopas para uma semana para as filhas da moça inglesa, que tinha como alternativa "vegetais cozidos"! (Cozidos, não estufados nem assados nem outra alternativa saborosa... Será que nem sequer aprendeu a fazer um refogadinho? Pobres crianças.) Só acreditei que a autora existia mesmo quando encontrei na internet fotografias mais focadas do que aquela com que costuma apresentar-se e, claro, depois da descrição do seu parto em Portugal. Mas se existe, como é que escreveu tudo aquilo? Divorciou-se e quer vingar-se do marido?
A descrição do sistema de saúde em Portugal - monstruoso - peca por defeito. Devia ser denunciado internacionalmente, todos os dias, como violação de elementares direitos humanos.
O horror pelo urbanismo português, em particular na região metropolitana de Lisboa, só pode ser compreendido. (Mas, lá está, depois da revolução, permitiu a muitas famílias migrantes um teto seguro para morar.)
Uma coisa que me impressionou foi a dificuldade da autora em ir à praia. Claro que andar de carro não ajuda nada a ir para as praias da Costa da Caparica. Ir de transportes públicos é muito mais simples, a partir do Areeiro, Campo Pequeno, Praça de Espanha ou Alcântara, e com a possibilidade de apanhar os pequenos comboios ao longo das praias. (Estes são caros para bolsas portuguesas, mas haja estrangeiros que desfrutem deles.) Já o passeio nas dunas, por favor. É ótimo. Para confrontar com a descrição hilariante do João Magueijo sobre as lamacentas praias inglesas.
Sobre as classes sociais sem mobilidade, claro que os ingleses são especialistas nesse horror, com uma monarquia no século XXI. Àparte as famílias ricas da linha de Cascais, com fortunas do tempo da ditadura (ou algo que o valha), a revolução permitiu a mobilidade social por via da educação. O capitalismo ultra-liberal cristalizou entretanto a estrutura que se formou, ampliando as desigualdades... também por via da educação, com colégios privados que permitem as notas altas para entrar nos melhores cursos superiores, e com as universidades privadas de vão de escada, inauguradas pelo cavaquismo.
Em conclusão, foi uma leitura que valeu a pena e que se recomenda.
Sem comentários:
Enviar um comentário