terça-feira, agosto 21, 2007

leituras vermelhas de verão

Maria do Bote, que não pregara olho desde que o marido se levantara, receosa de chegar tarde aos teares fechou a porta aos filhos tamaninhos e saiu com Deolinda. «Se tivesse o despertador...» Voltou à ideia grata, a mesma de sempre, quando o marido saía com estrelas, ou o corpo moído lhe pedia repouso. «Mas desta vez não ficaria na rua, a rondar a montra do Costa Ourives...»

Engolido na taberna o trago de aguardente, os descarregadores vieram-se chegando para o cais. Traziam ainda os olhos saudosos da cama; das bocas, silenciosas, saíam-lhes baforadas de álcool; e as sacas do trabalho pendiam-lhes das mãos. Pareciam cansados. Mas, quando a sereia fez a última chamada, distenderam logo os músculos, agigantaram-se. Ai de quem não tivesse passo ligeiro sob a saca de cem quilos! Que o vaivém não parava - não podia parar - do celeiro para os barcos, dos barcos para o celeiro.

O Boa Sorte foi dos primeiros que meteu carga. Os homens de terra e mar iam fazendo prodígios de equilíbrio sobre a prancha e aliviavam as costas na amurada.

- Olá, Gineto...

Saudavam o filho do Manuel do Bote, que no fundo do barco se esfalfava na arrumação do trigo.

- Já não há uvas?...

Os homens de terra e mar chalaceavam e riam; ainda tinham risos e chalaças. Só o novo camarada do Boa Sorte perdera tudo, até as forças. Ele, que era um homem valente como os cow-boys, não mexia uma saca tombada. Arquejante e suado, mordia os beiços, mas não chorava.

- Aí, seu teso! - comentava o pai do Malesso.

- Custa mais qu'assubir às árvores, não?...

As falas dos homens é que o retinham ali, mais do que as vistas do pai. Duas vezes esboçara a fuga - e desistira. Fincava-se no orgulho de homem perante homens. E mordia os beiços. E a caverna do bote não tinha fundo...

- É com'a pança do patrão - comentou alguém.

Agora, as chalaças rareavam, e as forças também. Dos peitos oprimidos, já os bafos não tresandavam a álcool, porque o suor escorria do cais.

- Vamos co'isso! É andar...

Mas os homens de terra e mar eram homens como os mais.

- Leva tempo, o malvado...

E, como aquele, muitos outros esperavam, hiantes, a carga preciosa.



Soeiro Pereira Gomes, "Esteiros"

*

Não será a grande Literatura, este neo-realismo português; não temos um Steinbeck, mas, ainda assim, nas tiradas a puxar ao sentimento, não se pode dizer que é só ficção. Quase todos os analfabetos portugueses são gente a quem foi roubada a infância.

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