terça-feira, janeiro 31, 2006

(a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cravada
no espelho. Ou ainda a fenda
da fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mundança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

(Herberto Helder)

Literacia informática em baixa

Duas luminárias da nossa praça não sabem inserir um colaborador num blog. Credo!

segunda-feira, janeiro 30, 2006

domingo, janeiro 29, 2006

Neva em Lisboa!

O termómetro marca -1ºC.

O pastor


(Amadeo de Souza Cardoso)

Pastores ao frio

A primeira ideia a que associo a pastorícia é a liberdade. Depois, a solidão. Só muito depois, a pastorais.

Mas a liberdade é a que a pobreza concede. A solidão é a de quem é obrigado a acotovelar-se à demais gente, neste país pequeno. E o sentimento é engolido pela pressa quotidiana.

Linda-a-Pastora

— «Linda pastorinha que fazeis aqui?»
— «Procuro o meu gado que por aí perdi.»
— «Tão gentil senhora a guardar o gado!»
— «Senhor, já nascemos para esse fado.»
— «Por estas montanhas em tão grande p'rigo!»
Diga-me, ó menina, se quer vir comigo.»
— «Um senhor tão guapo dar tão mau conselho
Querer que se perca o gado alheio!»
— «Não tenha esse medo que o gado se perca
Por aqui passarmos uma hora de sesta.»
— «Tal razão como essa não na ouvirei:
Já dirão meus amos que de mais tardei.»
— «Diga-lhes, menina, que se demorou
Co esta nuvem de água que tudo molhou.»
— «Falarei verdade, que mentir não sei:
À volta do gado eu me descuidei.»
— «Pastorinha escute, que oiço balar gado...»
— «Serão as ovelhas que me têm faltado.»
— «Eu lhas vou buscar já muito depressa,
Mas que me espadece por essa charneca.»
— «Ai como vai grave de meias de seda!
Olhe não as rompa por essa resteva.»
— «Meias e sapatos, tudo romperei
Só por lhe dar gosto, minha alma, meu bem.»
— «Ei-lo aqui vem: é todo o meu gado.»
— «Meu destino foi ser vosso criado.»
— «Senhor, vá-se embora, não me dê mais pena,
Que há-de vir meu amo trazer-me a merenda.»
— «Se vier seu amo, venha muito embora;
Diremos, menina, que cheguei agora.»
— «Senhor, vá-se, vá-se, não me dê tormento:
Já não quero vê-lo nem por pensamento.»
— «Pois adeus, ingrata da Linda-a-Pastora!
Fica-te, eu me vou pela serra fora.»
— «Venha cá, senhor, torne atrás correndo...
Que o amor é cego, já me está rendendo.»
Sentaram-se à sombra... tudo estava ardendo...
Quando elas não querem, então 'stão querendo.

(Romanceiro, Almeida Garrett)

sábado, janeiro 28, 2006


(Jonh William Waterhouse, A feiticeira)

Serranilha

A serra é alta, fria e nevosa;
vi venir serrana gentil, graciosa.

Vi venir serrana, gentil, graciosa;
cheguei-me per’ela com grã cortesia.

Cheguei-me per’ela de grã cortesia,
disse-lhe: senhora, quereis companhia?

Disse-lhe: senhora, quereis companhia?
Disse-me: escudeiro, segui vossa via.

(Gil Vicente)
(...) [Mário Soares] É quem é. Se enterrar depressa a frustração, verá que não perdeu qualquer influência na esquerda, no PS ou na política portuguesa. Avisou que não dormia bem com Cavaco na presidência. Não tardará que muita gente se lembre.
VPV, Público, 28.1.06

Será que ainda vamos ouvir falar de oposição à Presidência da República? De um "presidente-da-república-sombra"?

sexta-feira, janeiro 27, 2006


(Paul Gaugin, Espírito dos Mortos Vigiando, "Manao tupapau")

Em terras remotas, a presença dos mortos entre os vivos é permanente. Deixam-se-lhes porções de comida e bebida às refeições e têm poder para ditar a sorte dos vivos. Tudo isto acontece naturalmente, como se respira.

Interrogo-me sobre até que ponto aquilo que somos ou julgamos ser, individual e colectivamente, é dependente de pressupostos religiosos, mais ou menos conscientes. A nudez da rapariga do quarto de Gauguin, que é também a transparência da sua alma perante o espírito dos mortos, seria possível numa sociedade ocidental materialista e individualista? Se não, o que lhe equivale?

