terça-feira, setembro 01, 2009

"Com a cabeça metida no travesseiro"

Com a notícia de uma mudança de ministério, Paris tinha mudado. Todos se sentiam alegres; gente passeava, e lampiões em todos os andares davam uma tal claridade que parecia estar-se em pleno dia. Os soldados regressavam lentamente aos quartéis, estafados, de ar triste. Saudavam-nos, gritando: «Viva a Infantaria!» Eles continuavam sem responder. Na guarda nacional, pelo contrário, os oficiais, rubros de entusiasmo, brandiam o sabre, vociferando: «Viva a reforma!» e esta frase fazia sempre rir os dois amantes. Frédéric dizia gracejos, estava muito alegre.

Pela rua Duphot, chegaram aos bulevares. Lanternas venezianas, penduradas nas casas, formavam guirlandas de luzes. Um formigueiro confuso agitava-se na rua; no meio desta sombra, a espaços, brilhavam alvuras de baionetas. Erguia-se um grande sussuro de vozes. A multidão era demasiadamente compacta, o regresso directo impossível; e iam a entrar na rua Caumartin quando, de súbito, rebentou atrás deles um ruído, semelhante ao estalar de uma imensa peça de seda a ser rasgada. Era a fuzilaria do bulevar de Capucines.

- Ah! Alguns burgueses a menos, - disse Frédéric tranquilamente, porque há momentos em que o homem menos cruel se acha tão desligado dos outros que veria perecer o género humano sem um batimento de coração.

A Marechala, aferrada ao braço dele, batia os dentes. Declarou-se incapaz de dar mais vinte passos. Então, por um requinte de ódio, para melhor ultrajar na sua alma a Senhora Arnoux, levou-a até à residência da rua Tronchet, ao apartamento preparado para a outra.

As flores não tinham murchado. A guipura estava em cima da cama. Tirou do armário as pequenas pantufas. Rosanette achou estas atenções muito delicadas.

Por volta da uma hora, foi acordada por rufos longínquos de tambor; e viu que ele estava a soluçar, com a cabeça metida no travesseiro.

- O que tens tu, amor querido?

- É o excesso de felicidade - disse Frédéric. - Havia já muito tempo que te desejava!


(Gustave Flaubert, "A Educação Sentimental", Relógio d'Água, tradução de João Costa)

(Vincent van Gogh)