segunda-feira, julho 28, 2008

Quando se aponta o dedo à melanina, lembro-me muitas vezes do divino baiano (preto?).

Acordo

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«Depois de casado, eu chegava em casa alterado tarde da noite e a Vanda não se conformava, esquentava minha sopa amaldiçoando o Álvaro. Eu deixava por isso mesmo, não tinha como lhe explicar que, encerrado o expediente, me demorava sozinho na agência por conta própria, em leitura obsessiva. Naquelas horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele. Anoitecia, e eu tornava a ler os fraseados que sabia de cor, depois repetia em voz alta o nome do tal sujeito, e balançava as pernas e ria à beça no sofá, eu me sentia tendo um caso com mulher alheia. E se me envaideciam os fraseados, bem maior era a vaidade de ser um criador discreto. Não se tratava de orgulho ou soberba, sentimentos naturalmente silenciosos, mas de vaidade mesmo, com desejo de jactância e exibicionismo, o que muito valorizava minha discrição. E novos artigos me eram solicitados, e publicados nos jornais com chamada de capa, e elogiados por leitores no dia seguinte, e eu agüentava firme. Com isso a vaidade em mim se acumulava, me tornava forte e bonito, e me levava a brigar com a telefonista e a chamar o office boy de burro, e me arruinava o casamento, porque eu chegava em casa e já gritava com a Vanda, e ela me olhava arregalada, não conhecia os motivos de eu estar assim tão vaidoso. Eu tinha de fato um mau temperamento quando veio dar na agência o convite para o encontro anual de autores anônimos, a se realizar em Melbourne. Era uma correspondência postada em Cleveland, sem outro indício de remetente, tendo como destinatário Cohna & Casta Agency, num envelope preto que o Álvaro abriu e me passou achando graça. Joguei a carta na gaveta das coisas desimportantes, mesmo porque não trazia maiores informações além do nome de um hotel e uma data que sem querer registei, era o dia de anos da Vanda. Meses mais tarde, chegando em casa às duas da manhã, encontrei minha mulher sentada na cama com cara de sono, pois acordava cedo desde que virara apresentadora de telejornal. Quando me perguntou se eu ainda ia querer a sopa, num impulso lhe respondi que na televisão ela parecia uma papagaia, porque lia as notícias sem saber do que falava. Ela calçou os chinelos, vestiu um casaco de crochê por cima do pijama, foi devagar para a cozinha, ligou o microondas, e sem elevar a voz disse que pior era eu, que escrevia um catatau de coisas para ninguém ler. Dispensei a sopa, abandonei o lar com a roupa do corpo e me ajeitei na agência, onde ficava namorando meus artigos até adormecer no sofá. Depois de noites dormindo ali, com umas sobras da raiva e dor nas costas, pensei em voltar para a Vanda em consideração ao seu aniversário, e foi quando me lembrei do convite na gaveta. O Álvaro não se opôs à minha viagem para a Austrália, até fez alguns comentários sobre globalização e coisa e tal. Eu tinha dinheiro suficiente, com mais de trinta anos nunca havia deixado o país, julguei que na pior das hipóteses esfriaria a cabeça dando a volta ao mundo de avião. Passei em casa para fazer a mala, a Vanda não estava, deixei-lhe um bilhete informando que partiria para o congresso mundial de escritores.»

(Chico Buarque, Budapeste)

segunda-feira, julho 21, 2008

Intocável



O que te salvará da pobreza, menina dalit? A democracia? A economia de mercado? A energia nuclear? Uma pretensa igualdade de oportunidades na escola?

sábado, julho 05, 2008

Registo

"Surpresa: os alunos já são bons a Matemática", por Carlos Fiolhais: "O ilusionismo está pois instalado ao mais alto nível do Estado, à semelhança do que acontece nos estados totalitários. A verdade sobre a educação está a ser oculta num estado democrático."

terça-feira, julho 01, 2008

"Does not the eternal sorrow of life consist in the fact that human beings cannot understand one another, that one person cannot enter into the internal state of another?"

(Ivan Pavlov)