Para uma educação sentimental

B. Mesmo no Taiti... o intervalo que medeia entre um homem e uma mulher seria ultrapassado pelo que estivesse mais ardentemente enamorado. Se ambos ficam à espera, se ambos fogem, se andam a perseguir-se, a evitar-se, a atacar-se, é porque a paixão, desigual nos seus processos, não se empenha neles com a mesma força. Donde resulta que a volúpia se derrame, se consuma e se extinga por um lado, quando começa a acender-se pelo outro, acabando ambos reduzidos à tristeza. Tal é a imagem do que se passaria entre dois seres jovens, livres e perfeitamente inocentes. Mas, sempre que a mulher conheceu, por experiência ou educação, as consequências mais ou menos cruéis de um momento de doçura, o seu coração arreceia-se com a aproximação do homem. O coração do homem não se arreceia; comandam nele os sentidos e ele obedece. Os sentidos da mulher entram em explicações e ela tem receio de os escutar. Cabe ao homem distraí-la desse medo, inebriá-la e seduzi-la. O homem conserva todo o seu impulso natural face à mulher; o impulso natural da mulher perante o homem, na linguagem do geómetra, está na razão directa da paixão e inversa do temor; razão que se complica com um sem número de elementos que concorrem na sua quase totalidade para aumentar a pusilanimidade de um sexo e a duração da perseguição do outro. É uma espécie de táctica em que os recursos da defesa e os meios de ataque se dispuseram na primeira linha; consagrou-se a resistência da mulher; considera-se ignominiosa a violência do homem; uma violência que em Taiti não passa de leve ofensa torna-se nas nossas cidades um crime.

(Diderot, "Suplemento à viagem de Bougainville ou Diálogo entre A e B sobre o inconveniente de se atribuir valor moral a certos actos físicos que não têm moral nenhuma")


Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!), porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh!, venha... Oh!, venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!


(Bocage)

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Mulher a ler

Fascinação

Os sonhos mais lindos sonhei
De quimeras mil um castelo ergui
E no teu olhar
Tonto de emoção
Com sofreguidão
Mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
És fascinação, amor


(F. D. Marchetti e M. de Feraudy, versão Armando Louzada)

Pessoa delicodoce

Há uns tempos apareceu por tudo quanto é caixa de comentários de blog um poema atribuído a Fernando Pessoa com "bons conselhos" sobre "saber viver". Ora, ou é de um heterónimo que desconheço, com capacidade de previsão sobre gostos light da pós-modernidade... ou então...

sábado, janeiro 21, 2006

O homem do Rossio

Quem passou pelo Rossio e viu aquela cara não se esqueceu, seguramente. Eu vi-o, pela primeira vez, de repente, a menos de um metro de distância, num dia em que a rua estava bastante movimentada. A reacção instintiva é desviar o olhar, tal é a surpresa e a estranheza perante o que se vê.

Na noite passada, foi transmitida na televisão a história de um menino indonésio de dois anos com um tumor gigantesco na cara, que fazia lembrar o homem do Rossio. Uma fundação pagou as despesas para que pudesse ir com o pai ser operado em Taiwan. Em quatro operações sofisticadas, recuperou a visão dos dois olhos, que estavam escondidos no meio do tumor, e foi-lhe moldada uma cara que assentou numa ossatura muito alterada e que o fez parecer um menino quase normal. Quando for adulto e tiver os ossos completamente formados, vai precisar de mais cirurgias estéticas.

Pergunto-me se foi tentado tudo para tratar o nosso homem do Rossio. Se alguém sabe a sua história. A tragédia desse homem é também um pouco partilhada por quem passa por aquele local. Não bastando a deformidade, teve ainda necessidade de mendigar. Para mim, a sua presença e a exposição da sua cara é uma lição, uma oportunidade para pensar. Mas gostava mesmo era de saber que o senhor tinha sido tratado e estava bem. Se alguém souber alguma coisa, pode deixar informações na caixa de comentários. Obrigada.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Mulher a ler


(John Everett Millais, Rosalind na floresta)

*
[Adenda]

Act 3, SCENE II. The forest.

Enter ORLANDO, with a paper

ORLANDO
Hang there, my verse, in witness of my love:
And thou, thrice-crowned queen of night, survey
With thy chaste eye, from thy pale sphere above,
Thy huntress' name that my full life doth sway.
O Rosalind! these trees shall be my books
And in their barks my thoughts I'll character;
That every eye which in this forest looks
Shall see thy virtue witness'd every where.
Run, run, Orlando; carve on every tree
The fair, the chaste and unexpressive she.


Exit

(...)

Enter ROSALIND, with a paper, reading

ROSALIND
From the east to western Ind,
No jewel is like Rosalind.
Her worth, being mounted on the wind,
Through all the world bears Rosalind.
All the pictures fairest lined
Are but black to Rosalind.
Let no fair be kept in mind
But the fair of Rosalind.


(...)

Enter CELIA, with a writing

ROSALIND
Peace! Here comes my sister, reading: stand aside.

CELIA
[Reads]
Why should this a desert be?
For it is unpeopled? No:
Tongues I'll hang on every tree,
That shall civil sayings show:
Some, how brief the life of man
Runs his erring pilgrimage,
That the stretching of a span
Buckles in his sum of age;
Some, of violated vows
'Twixt the souls of friend and friend:
But upon the fairest boughs,
Or at every sentence end,
Will I Rosalinda write,
Teaching all that read to know
The quintessence of every sprite
Heaven would in little show.
Therefore Heaven Nature charged
That one body should be fill'd
With all graces wide-enlarged:
Nature presently distill'd
Helen's cheek, but not her heart,
Cleopatra's majesty,
Atalanta's better part,
Sad Lucretia's modesty.
Thus Rosalind of many parts
By heavenly synod was devised,
Of many faces, eyes and hearts,
To have the touches dearest prized.
Heaven would that she these gifts should have,
And I to live and die her slave.


("As You Like It", William Shakespeare)

Labiologia 

Sextina

Ontem pôs-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora é já outro dia,
tudo torna, torna o sol;
só foi a minha vontade
para não tornar co tempo!

Tôdalas coisas, per tempo,
passam, como dia e noute;
üa só, minha vontade,
não, que a dor comigo a aterra;
nela cuido enquanto há sol,
nela em quanto não há dia.

Mal quero per um só dia
a todo outro dia e tempo,
que a mim pôs-se-me o sol
onde eu só temia a noute;
tenho a mim sobre a terra,
debaxo minha vontade.

Dentro na minha vontade
não há momento do dia
que não seja tudo terra;
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pôr à noute:
no milhor, pon-se-me o sol!

Primeiro não haverá sol
que eu descanse na vontade.
Pon-se-me üa escura noute
sobre a lembrança de um dia...
Inda mal porque houve tempo
e porque tudo foi terra.

Haver de ser tudo terra
quanto há debaxo de sol
me descansa, porque o tempo
me vingará da vontade;
se não que antes deste dia
há-de passar tanta noute!


(Bernardim Ribeiro)

(Philippe Jolyet, A Lição Pouco Interessante)

Campanha

Recebi um panfleto com fotografia e mensagem do Dr. Soares e da esposa, pela caixa do correio. Pergunto-me se os marketeers responsáveis pela coisa são do mesmo planeta que eu.

Romance de Avalor

Pela ribeira dum rio
que leva as águas ao mar
vai o triste de Avalor,
não sabe se há-de tornar.
As águas levam seu bem;
ele leva o seu pesar.
Só vai e sem companhia,
que os seus fora deixar:
que quem não leva descanso,
descansa em só caminhar.
Descontra onde ia a barca
se ia o sol abaixar;
indo-se abaixando o sol
escurecia-se o ar;
tudo se fazia triste
quanto havia de ficar
Da barca levantam remos
e ao som do remar
começaram os remeiros
do barco este cantar:
"Que frias eram as águas!
Quem as haverá de passar?"
Dos outros bancos respondem:
"Quem as haverá de passar
senão quem a vontade pôs
onde a não pode tirar."
Trás a barca o levam olhos
quanto o dia dá lugar.
Não durou muito, que o bem
não pode muito durar.
Vendo o sol posto, contra ele,
soltou os olhos ao chorar;
soltou rédea a seu cavalo,
da beira do rio a andar:
e a noite era calada
pera mais o magoar,
que o compasso dos remos
era o do seu suspirar:
querer contar suas mágoas
seria areias contar.
Quanto mais se ia alongando,
se ia alongando o soar:
de seus ouvidos aos olhos
a tristeza foi igualar.
Assi como ia a cavalo
foi pela água dentro entrar;
e dando um longo suspiro
ouvira longe falar:
"Onde mágoas levam alma,
vão também corpo levar":
mas indo assi por acerto
foi c'um barco n'água dar,
que estava amarrado à terra
e seu dono era a folgar.
Salta assi como ia dentro
e foi a amarra cortar:
a corrente e a maré
acertaram-no ajudar.
Não sabem mais que foi dele
nem novas se podem achar,
suspeitou-se que era morto,
mas não é para afirmar,
que não no embarcou ventura
para isso o foi guardar.
Mas são as águas do mar
de quem se pode fiar.


(Bernardim Ribeiro)

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Mulher a ler


(Anthony Murphy, 1999)

Esta disposição de cadeira, leitora e sapatos é comum a um outro quadro muito apreciado neste blog. Alguém sabe dizer qual é?

Protecção de dados

Julgava que só um certo perfil de pessoas fazia isto inocentemente. Mas enganei-me. O Ministério da Educação enviou hoje um email (entre umas dezenas idênticos, presume-se), com mais de um milhar de destinatários. À vista de todos os restantes destinatários. Como é bem sabido, estas listas de endereços de email são um regalo para quem quer fazer publicidade gratuita (e cartas da Nigéria, e propagação de vírus, etc, etc) através do correio electrónico.

Noutro dia foram os sms da Carris, noutro a factura detalhada da PT do cliente Estado.

Sempre gostava de saber onde anda a tal comissão de protecção de dados e o que acontece aos responsáveis por esta violação da privacidade dos cidadãos.

Agradecimento

Ao blog Novíssimo Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, pela referência a um romance tradicional publicado no Abrigo, obrigada!

Caminante

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.


(António Machado)

terça-feira, janeiro 17, 2006

Mineiros na neve


(Vincent van Gogh)

Dúvida

Por que é que o futebol não é popular nos Estados Unidos?

Republicana

Tenho orgulho (relativo) dos nossos seis candidatos presidenciais. E ainda mais por o nosso herdeiro real não se atrever a concorrer a estas eleições nem a ser republicano.

Alquimia

Arrefece.
A fogueira do sol vai-se apagando
Na casca das maçãs que amadurece.
Vai a vida passando.

Mas havendo uma Eva
Que no inverno, depois, venha tentar
O homem,
O sol e a vida podem-se encontrar
Nas maçãs que se comem.


São Martinho de Anta, 21 de Setembro de 1947

Miguel Torga

domingo, janeiro 15, 2006

terça-feira, janeiro 10, 2006

Agradecimento


(William Turner, "Luz e cor (teoria de Goethe) - A manhã depois do Dilúvio - Moisés escrevendo o Livro do Génesis")

Ao blog Sem Pénis, nem Inveja, pelas palavras simpáticas: muito obrigada!

Ouvido

Num hospital público, um casal de velhotes com apresentação cuidada. O homem:
- Reformas privadas? Seguros de vida? Nós já sabemos como funcionam as seguradoras: ficam-nos com o dinheiro durante anos mas, quando precisamos, nunca podemos contar com elas.

Crítica literária

Palavras para quê?

domingo, janeiro 08, 2006

"Às armas! Às armas!" ou então "Que recurso retórico é este?"

De facto, governos, políticos e os próprios cidadãos parecem continuar a encolher os ombros perante o galopante agravamento da criminalidade. Mas é, talvez, tempo de enfrentar seriamente o problema porque no dizer autorizado de um antigo combatente, está já mais perigoso viver em tempo de paz do que viver em tempo de guerra.

Romance tradicional

Lá se vai o conde Ninho, - seu cavalo vai banhar;
Enquanto o cavalo bebe, - formou-se um lindo cantar:
- Bebe, bebe, ó meu cavalo, - Deus te defenda do mal,
- Ou dos perigos do mundo - e das areias do mar.
- Acorda, bela infanta, - se queres ouvir cantar;
- Ou são os anjos no céu, - ou a sereia no mar.
- Não são os anjos no céu, - ou a sereia no mar,
É ele, o conde Ninho, - que comigo quer casar.
- Se queres casar c'o conde, - eu vo-lo mando matar.
- Se mandais matar o conde, - mandai-me a mim degolar.
Um morre e outro morre, - ambos vão a enterrar.
Um enterram-no à porta, - o outro, ao pé do altar.
Dum nasceu um acipreste, - do outro, um verde laranjal.
Um cresce e outro cresce, - à porta se vêm juntar;
Quando o rei ia prà missa, - 'storvavam-lhe de passar.
Chamou pelos seus criados, - mandou-os arredondar:
Dum saiu uma pombinha, - do outro um pombo trocal.
Um voa e outro voa, - passaram pra além do mar.
Foram-se pousar à mesa, - onde el-rei 'stava a jantar.
Um pica, o outro pica, - ambos no melhor manjar.
Malo haja a rainha - que tal par mandou matar!
Nem na vida, nem na morte, - se puderam apartar.

sábado, janeiro 07, 2006

Alhambra


(fonte)

Provérbio árabe

Aspira ao conhecimento. Se empobreceres, ele será a tua riqueza; se enriqueceres, será o teu adorno.

(in "Provérbios do Mundo"; selecção, tradução e apresentação de José Jorge Letria, Editorial Notícias)

Registo

Angela Merkel, em entrevista ao Der Spiegel: "An institution like Guantanamo can and should not exist in the longer term. Different ways and means must be found for dealing with these prisoners." (via BBC)

quarta-feira, janeiro 04, 2006


(Quint Buchholz)

Intervalo

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.


(Fernando Pessoa)

V

A minha vitória sobre os cínicos é imaginar de que tipo de descompensação sofrem.